Gênero e colonialidade na política de acesso às tecnologias reprodutivas

AutorLais Godoi Lopes
Páginas187-210
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GÊNERO E COLONIALIDADE NA POLÍTICA
DE ACESSO ÀS TECNOLOGIAS REPRODUTIVAS1
LAIS GODOI LOPES
1. INTRODUÇÃO
O esforço por caracterizar a reprodução como uma série de eventos da
ordem dos fatos sociais e culturais, e não meramente em termos biológicos, ori-
enta parte significativa do projeto dos estudos de gênero comprometido com o
propósito de desnaturalizar a complexidade de âmbitos individuais da vida hu-
mana, sob a égide do mote “o pessoal é político”, reivindicado pelos movimentos
feministas contemporâneos.
Tem sido fortemente noticiada pela produção teórica feminista das últi-
mas décadas a configuração de uma “política da reprodução”, capaz de ordenar
em níveis globais e locais processos de organização social, como as mudanças
nas estruturas familiares, o advento de setores produtivos no ramo da saúde re-
produtiva e a distribuição do acesso a serviços e políticas públicas (GINSBURG;
RAPP, 1991). Essas pesquisas revelam-se bastante elucidativas dos impactos da
ciência e da tecnologia nos entendimentos sobre o parentesco e as relações de
gênero, das problemáticas da geopolítica dos programas de planejamento fami-
liar, das redes transnacionais de adoção e de atuação de movimentos sociais or-
ganizados em prol da legalização do aborto e do fim das esterilizações forçadas.
Contudo, tais análises não chegaram a desenvolver suficientemente um aspecto
que as novas tecnologias de reprodução assistida evidenciam de forma incisiva:
dinâmicas coloniais persistem no estabelecimento progressivo de um mercado
reprodutivo no capitalismo transnacional, determinando disparidades na experi-
mentação subjetiva dos eventos procriativos.
A demonstração da permanência de desigualdades coloniais nos fenôme-
nos reprodutivos, objetivo do presente capítulo, demanda o resgate da história
1 O presente capítulo foi elaborado a partir de reflexões presentes na Tese de doutoramento da
autora. Cf. LOPES, 2019.
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de formação das ciências reprodutivas, com ênfase no envolvimento de atores
sociais comprometidos com a medicalização das possibilidades procriativas dos
diferentes grupos sociais, com a consequente reiteração de estruturas e modos de
pensar discriminatórios voltados à exploração e à dominação. Conforme tratará
a primeira seção, a busca por controle de corpos e potencialidades reprodutivas
foi pautada, tradicionalmente, pela atenção a marcadores sociais da diferença, tais
como gênero, sexualidade, raça, etnia, classe social e presença de deficiências.
Transpostas para o mercado reprodutivo contemporâneo, essas variáveis conti-
nuam a moldar hierarquias e disparidades de acesso dos sujeitos a procedimentos
e técnicas da medicina reprodutiva.
A conjunção dos estudos feministas, pós-coloniais e decoloniais, empre-
endida na segunda seção deste trabalho, revela-se como uma perspectiva apta à
investigação da lógica classificadora de identidades que o capitalismo colonial
adota na determinação de quais sujeitos são destinatários privilegiados de condi-
ções de exercício de escolhas reprodutivas e quais corpos são convertidos em
objetos de extração de biomateriais para o abastecimento do mercado da procri-
ação medicamente assistida. A reprodução, nesse cenário, circunscreve um
campo privilegiado de disputas sobre a constituição social de subjetividades, de-
safiando o Direito e o pensamento político à reflexão sobre os obstáculos à ga-
rantia plena de direitos sexuais e reprodutivos.
Nesse sentido, o presente texto expõe os desafios, de matriz colonial, a
serem enfrentados por políticas públicas, movimentos sociais e teóricos compro-
metidos com a realização de justiça reprodutiva. Tal como se apresenta, o mer-
cado de tecnologias e serviços reprodutivos contemporâneo segue profunda-
mente estruturado por violências desigualdades de gênero, raça e classe social,
opondo obstáculos à democratização da vida privada e da autodeterminação re-
produtiva dos diferentes sujeitos e segmentos sociais.
2. A HISTÓRIA COLONIAL DA MEDICINA REPRODUTIVA
A sistematização de um campo do conhecimento biológico especializado
em explicar os fenômenos reprodutivos, para neles intervir, se deu de forma tar-
dia em relação aos desenvolvimentos verificados em outras áreas do saber mé-
dico ao longo do século XIX.
A emergência das ciências reprodutivas, conforme explicita Adele Clarke
(1998), foi retardada não por motivos técnicos, na medida em que os fundamen-
tos teóricos e as ferramentas imprescindíveis para o seu avanço, como a teoria

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