Notas para a história do supremo tribunal de justiça em Portugal

AutorIsabel Graes
Páginas347-383
NOTAS PARA A HISTÓRIA DO SUPREMO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA EM PORTUGAL
ISABEL GRAES
«…parece que a parte da jurisprudência que tem o nome de cabala, chicana,
rabolice he representada pela imagem de uma mulher sêca e mirrada, de olhos
vesgos, unhas agudas, e rodeada de montes de papeis: umas vezes ella troca
estes papeis por montes de oiro; outras devora choupanas e palacios; ora
transforma-se em leão e lança-se com toda a avidez á presa, ora disfarçada
em serpente insinua-se por debaixo das hervas; em fim he um monstro a
quem os Reis nunca poderão cortar as unhas; se alguma vez lhas apararão,
logo lhe crescerão de novo». (Deputado Francisco Simões Margiochi1)
Introdução
Como resposta ao movimento revolucionário de 24 de Agosto de 1820,
reúnem-se, em Lisboa, as Cortes Constituintes Gerais e Extraordinárias da Na-
ção Portuguesa que tiveram por objectivo a feitura do primeiro diploma consti-
tucional português. Assente no texto das Bases da Constituição assinadas em 9
de Março de 1821, o Soberano Congresso consagrou a divisão tripartida do po-
der político no qual foi contemplado o poder judiciário e reclamou a urgência na
determinação das devidas linhas estruturais. Com este propósito, no último dia
do ano de 1821, começou a ser discutida a matéria constante do título V sobre a
matéria judiciária. No capítulo I que tinha por título «Dos juízes e dos tribunais
de justiça» destaca-se a letra do art. 191º que determinou a criação na capital do
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1 Discurso proferido na sessão n.º 276, de 7 de Janeiro de 1822, Diário das Cortes Geraes e
Extraordinarias da Nação Portugueza, vol. 4, s.l., s.d., p. 3621.
Isabel Graes
Reino, de um Supremo Tribunal de Justiça composto por juízes letrados2, defi-
nindo-se no mesmo dispositivo as respectivas atribuições do referido órgão. Por
sua vez, o capítulo II abordou a administração da justiça, pese embora qualquer
uma das citadas temáticas tenha sido deixada à iniciativa do legislador ordinário
que a desenvolveria cuidadosa e proficuamente, como resultou do articulado de
algumas dezenas de diplomas. Posto que o texto de 1822 teve uma vigência efé-
mera, coube, subsequentemente, aos diplomas congéneres de 29 de Abril de
1826 e 4 de Abril de 1838, respectivamente, nos artigos 130º-131º e 126º3 asse-
gurar este tipo de consagração sendo reiteradas, grosso modo, as disposições
vintistas a respeito do supremo tribunal do reino.
Reflexo das vicissitudes de natureza política, social e económica que se
fizeram sentir, especialmente, na primeira metade do século XIX, a história do
Supremo Tribunal de Justiça é sinónimo das diversas soluções aplicadas em sede
da administração da justiça naquele período. Desta forma, em termos exemplifi-
cativos, decorrente de uma oposição política ocorrida especialmente em 1836 e
1844, assistimos ao afastamento de alguns dos seus membros, inclusive do pró-
prio presidente, ao mesmo tempo que foi redefinida uma das competências pri-
mordiais daquele tribunal, a qual dizia respeito ao conhecimento do recurso de
revista que a tradição judiciária havia recebido do Desembargo do Paço. Esta
última medida ao ser delineada no ano de 1843 (depois de uma primeira iniciativa
tomada em 19 de Maio de 1832) não tardou a colher as mais acérrimas críticas
por parte da doutrina que, sob a afirmação de que se tratava de uma disposição
notoriamente inconstitucional, considerava ter sido, senão suprimida, pelo me-
nos, reduzida a verdadeira natureza jurídica daquele juízo. Subjacente estava uma
aproximação à solução francesa de 1837 que revogara o référé législatif e que agora
se tentava fazer adequar ao caso português, a pretexto de proteger a lei da actu-
ação do próprio judiciário.
Na esteira dos trabalhos que temos dado à estampa nos últimos anos4, a
presente reflexão leva-nos a revisitar as soluções encontradas pelo legislador
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2 Posto que à data da aprovação da Magna Lei, o território brasileiro ainda se encontrava
sob o domínio português, o legifero previa também a criação de um Supremo Tribunal de Justiça
no local onde residisse a Regência naquele reino (artigo 193º).
3 Como exporemos, dos três textos, o que mais detalhou as atribuições do Supremo Tribu-
nal de Justiça, foi o de 1826, tendo os restantes deixado tal tarefa ao legislador ordinário.
4 Em especial, O Poder e a Justiça em Portugal no século XIX, Lisb oa, 2014; «Algumas linhas
sobre a magistratura portuguesa no século XIX», in O juiz na tradição europeia, Coimbra, 2009, pp.
165-202; «Para uma reflexão sobre o estatuto dos corregedores no ordenamento jurídico
português», in Estudos em homenagem ao Professor Martim de Albuquerque, vol. 1, Coimbra, 2010, pp.
745-812; «Um relance histórico sobre a Junta de Justiça de Angra, bosquejo de história judiciária
liberal», in Cuadernos de Historia del Derecho, 18 (2011), pp. 333-362; «Em torno de uma sindicância
judicial extraordinária: o processo do juiz de Direito de Meda», in Cuadernos de História del Derecho
21 (2015), pp. 113-165; «Uma palavra pela magistratura ou a oposição ao decreto absolutório de
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Notas para a História do Supremo Tribunal de Justiça em Portugal
liberal português na criação do novo arquétipo judiciário, especificamente, no
que respeitou à instituição do Supremo Tribunal de Justiça, sem esquecer, con-
tudo, os aspectos que fragilizaram a sua actuação. Em resumo, ainda que a sua
natureza e ratio sejam totalmente consentâneas com o espírito jurídico-político
vigente, não podemos deixar de encontrar entre as suas características, uma certa
tibieza, por comparação com as instituições que a revolução (de 1822) havia der-
rogado. Estes são alguns dos aspectos que passamos a desenvolver.
A criação de um novo tribunal
Das antigas estruturas judiciárias ao novo arquétipo judiciário
Encetados os trabalhos parlamentares no Convento das Necessidades, um
dos temas que, de imediato, mais inflamou a oratória disse respeito à discussão em
torno das matérias judiciárias pois nelas assentava a suprema garantia de todo o
sistema constitucional5. A falência do modelo setecentista e o que se teimava em
classificar como vícios estruturais constituíram o móbil da mudança que urgia im-
plementar. Sob esta acusação residiu a necessidade de renovar a complexa e po-
limórfica estrutura vigente, moldada de acordo com a natureza polisinodal que
havia sido edificada, ao longo do período moderno. Significativo foi o testemunho
dado a conhecer por Manuel Borges Carneiro, na sessão das Cortes Gerais e Ex-
traordinárias de 21 de Junho de 1822, ao denunciar a «infinidade de juízos privati-
vos e foros privilegiados» que tinham sido «inventados» e em que recordamos: o
Conselho da Fazenda; o Conselho Ultramarino; o Juízo do Fisco da Inconfidência
e dos Ausentes; a Conservatória da Moeda; a Mesa da Consciência e Ordens; a
Junta do Comércio e a Real Mesa da Comissão Geral sobre o Exame e Censura
dos Livros, entre tantos outros exemplos que aqui poderiam ser enumerados6. Se
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1844», in e-Slegal History Re view, 19 (2015); «As residências judiciais em Portugal no século XIX:
controlo ou mito?», in Control y responsabilidad de los jueces (siglos XVI y XX), Madrid, 2017, pp. 321-
346; «Câmara dos Pares. A construção de um «novo" tribunal», in Cuadernos de Historia del Derecho,
24 (2017), pp. 137-159; «As primeiras tentativas na construção do controlo jurisdicional da
constitucionalidade (a solução portuguesa em Oitocentos) », in Justiça Constitucional, coordenação
de Jorge Miranda, 2018, pp. 219-252; «Sigilo, recato e prudência (da justiça do segredo ao segredo
de justiça) », in e-S legal History Review, 30 (2019), e «Críticas antigas e m tempos de mudança: a
Justiça e o Vin tismo», in Remed ios Martín Morán (dir. ), Trienio liberal, vintismo, rivoluzione: 1820-
1823. España, Portugal e Italia, Pamplona, 2021, pp. 501-519.
5 Sobre as primeiras reformas vintistas, vid. os nossos trabalhos: O Poder e a Justiça , pp. 107-
132 e Críticas antigas em tempos de mudança, pp. 501-519.
6 Por sua vez, ao nível das comarcas que, em 1822, contavam um total de 44, as funções
judiciais estavam divididas entre corregedores (O.F., 1.58); juízes de fora (O.F., 1.60.2; 1.65; 1.67;
1.88; 1.97.27); provedores (O.F., 1.62); almotacés (O.F., 1.67.13-15 e 1.68.1 e 2); juízes eleitos (de
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