As circunstâncias do crime nos recursos de revista: juízes e jurados entre a transição liberal e as primeiras três décadas de vigência do código penal português de 1852

AutorSílvia Alves
Páginas385-428
AS CIRCUNSTÂNCIAS DO CRIME NOS RECURSOS
DE REVISTA
: JUÍZES E JURADOS ENTRE A
TRANSIÇÃO LIBERAL E AS PRIMEIRAS TRÊS
DÉCADAS DE VIGÊNCIA DO CÓDIGO PENAL
PORTUGUÊS DE 1852
SÍLVIA ALVES
No princípio era a circunstância
a. As circunstâncias1 desempenham na história do direito penal uma função
seminal. No antigo regime, o direito penal legislado não conhecia uma parte geral,
que germinaria somente na segunda metade do século XVIII2; os tipos penais
eram prolixos, descritivos ou circunstanciados; e as penas fixas. Neste contexto,
quando se verificasse uma circunstância (do crime), reconhecida e sedimentada
pelos juristas, incluindo os juízes, considerava-se existir uma causa que autori-
zava modular ou modificar a pena legal ou ordinária, definindo deste modo
penas arbitrárias ou extraordinárias. A construção doutrinal da faculdade judi-
cial de modificar a penal legal, verificando-se uma causa atendível (arbitrium judi-
cis)3 permitiu adequar as punições às particularidades (ou circunstâncias) do caso
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1 Como obras de referência, indispensáveis até nas opiniões divergentes que apresentam, vd.
ORTEGO GIL, Pedro, «De la Literatura Jurídica al Código Penal: Causas y circunstancias en el
Derecho Histórico Español», Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 83, 2007,
pp. 241-304; e PORRET, Michel, Le crime et ses circonstances. De l’esprit de l’arbitraire au siècle des lumières
selon les réquisitoires des procureurs-généraux de Genève, Genève, 1995.
2 Vid. ALVES, Sílvia, Punir e humanizar. O direito penal setecentista, Belo Horizonte, 2019.
3 Quanto à literatura sobre o tema, destacamos, a título meramente exemplificativo, SCH-
NAPPER, Bernard, «Les peines arbitraires du XIIIe au XVIIIe siècle (doctrines savantes et usages
français)», Tijdschrift voor Rechtsgeschiedenis, 41 (1973), pp. 237-277; e 42 (1974), pp. 81-112;
ORTEGO GIL, Pedro, «El Fiscal de S.M. pide se supla a mayores penas. Defensa de la justicia y
Sílvia Alves
concreto, ao nível de criminalidade ou às exigências da política penal e, não
menos importante, erigir um sofisticado ius poenale commune não legal, mas es-
sencialmente doutrinário e, por fim, teorias gerais da infração e da punição.
Com a codificação, este extraordinário acervo, sem dúvida uma das grandes
conquistas da civilização pois civilizou a violência estatal inerente ao ius puniendi,
transitaria em particular para as partes gerais dos vários códigos penais. Neste
percurso histórico, as circunstâncias começaram por se apresentar de forma
mais ou menos indiferenciada, como demonstra paradigmaticamente a obra de
Tiraqueau, De poenis temperandi, lista dilatada de causas que tornavam possível
temperar as penas ordinárias4. Apesar das críticas de que seria alvo, quando o
arbitrium judicis se converteu na bête noire do pensamento iluminista e humanita-
rista, representa bem a realidade de um arbítrio (ou discricionariedade) juridica-
mente regulado e, portanto, limitado. No quadro geral de ordenamentos plura-
listas, o direito penal desenvolvia-se sob a égide de uma relação pacífica entre o
ius e a aequitas.
As circunstâncias dos crimes –correspondentes a causas da determinação
concreta das punições– foram irradiando em várias direções, assumindo, cada
uma, um específico e diferenciado locus na dogmática penal. Converteram-se em
problemas que anacronicamente podemos designar como problemas da culpa –
como a imputabilidade ou o erro– em causas de exclusão da ilicitude e da culpa
–como a legítima defesa ou o estado de necessidade– ou em circunstâncias em
sentido próprio. No princípio, pois, era a circunstância.
b. Neste estudo, interessou-nos, em particular, a apreciação das circuns-
tâncias pelo Supremo Tribunal de Justiça, nos períodos imediatamente anterior
e posterior à promulgação do primeiro código penal português, de 18525, de
forma a identificar o eventual impacto da codificação e os sinais ou marcas da
progressiva diferenciação dogmática. Como base documental, tomou-se o
acervo de acórdãos proferidos pelo Supremo Tribunal de Justiça em recursos de
revista, integrado na Collecção dos accórdãos que contêem matéria legislativa proferidos pelo
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arbitrio judicial», Initium, 5 (2000), pp. 239-354; GAU-CABÉE, Caroline, «Arbitrium judicis. Jalons
pour une histoire du principe de la légalité des peines», in Corinne Mascala (ed.), À propos de la
sanction, Toulouse, Presses de l’Université Toulouse, 2007, pp. 39-61; SANCHEZ-ARCILLA BER-
NAL, José (investigador principal), El arbítrio judicial en el Antiguo Régimen (España e Indias, siglos
XVI-XVIII), Madrid, 2012; ALVES, Sílvia, «Lei e arbitrium judicis no antigo regime», Revista
Acadêmica da Faculdade de Direito do Recife, 85, 1 (2013), pp. 5-76.
4 LAINGUI, André (introdução, tradução e notas), Le ‘De poenis temperandi’ de Tira queau,
Paris, 1986.
5 Para uma apreciação recente deste código, vd. Costa Pinto, Frederico Costa e Caeiro,
Pedro, «The influence of the french Penal Code of 1810 over the ‘general part’ of the portuguese
Penal Code of 1852 in MASFERRER, Aniceto (ed.), The western codification of criminal law. A revision
of the myth of its predominant french influence, Cham, 2018, pp. 115-130.
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As circunstâncias do crime nos recursos de revista
Supremo Tribunal de Justiça desde a epocha da sua instalação. Com este «bizarro título»6,
foram publicados três volumes, devidos a A. X. de Barros Cortereal e em que
também colaborou J. M. Cardoso Castello Branco7, que pretendem reunir a to-
talidade dos acórdãos de concessão de revista, desde a instalação do Supremo
Tribunal de Justiça, em 1834. A estes somam-se outros volumes, no total de dez,
que foram analisados8. Trata-se, portanto, de um corpo significativo. Podemos
pensar que estes acórdãos constituíam uma referência para os tribunais inferio-
res, estando naturalmente vocacionados para a uniformização da jurisprudência.
No que respeita às circunstâncias, foram encontrados cerca de quarenta acór-
dãos, no período compreendido entre 1834 e 1882. A consciente relevância do
tema revela-se desde logo no facto de a entrada circunstância ou circunstâncias se
patentear nos índices analíticos da coleção, com uma frequência que se vai in-
tensificando. Antes da apresentação geral deste conjunto documental, porém,
algumas breves notas iniciais quanto ao quadro normativo português e a sua
evolução poderão beneficiar a sua análise.
c. Contrariando a tradição do direito comum, as Ordenações portuguesas
(O.M.3.50.6; O.F.3.66.7) consagraram um dever de fundamentação das decisões
judiciais9. Paradigmático daquela tradição é o comentário que Tiraqueau exarou
no prefácio no seu De poenis temperandi, ao afirmar que normalmente não era ne-
cessário registar as causas da sentença: tolo seria o juiz que oferecia o flanco à
crítica10. A motivação das sentenças era, portanto, desaconselhada porque, entre
outros motivos, fragilizava a autoridade dos juízes e das suas decisões. Os juristas
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6 HESPANHA, António Manuel, «Razões de decidir na doutrina portuguesa e brasileira do
século XIX. Um ensaio de análise de conteúdo», Quaderni fiorentini per la storia del pensiero giuridico
moderno, 39, 1 (2010), p. 112.
7 CORTEREAL, A. X. Barros e CASTELLO BRANCO, J. M. Cardoso, Collecção dos accórdãos que
contêem matéria legislativa proferidos pelo Supremo Tribunal de Justiça desde a epocha da sua instala ção, Vo-
lume I, Lisboa, Imprensa Nacional, 1859; Volume II, Lisboa, Imprensa Nacional, 1859; e Vo-
lume III, Lisboa, Imprensa Nacional, 1860.
8 Accordãos do Supremo Tribunal de Justiça. 2.ª série. Volume I (1847 a 1854), Porto, Imprensa
Popular de J. L. de Sousa, s. d.; Accordãos do Supremo Tribunal de Justiça. 2.ª série (contendo os
acórdãos de 1847 a 1862), Volume II, Porto, Imprensa Popular de J. L. de Sousa, 1871; Accordãos
do Supremo Tribunal de Justiça. 3.ª série (1863 a 1868), Porto, Imprensa Popular de J. L. de Sousa,
1869; Accordãos do Supremo Tribunal de Justiça. 3.ª série. Volume IV (1869 a 1873), Porto, Archivo
Juridico. A. G. Vieira Paiva, 1879; Accordãos do Supremo Tribunal de Justiça. 4.ª série. Volume V
(1874 a 1877), Porto, Archivo Juridico. A. G. Vieira Paiva, 1881; Accordãos do Supremo Tribunal de
Justiça. 4.ª série. Volume VI (1878 a 1880), Porto, Archivo Juridico. A. G. Vieira Paiva, 1881;
Accordãos do Supremo Tribunal de Justiça. 4.ª série. Volume VII (1881 a 1882), Porto, Archivo Juri-
dico. A. G. Vieira Paiva, 1884.
9 Vd. BARBAS HOMEM, Pedro, Judex perfectus função jurisdicional e estatuto judicial em Portugal:
1640-1820, Coimbra, 2003; Íd., A lei da liberdade, Volume I. Introdução histórica ao pensamento jurídico.
Épocas medieval e moderna, Cascais, 2001.
10 LAINGUI, Le ‘De poenis temperandi’, p. 34 (prefácio, 52).
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