A posição do ser humano no mundo e a 'Land Ethic
Autor | Fábio Valenti Possamai |
Cargo | Profesor en Filosofía de la Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). |
Páginas | 45-55 |
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Atualmente, existem uma série de debates envolvendo a ética ambiental, e um de nossos principais objetivos é o de evitar a extrema polarização que vem acontecendo quando se trata desse assunto. Nos dias de hoje, ela se configura da seguinte forma: de um lado, temos os antropocentristas (os "humanistas morais"1); de outro, os abolicionistas animais (os "moralistas humanos2"). Mas gostaríamos de chamar a atenção para uma alternativa a essa dicotomia, uma espécie de "terceira via" - a de uma visão de mundo mais ecocêntrica.
Aldo Leopold foi um dos precursores de uma nova forma de perceber e organizar cognitivamente o mundo natural, baseado em sua extensiva experiência de campo - ele foi guarda florestal durante muitos anos. Além disso, Leopold percebeu que seus valores foram mudando à medida que seu entendimento ecológico ia se aprofundando e, com isso, sugeria que a ecologia possuía também preceitos éticos. Tal corrente de pensamento foi chamada de land ethic3. As duas características mais revolucionárias presentes nela eram: 1) a mudança de ênfase da parte para o todo, do indivíduo para a comunidade; 2) a mudança de ênfase do ser humano para a natureza, do antropocentrismo para o ecocentrismo4. Por causa dessa proposta, esse é um dos grandes problemas que este tipo de visão enfrenta, qual seja, o da tradição extremamente arraigada do pensamento moral ocidental - antropocêntrico e reducionista. Tanto é assim que a ética ambiental ainda não possui uma definição convencional e largamente aceita em glossários de terminologia filosófica.
Ao analisarmos a filosofia moral moderna, podemos encontrar nos pensamentos de Kant e Bentham verdadeiros "mananciais teóricos". Bentham, o fundador do utilitarismo, é a inspiração (e fonte básica) tanto para as éticas ambientais antropocêntricas quanto para as éticas ambientais extensionistas5. Por sua vez, a land ethic de Aldo Leopold é fortemente baseada na história natural, na evolução biológica e na ecologia. Seu antecedente mais visível é a construção da moralidade que Charles Darwin realizou no livro The Descent of Man. Tal sistema moral é bastante pertinente para uma orientação biologicamente mais ampla, ou seja, em direção a uma ética ecocêntrica. Isso é uma consequência imediata, já que esse sistema possui fortes bases biológicas e está sustentado por um entendimento ecológico e evolutivo da posição do ser humano em relação ao mundo.
A tradição ocidental concernente aos sistemas éticos ainda não chegou ao ponto de atribuir um valor moral aos seres não-humanos. Animais, plantas, os solos e as águas, os quais Aldo Leopold inclui em sua comunidade ética, tradicionalmente não são considerados como possuidores de valor
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moral, da mesma forma que não possuem direitos e não são respeitados, em um gritante contraste com os seres humanos - cujos direitos e interesses devem ser igualmente levados em conta para que nossas ações possam ser consideradas como moralmente válidas.
Uma característica inovadora e fundamental na ética de Aldo Leopold é justamente a extensão da consideração ética, fazendo uma passagem direta das pessoas às entidades naturais nãohumanas. Segundo Leopold, sua land ethic "muda o papel do Homo sapiens de conquistador da comunidade terrestre para um simples membro e cidadão desta comunidade"6. Ela deve ser encarada como uma possibilidade evolucionária cultural, o próximo estágio em nosso desenvolvimento ético. Entretanto, para Leopold, esse avanço deve ser muito mais ousado do que apenas uma extensão, inclusive daquela apregoada pelos abolicionistas animais, pois a land ethic expande os limites da comunidade moral para incluir os solos, as águas, e as plantas, da mesma forma que os animais. O movimento que pretende que os animais assumam o mesmo status moral que os seres humanos seria, portanto, apenas um degrau na escala da "evolução moral" pela qual devemos passar. Hoje, os animais, amanhã, tudo o que for não-humano.
A resposta ortodoxa do "humanismo ético" à sugestão de que os animais não-humanos devem ser moralmente considerados versa que somente os humanos são racionais e capazes de possuir interesses, ou autoconsciência, ou capacidades linguísticas, ou de representar o futuro. Isso, segundo Peter Singer, é o que chamamos de especismo, um preconceito filosófico contra tudo o que for não-humano - e é justamente isso que os moralistas humanos rebatem. Eles insistem em um critério para consideração moral baseado na senciência. Se determinados animais são capazes de sofrer, logo, eles devem ser considerados como sujeitos morais - exatamente como nós seres humanos. Seja como for, tal escolha é extremamente arbitrária. Por que somente seres racionais, ou que possuem linguagem, ou que sofrem (e assim por diante) são considerados aptos moralmente? Não é o mesmo que considerar somente os brancos, ou os arianos, ou quaisquer outros povos, como "legítimos seres humanos possuidores de alma"? A questão aqui é que, segundo Callicott, tanto os moralistas humanos, quanto os humanistas morais, fazem uma nítida distinção entre os seres que merecem consideração moral e os que não a merecem. Seja como for, ambos incorrem no mesmo erro - os humanistas morais apenas erram "um pouco menos", mas o princípio antropocêntrico é o mesmo. Eles se equivocam ao "humanizar os animais", e desconsiderar o restante da comunidade biótica.
Afinal, que tipo de teoria moral poderia afirmar que tanto animais, quanto plantas, solos e águas, são passíveis de estarem na mesma classe que os seres humanos em relação à consideração ética? Aldo Leopold oferece uma declaração concisa, que pode ser considerada como uma espécie de "pedra de toque" da land ethic: "Uma coisa é correta quando tende a preservar a integridade, estabilidade e beleza da comunidade biótica. É errada quando tende ao contrário"7. O
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que está por trás dessa afirmação é que o bem da comunidade biótica é a medida última do valor moral, e o que torna nossas ações boas ou ruins.
Seja como for, o espectro da falácia naturalista ronda qualquer tentativa de descobrirmos valores em fatos, entretanto, não obstante sua existência, a qual é essencialmente um problema para a ética formal, parece haver uma forte tendência a uma conexão psicológica entre a maneira como o mundo é imaginado ou concebido e que estado de coisas é tido como bom ou ruim, que tipos de comportamentos são corretos ou incorretos, e que responsabilidades e obrigações nós, como agentes morais, conhecemos. A Ecologia permitiu apreendermos um ecossistema como uma unidade...
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