Historiografia e Direito: instrumentos para a análise histórico-política da dogmática

AutorRenan Aguiar
Páginas331-343
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HISTORIOGRAFIA E DIREITO: INSTRUMENTOS PARA A
ANÁLISE HISTÓRICO-POLÍTICA DA DOGMÁTICA
RENAN AGUIAR
Professor Doutor da Universidade Federal Fluminense (UFF)
1. INTRODUÇÃO
A análise histórica do direito, assim como de outras historiografias, pode incorrer em um
estudo que pressuponha o presente como fruto da continuidade linear do passado, obscurecendo o
caráter, muitas vezes, revolucionário de certos eventos e ideias. A visão teleológica da história, como
ação voltada para um fim determinado, impede a observação das descontinuidades, obliterando o
tempo passado pelo tempo presente. É claro que o presente se constituiu pelo desenrolar dos tempos
anteriores, mas instituições, papéis sociais, linguagem técnica são heranças, não imposições do
passado ao presente. O uso de determinado instituto do direito romano na Idade Média ou
atualmente se dá pelas condicionantes históricas de cada momento e não como fruto da linha natural
do tempo. Adaptado aos novos interesses políticos, econômicos e sociais, o instituto romano perde
suas delineações originais para dar lugar a um instituto com nome similar, mas de conteúdo diverso1.
A continuidade histórica, dividida por António Hespanha2 em permanência e evolução/progresso,
pode ser fruto de inocência ou carência metodológica, mas representa também o interesse pela
naturalização do direito e das estruturas de poder, podendo ser uma forma de justificar o presente
através do passado, tornando o passado o exemplo a ser seguido ou aquele ao qual não se deve
retornar, conservando-se as estruturas de poder mediante o discurso legitimado pela força da tradição,
presente na cultura jurídica, na dogmática jurídica, por suas autoridades passadas ou pelo testemunho
do presente como momento superior.
O discurso histórico sobre o direito determina-se comumente em função do próprio direito, ou
seja, subordina-se às finalidades persuasivas dos discursos dogmáticos. Possuem lugar especial, no
conjunto dos argumentos dogmáticos, aqueles derivados das ideologias3: historicista e evolucionista.
A primeira funda-se na capacidade que a tradição possui de provocar a sensação de atemporalidade
jurídica, legitimando opiniões e promovendo adesões às concepções jurídicas tradicionais,
identificadas em institutos jurídicos tidos como não histórico-contingenciais 4. A ideologia
evolucionista, em oposição ao historicismo, valoriza o atual e tende a considerá-lo superior ao
passado. Neste caso, valoriza-se o processo evolutivo no qual o direito está inserido, provocando a
sensação de continuidade linear da história5.
Agregado à história do direito não apenas por descaso metodológico, mas por opção teórica,
1 “A palavra “Estado” (status) era utilizada em relação aos detentores do poder (status rei romanae, status regni); mas nã o
continha em si as características conceituais do Estado (exclusivismo, soberania plena) t al como nós o entendemos. A
propriedade foi definida pelos romanos como uma faculdade de “usar e abusar das coisas”; mas a própria ideia de “abuso”
leva consigo esta outra de que existe um uso normal e devido da s coisas, que se impõe ao proprietário, o que exclui a plena
liberdade de disposição que caracterizou, mais tarde, a propriedad e capitalista.” Cf. HESPANHA, 1997, nota 1.
2 Cf. HESPANHA, 1997, p. 35.
3 Utiliza-se aqui o polissêmico conceito de “ideología”, como: “uma determinada forma de construir representaçõe s ou de
organizar representações já existentes para atingir determinados objetivos ou reforçar determinados interesses” (Cf.
BARROS, 2011. p. 54.).
4 “El nombre de "Dogmática jurídica" (rechtsdogmatik) corresponde ante todo a una determinada concepción del derecho
que se desarrolló particularmente en Alemania en el siglo XIX, es decir, la llamada jurisprudencia de conceptos. Entre tanto,
el nombre se ha desprendido de esta conexión histórica y pued e ser utilizado para designar la comprensión sistemática del
contenido de un determinado ordenamiento jurídico.” (COING, 1981).
5 São muitos os vícios no trato da história do direito e grande parte deles não estão a serviço da história, mas da dogmática
jurídica. As introduções históricas dos manuais jurídicos, ao usarem indiscriminadamente e muitas vezes de forma ingênua,
as ideologias historicistas e evolucionistas, provocam anacronismos e reduções evolucionistas que se perpetuam de forma
inconsciente e imprudente pela formação do jurista.

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