O movimento das forças armadas e a assembleia constituinte na revolução portuguesa (1975-1976)

AutorMaria Inácia Rezola
Páginas635-659

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I Introdução

Quando, no dia 25 de Abril de 1974, o Movimento das Forças Armadas (MFA) levou a cabo a Operação «Fim-de-regime», que derrubou a ditadura portuguesa, estava munido de um programa político mínimo assente em três ideias basilares: Democratizar, Descolonizar e Desenvolver. Ao definir quais as coordenadas do processo de transformação a empreender, o Programa estipula, entre outras coisas, o desmantelamento dos organismos e instituições do Estado Novo, a amnistia de todos os presos políticos, o restabelecimento das liberdades fundamentais, o lançamento de uma nova política económico-social e «ultramarina», mas também a convocação, no prazo de doze meses, de uma Assembleia Nacional Constituinte, cuja eleição se deveria realizar por sufrágio universal, directo e secreto. O processo de transição que então se inicia está, no entanto, longe de ser linear, traduzindo-se numa dura e longa confrontação entre as chamadas «via revolucionária» e «via eleitoral», levando não só à desagregação do MFA como também ao questionamento do papel da Assembleia Constituinte, antes e depois da sua eleição1. Dois fenómenos indissociáveis que constituem uma peça central da transição portuguesa.

É curioso que, fazendo uma revisão da literatura sobre o período da transição democrática portuguesa, dificilmente encontramos estudos específicos sobre a questão das relações entre o MFA e a Assembleia Constituinte. O tema é aflorado por vários autores mas nenhum lhe dedicou uma particular atenção, apesar da importância que, ainda que com graduações diferentes, atribuem ao poder militar nos anos de 1974-1975. Diferente é, no entanto, o caso das relações entre os partidos políticos e essa mesma Assembleia, alvo preferencial das análises de cientistas políticos e constitucionalistas2. Obviamente que esta realidade se prende com o pressuposto de que os partidos políticos desempenharam um papel crucial na democratização de Portugal, facto que ninguém nega. Mas não ocultará ela uma das especificidades fundamentais da transição revolucionária portuguesa, ou seja, o papel nela desempenhado pelos militares e o seu posicionamento relativamente à Constituinte?

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II A assembleia constituinte no programa do MFA

Ainda que, nas suas origens, o Movimento dos Capitães tenha sido uma resposta a questões corporativas, no momento em que toma a iniciativa de levar a cabo o golpe de estado o Movimento encontrava-se já munido de um programa político onde ficava patente que o seu objectivo é o de derrubar a ditadura, iniciar um período de transição e criar as condições para a instauração de uma democracia.

A história de elaboração do Programa é atribulada. A par das longas e duras negociações com António de Spínola, que quase deram lugar a um confronto na noite do golpe de estado, cabe referir que ele esteve comprometido na sua génese uma vez que, com a publicação de Portugal e o Futuro, muitos se questionam sobre a utilidade de produção de um documento programático autónomo. De qualquer forma, ele foi um sinal óbvio da tomada de consciência política por parte dos Capitães e também do seu desejo de se acautelarem contra um eventual golpe palaciano depois de derrubada a Ditadura. De acordo com um dos intervenientes no processo, Martins Guerreiro,

“a preocupação fundamental foi que o Movimento tivesse um programa político, com ideias claras, para que não restassem dúvidas de que tudo o que estava a ser feito era para criar uma democracia e não para substituir uma ditadura por outra. Não para pôr o Spínola a mandar como ele quisesse, ou o Kaúlza de Arriaga, uma vez que ambos tentaram influenciar o movimento em benefício próprio”3.

A par do desmantelamento das instituições do antigo regime e do lançamento de política tendo em vista a edificação de uma nova ordem, importa destacar duas ideias deste que é conhecido como o Programa dos três Ds. Antes de mais, como referimos, o facto de estipular a convocação, no prazo máximo de um ano, de uma Assembleia Nacional Constituinte. Este compromisso, assim como a definição de um período de transição a vigorar até à aprovação da nova Constituição, tem implícita a ideia de uma relativamente rápida transferência do poder para a sociedade civil.

De acordo com Jorge Miranda, o Programa do MFA não foi “um mero texto político; foi também, desde o início, um texto carregado de sentido jurídico, pois, com o êxito da acção revolucionária, transformou-se de acto interno do Movimento em acto constitucional do Estado”4. E, enquanto “momento constituinte”, a sua importância é amplíssima, estabelecendo, desde logo, as primeiras coordenadas quanto à definição dos novos centros do poder.

No novo esquema constitucional provisório avançado pelo Programa do Movimento não estava previsto qualquer lugar para o MFA, sendo seu

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propósito, uma vez realizado o golpe de estado, delegar o poder que conquistara pela força das armas. No organigrama proposto as responsabilidades eram repartidas por um órgão militar designado pelo MFA (Junta de Salvação Nacional - JSN) e um órgão civil (Governo provisório). Ao primeiro caberia, essencialmente, gerir a situação até à constituição do governo provisório (civil) e fiscalizar toda a evolução do processo até à plena instauração de um regime democrático. Ao segundo são atribuídas funções de ‘gestão corrente’ até à realização de eleições legislativas e consequente formação do governo por elas legitimado. O Programa prevê ainda que o presidente da JSN exerça as funções de Presidente da República até à realização de eleições5.

Os primeiros confrontos com António de Spínola levam a que, a breve trecho, a ideia inicial dos Capitães de, uma vez derrubada a Ditadura, entregar o poder, seja definitivamente abandonada, criando o terreno propício para que o MFA se transforme num agente político da nova ordem, assumindo-se como organismo de vigilância e de controlo do cumprimento do Programa do MFA e, ainda, como um centro de poder revolucionário.

Ainda que o essencial da disputa entre António de Spínola e a Coordenadora do MFA se trave em torno da questão colonial, em causa está também um projecto político mais amplo e a forma como se deveria processar a transição. As suas diferentes perspectivas quanto à essência e ritmos da transição está bem patente no episódio que ficou conhecido como Golpe Palma Carlos, uma tentativa de golpe palaciano que, a ter sido bem sucedido, teria permitido um considerável reforço dos poderes do primeiro-ministro e do Presidente da República, assim como uma profunda alteração ao calendário eleitoral previsto pelo Programa (e, por isso, da própria convocação da Assembleia Constituinte). De facto se, de acordo com o Programa, primeiro realizar-se-iam eleições para a Assembleia Constituinte, depois a nova Constituição e só depois se elegeria o Presidente da República, segundo o projecto Palma Carlos, primeiro deveriam realizar-se eleições presidenciais (Outubro) aprovando-se em simultâneo uma Constituição provisória. A proposta prevê ainda a supressão da JSN e do Conselho de Chefes de EstadoMaior das Forças Armadas; a realização de eleições autárquicas em Dezembro; o adiamento das eleições para a Assembleia Constituinte em cerca de um ano e meio (a realizar em Novembro de 1976) sendo que, neste contexto, a nova Constituição apenas entraria em vigor em meados de 1977.

Em suma, utilizando como arma de pressão o espectro da queda do I Governo Provisório, pretendia-se promover um autêntico golpe de estado através do qual, observa Freitas do Amaral, “o MFA seria dissolvido, a autoridade pessoal de Spínola seria grandemente reforçada, o regime definirse-ia na prática como um ‘quase presidencialismo’ de tipo gaullista [...] e as

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eleições de Deputados seriam adiadas por ano e meio, adiada ficando também, por igual período, a feitura da nova Constituição”6.

Apesar da importante alteração na correlação de forças, em favor do MFA, que a constituição do II Governo Provisório7 representou, teremos de esperar pelo afastamento de António de Spínola da Presidência da República para que a ideia de um regresso à “pureza inicial” do Programa do MFA se consolide. Nesta nova etapa do processo revolucionário, a institucionalização do MFA entra na ordem do dia - ultrapassada a questão da descolonização, tornava-se urgente clarificar as efectivas atribuições dos centros de poder e, sobretudo, definir o alcance do poder militar. Um primeiro passo nesse sentido será a constituição, no imediato pós 28 de Setembro8, do Conselho dos Vinte, embrião do futuro Conselho da Revolução9.

Paralelamente, a premência em criar as condições necessárias para que, em cumprimento do estipulado no Programa, as eleições para a Assembleia Constituinte se realizassem. Porque, como proclama Vasco Gonçalves nas celebrações da implantação da República de 1974,

“Será o povo português quem livremente escolherá o seu futuro político. As Forças Armadas pretendem apenas lançar os fundamentos da voz do povo. Será o povo português que conscientemente, pelo seu voto, decidirá o seu futuro em eleições para a Assembleia Constituinte. E essas eleições, podeis estar certos, serão eleições livres”10.

III A realização de eleições em questão

Se, regra geral, todos os autores que se debruçam sobre o assunto são unânimes em destacar a importância do debate em torno do Programa Económico e Social nestes meses, a verdade é que a polémica sobre a realização...

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