Os Actos Adicionais à Carta Constitucional de 1826

AutorPaulo Jorge Fernandes
Páginas563-583

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I Introdução

Outorgada em Abril de 1826 a partir do Rio de Janeiro pelo rei D. Pedro IV, com vários períodos de vigência (1826-1828, 1834-1836 e 1842-1910) e sucessivamente revista em 1852, 1885, 1895-1896 e 1907 através dos chamados Actos Adicionais, a Carta Constitucional é ainda hoje a Lei Fundamental portuguesa que durante mais tempo se manteve em vigor. Este texto pretende discutir as circunstâncias políticas que permitem explicar a longevidade deste texto, fundamental na construção da modernidade política portuguesa, incidindo sobre os momentos em que o documento foi sujeito a sucessivas revisões.

Uma vez que o I Acto Adicional (1852) foi analisado por outro texto deste dossier e as III (1895-1896) e IV (1907) revisões da Carta foram aprovadas praticamente sem discussão pública relevante, centraremos a nossa atenção sobre a que ocorreu em 1885. Esta reforma foi apresentada e examinada pela historiografia como um momento de oportunidade perdida pela monarquia para se auto-regenerar através da integração do nascente movimento republicano na ordem política da época. De acordo com as interpretações correntes, o Acto Adicional de 1885 resultou num maior encerramento do sistema político nacional às novas franquias democráticas que começavam a ganhar visibilidade política no país1.

O presente artigo procura demonstrar como o entendimento alcançado entre as elites dos dois principais partidos do sistema de governação da época, que resultou no Acto Adicional de 1885, derivou mais de uma cedência das lideranças regeneradora e progressista para satisfazer interesses de facções contestatárias dos respectivos partidos do que de qualquer estratégia concertada para bloquear o acesso dos republicanos ao arco governativo.

II O estabelecimento do difícil consenso político no portugal liberal: o acto adicional de 1852

O liberalismo chegou a Portugal pela via revolucionária. Do pronunciamento militar ocorrido a 24 de Agosto de 1820, no Porto, nasceu uma assembleia constituinte cujo principal resultado seria a discussão, aprovação e votação da Constituição de 1822, sancionada pelo rei a 23 de Setembro. Tratava-se de um documento avançado para a época, inspirada nas leis fundamentais francesas de 1791 e 1795, embora se aproximasse mais da Constituição espanhola de Cádis de 1812.

A organização do poder político passou a obedecer a três grandes princípios básicos: soberania nacional, representação política plena, assim como separação e independência dos poderes. Ficava decretado que “a soberania reside em a Nação”, definindo-se esta como a “união de todos os portugueses de ambos os hemisférios”. A dita soberania era considerada única, ou seja, não se previam outras. Para além disso, seria indivisível, não podendo

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ser alvo de partilha. Por fim, era tida como inalienável, não sendo permitido à Nação despojar-se de tal título. Por outro lado, apenas poderia ser exercitada pelos representantes do povo legalmente sufragados e reunidos em Cortes. Estipulava-se ainda que os poderes eram divididos entre as esferas legislativa, executiva e judicial e cada uma destas seria de tal forma independente que não poderia arrogar em si as atribuições de outra. Por diferentes palavras, proibiuse a concentração de competências em uma só autoridade e impôs-se a sua repartição por vários titulares.

O poder legislativo foi confiado a uma única câmara, a Câmara dos Deputados, eleita de forma directa, por todos os cidadãos masculinos sem restrições censitárias específicas, maiores de 25 anos, excluindo os criados, vadios e os membros do clero regular. As legislaturas teriam a duração de dois anos e eram inelegíveis, os que não tinham direito de voto, todos os que não se conseguissem sustentar, os secretários e os conselheiros de Estado, os empregados da Casa Real, os estrangeiros, os bispos, os párocos e os magistrados. Competia às Cortes fazer e revogar as leis, promover a observância da Constituição, escolher a regência em caso de vacatura do trono e resolver qualquer dúvida que surgisse em relação à questão da sucessão da Coroa, fixar o contingente militar, estabelecer anualmente o montante dos impostos, autorizar o governo a contrair empréstimos, estipular os meios adequados para o pagamento da dívida publica, regular a administração dos bens nacionais, criar ou suprimir empregos e ofícios públicos e verificar a responsabilidade dos Secretários de Estado.

Ao rei cabia o exercício do poder executivo, sendo auxiliado na tarefa pelos Secretários de Estado. A autoridade do monarca provinha da Nação e fundava-se na Constituição e já não no direito divino ou no princípio hereditário, perdendo a sua pessoa o carácter sagrado. Competia-lhe sancionar e promulgar as leis; nomear e demitir os secretários de Estado; escolher os magistrados de acordo com proposta do Conselho de Estado; seleccionar os funcionários públicos para cargos não electivos, assim como os bispos e os comandantes das Forças Armadas; nomear embaixadores; dirigir negociações políticas e comerciais com o estrangeiro; declarar a guerra e fazer a paz e concluir tratados de aliança. Não poderia impedir as eleições dos Deputados, opor-se à reunião das Cortes, proceder à sua prorrogação e dissolução ou protestar das suas decisões, lançar impostos e suspender magistrados. O soberano, antigo senhor absoluto do reino, ficava numa posição de subalternidade em relação a um parlamento designado pelos cidadãos dotados de capacidade electiva.

O poder judicial pertenceria aos juízes, instituindo-se ainda a igualdade de todos os indivíduos perante a lei. A Constituição de 1822 previu ainda a criação do Conselho de Estado, um órgão de consulta do rei em “negócios graves”, sendo composto por 13 personalidades, embora o monarca apenas detinha o poder de nomear um conselheiro, sendo os restantes eleitos pelas Cortes por um período de 4 anos2.

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No limite, pode afirmar-se que esta era uma Constituição quase republicana e, essencialmente, de feição parlamentarista, uma vez que o rei aparecia reduzido praticamente a uma condição de alto funcionário público, ficando os poderes mais importantes concentrados nas mãos do parlamento. De acordo com este figurino, a Constituição representava a consagração escrita da Revolução e passaria para o futuro como o código que serviria de guia à corrente monárquica mais progressista.

O período de vigência do primeiro liberalismo entraria na história com a designação de vintismo, mas o seu prazo de validade seria curto3. A independência do Brasil, ocorrida em Setembro de 1822, e as contradições internas que envolveram esta experiência política abriram caminho ao triunfo da contra-revolução por via do levantamento militar da Vilafrancada, em Maio/Junho de 1823, conduzido por D. Miguel. As Cortes interromperam os trabalhos, a Constituição foi suspensa, as câmaras municipais constitucionais e as Guardas Nacionais dissolvidas4.

A segunda vida do liberalismo lusitano começou com a morte inesperada do rei D. João VI, no início de 1826. D. Pedro IV, o Imperador do Brasil, acabou por ser aclamado rei, mas viu-se na impossibilidade de reunir ambas as coroas na sua pessoa porque a Constituição brasileira não admitia fórmulas políticas que questionassem a independência do país e porque a sua legitimidade régia era contestada em Portugal. Para deixar clara a sua opção sul americana, o efémero monarca resolveu a questão através da outorga de uma Constituição da sua própria autoria, em Abril, a Carta Constitucional de 1826, e da abdicação do ceptro europeu na sua filha menor, D. Maria da Glória, em Maio.

A nova Constituição prometia o que parecia impossível: casar as conveniências da reacção com os interesses materiais e morais da revolução. Tratava-se de encontrar o meio-termo entre a ordem liberal e o absolutismo. Deste equilíbrio resultou uma solução de compromisso inspirada no modelo da monarquia de Luís XVIII5.

A Carta era uma Constituição outorgada, isto é, representava uma dádiva do soberano aos súbditos, o que significava uma mudança do paradigma político. O documento de D. Pedro IV assentava no princípio monárquico e não tanto no democrático, afastando-se das conquistas da Constituição de 1822. O poder constituinte transferia-se da nação reunida em Cortes eleitas para a figura do monarca e o princípio da soberania nacional

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passava a ser repartido entre o rei e a nação. O soberano impunha a sua vontade à nação através da doação da lei fundamental do Estado.

A Carta Constitucional de 1826 resultou, assim, num diploma bastante mais conservador do que a anterior Constituição. Para além das influências da Carta francesa de 1814 e das ideias teóricas de Benjamim Constant, podiamse encontrar muitas aproximações à Constituição brasileira de 1824, que lhe serviu de base. Havia outras diferenças essenciais entre as duas primeiras constituições portuguesas. As eleições tornaram-se indirectas, em dois níveis, o que passou a ser descrito como uma condição favorável à erupção de fenómenos de corrupção e de clientelismo políticos. Caberia aos cidadãos activos eleger, em assembleias paroquiais, os eleitores de província. Num segundo momento, seriam estes quem procederiam à escolha dos deputados. O direito de sufrágio passou, igualmente, a depender da capacidade económica dos indivíduos, deixando de ser inerente à sua simples condição de cidadãos. Foi introduzido o sufrágio censitário, ficando a competência eleitoral activa por conta dos homens que pelo menos apresentassem um rendimento anual de 100$000 réis, em bens de raiz, indústria, comércio ou de emprego, só podendo ser eleitos deputados os que vencessem 400$000 réis. As legislaturas aumentaram para 4...

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