Sistemas eleitorais e democracia representativa no limiar do constitucionalismo português

AutorJosé Domingues - Manuel Monteiro
CargoUniversidade Lusíada - Norte (Porto) - Universidade Lusíada - Norte (Porto)
Páginas593-639
SISTEMAS ELEITORAIS E DEMOCRACIA
REPRESENTATIVA NO LIMIAR DO
CONSTITUCIONALISMO PORTUGUÊS
ELECTORAL SYSTEMS AND REPRESENTATIVE
DEMOCRACY IN THE THRESHOLD OF PORTUGUESE
CONSTITUTIONALISM
José Domingues
Universidade Lusíada - Norte (Porto)
Manuel Monteiro
Universidade Lusíada - Norte (Porto)
SUMÁRIO: I. INTRODUÇÃO.- II. O SISTEMA ELEITORAL CONSUETUDINÁRIO.-
III. O NOVO SISTEMA ELEITORAL VINTISTA.- 1. O modo de eleição dos
Deputados.- 2. A modalidade do voto.- 3. O critério de atribuição dos mandatos.-
IV. CONCLUSÃO.
Resumo: O parlamento (Cortes, para o caso português sub judice) é o símbolo
supremo da democracia representativa. Na base da sua formação está a eleição
dos representantes por parte da comunidade política. Este trabalho vai centrar-se
no modo de eleição dos representantes às primeiras Cortes constituintes
portuguesas, que são convocadas para a elaboração da Constituição de 1822. No
ano da revolução de 1820 vai dar-se o embate entre o velho sistema eleitoral
medieval e o novo sistema eleitoral vintista, que acabou por definir a trajetória a
seguir pela representação política e marcou de forma indelével o parlamentarismo
português até à actualidade. Tendo por base essa liça entre os dois processos
eleitorais, este artigo pretende aferir a evolução da teoria do voto e do direito
eleitoral no espaço cronológico português de 1820 a 1822.
Abstract: Parliament (“Cortes”, for the Portuguese case sub judice) is the supreme
symbol of representative democracy. At the cornerstone of its formation is the
election of the representatives by the political community. This work will focus on
the way of electing representatives to the first Portuguese constituent “Cortes”,
which are called for the elaboration of the Constitution of 1822. In the year of the
revolution of 1820 there will be a clash between the old medieval electoral system
and the new vintista electoral system, which ended up defining the course to be
followed by political representation and marked the Portuguese parliamentarism
indelibly until now. Based on this fray between the two electoral processes, this
article intends to assess the evolution of the theory of voting and electoral law in
the Portuguese chronological space from 1820 to 1822.
Palavras chave: Democracia Representativa, Parlamento, Eleições, Portugal,
Século XIX.
Historia Constitucional (ISSN 1576-472)
n.19, 2018, págs. 593-639, http://www.historiaconstitucional.com
Key Words: Representative Democracy, Parliament, Elections, Portugal, XIX
Century.
I. INTRODUÇÃO.
Os sistemas eleitorais e a representação política são um ideal arquisecular
que continua a ocupar um lugar de destaque e se mantém bem aceso como tema
de preferência no seio do pensamento político-constitucional hodierno. A grande
controvérsia da actualidade –que não se apresenta fácil de solucionar ou, sequer,
de remediar– oscila entre o seu incontestável desempenho como factor
legitimador do Estado de Direito Democrático, por um lado, e a responsabilidade
que se lhe possa vir a imputar na debilitação da própria democracia, por outro
lado. A conciliação da democracia com a representação continua a ser o grande
desafio para a esmagadora maioria dos regimes políticos contemporâneos1.
A designação democracia representativa surgiu do casamento entre dois
termos, à partida, incompatíveis representação e democracia– feito por Alexander
Hamilton, numa carta dirigida em 1777 ao governador Morris2. Sem embargo, a
ideia de uma representação política e a existência de governos representativos é
muito anterior e terá sido uma das grandes conquistas da Idade Média europeia:
“the idea of political representation –assevera Joseph Strayer– is one of the great
discoveries of medieval governments; the Greeks and the Romans may have made a
few tentative moves in this direction, but they have never explored the technique
thoroughly”3.
A Igreja foi pioneira a introduzir a representação política na Europa, nas
palavras de Kenneth Pennington, “the jurisprudence of representation entered
European society trough the Church”4. Neste sentido, Julien Théry, afirma
“Athènes fut le cadre d’une démocratie directe et Rome d’une république censitaire.
Mais les civilisations de l’Antiquité, pas plus qu’aucune autre avant la Chrétienté
latine du XIIe siècle, n’ont jamais connu la notion de représentation politique. L’idée
qu’un seul, ou un nombre restreint d’individus, puisse agir pour un plus grand
nombre, se substituer légitimement aux gouvernés pour exercer le pouvoir en leur
nom, ou encore représenter les gouvernés auprès des gouvernants, est une création
1 V. g., Pierre ROSANVALLON, La Contre-Démocratie: La politique à l'âge de la défiance, Paris,
Seuil, 2006; Nadia URBINATI, “Representative democracy and its critics”, in Sonia ALONSO et al.
(eds.), The Future of Representative Democracy, Cambridge University Press, 2011, pp. 1-27; Pierre
ROSANVALLON, Le Bon Gouvernement, Paris, Seuil, 2015; David VAN REYBROUCK, Against Elections:
The Case for Democracy, Translated by Liz Waters, London, 2016; Jason BRENNAN, Against
Democracy, Princeton University Press, 2016.
2 John KEANE, Vida e Morte da Democracia, tradução de Nuno Castello-Branco Bastos, Lisboa,
Edições 70, 2009, p. 186: “Alexander Hamilton (1756-1804) foi, porventura o primeiro americano a
conseguir que as palavras representação e democracia dessem o abraço uma à outra e, em dada
ocasião, chegou até a empregar uma locução nova em folha, «democracia representativa», claramente
sem fazer a mínima ideia do que estava a dizer”.
3 Joseph STRAYER, On the Medieval Origins of the Modern State, Princeton University Press,
1970, pp. 65-67. Peter PULZER, Political Representation and Elections in Britain, Routledge, 2010 p.
13: "Parliaments are a l egacy of the feudal Middle Ages".
4 Kenneth PENNINGTON, “Politics in Western Jurisprudence”, in The Jurists' Philosofy of Law
from Rome to the Seventeenth Century, Andrea PADOVANI and Peter G. STEIN (eds.), Dordrecht,
Springer, 2007, pp. 186 e ss.
José Domingues y Manuel Monteiro
594
du Moyen Âge occidental. Elle est née du principe médiéval selon lequel tout pouvoir
légitime doit recueillir l’assentiment de ceux sur qui et au nom de qui il s’exerce”5.
A base do ideal medievo de se enviarem delegados às assembleias
representativas, que tivessem poder bastante e suficiente para vincular toda a
comunidade eleitoral, assenta no princípio do Q. O. T (quod omnes tangit) ou
princípio do consentimento romano, segundo o qual, o que a todos importa por
todos deve ser aprovado6. Esta máxima latina vai contagiar, de imediato, o poder
político secular e, a partir do século XIII, deu origem às assembleias
representativas medievais –Cortes, Parliaments, Etats-généraux, Diet, Sejm,
Rigsdag, Riksdag, Generallandtagconvocadas pelos vários líderes europeus nos
seus respectivos territórios de acção política7.
Todo o cerne da democracia representativa ou indirecta, desde esses
recuados tempos medievais, assenta no exercício do poder político pelo conjunto
dos membros da coletividade (potestas ou soberania popular), através de órgãos
representativos. O que pressupõe que os titulares desses órgãos representativos
sejam escolhidos pelos e, em princípio, entre os membros da própria comunidade.
Ao lado da máxima da jusromanística de que “o que a todos diz respeito, por todos
deve ser aprovado” implementou-se a máxima de que “aqueles que exercem o
poder em nome de todos, por todos devem ser eleitos”.
Em suma, são as estruturas eleitorais que fazem com que os governos sejam
representativos e espelham o grau de organização política da própria
comunidade. Por isso, em 1832, Ferreira Borges entendia que “o grande, o único
poder político constitucional é o eleitoral, é ele só a fonte de todos e o princípio motor
da organização social”8. O que nos conduz ao mais elementar e enigmático axioma
que está na origem e fundamento de qualquer democracia representativa: (i) a
democracia directa torna-se inviável em sociedades humanas numerosas e
complexas e em espaços territoriais extensos, impondo-se-lhe a democracia
representativa como a melhor alternativa, i. e., a representação nasceu contra o
5 Julien THÉRY, “Moyen Âge”, in Dictionnaire du Vote, dir. Pascal Perrineau e Dominique Reynié,
Paris, Presses universitaires de France, 2001, pp. 667-678 (667).
6 Quod omnes similiter tangit, ab omnibus comprobetur” (Cód. 5.59.5.2). No Corpus de
Justiniano o Q.O.T. é um princípio sem qualquer significado constitucional, exclusivo de direito
privado e de assuntos entre particulares, que foi adaptado à causa pública e aos assuntos de
Estado pelo talento dos jurisperitos da Idade Média. Kenneth PENNINGTON, “Representation in
Medieval Canon Law", in The Jurist 64, 2004, p. 361: The jurisprudential concept of “representatio”
as agency is, per haps, one of the most important contributions that the medieval jurists of the Ius
commune made to Western legal thought”.
7 O princípio do Q. O. T. foi usado para convocar parlamentos, primordialmente, pelo
imperador Frederico II em 1231 e 1244, por Eduardo I de Inglaterra em 1295, por Filipe IV de
França em 1302; e consta positivado nas Ordenações da Justiça de Florença de 1293 e no Liber
Sextus de Bonifácio VIII de 1298 (VI 5.[13].29). Cf. David STASAVAGE, “Representation and
Consent: Why They Arose in Europe and Not Elsewhere”, in Annual Review of Political Science 19,
2016, pp. 145-162; Orazio CONDORELLI, «Quod omnes tangit, debet ab om nibus approbari». Note
sull'origine e sull'utilizzazione del principio tra medioevo e prima ètat moderna”, in Ius Canonicum
53, 2013, pp. 101-127; Bernard MANIN, The Principles of Representative Government, Cambridge
University Press, 1997, p. 87; Arthur P. MONAHAN, Consent, Coercion, and Limit: The Medieval
Origins of Parliamentary Democracy, Leiden, Brill, 1987, pp. 97 e ss; Hanna PITKIN, The Concept of
Representation, Berkeley, University of California Press, 1967, p. 85.
8 José Ferreira BORGES, Cartilha do Cidadão Constitucional Dedicada à Mocidade Portuguesa,
Londres, Hansard, 1832, p. 14.
SISTEMAS ELEITORAIS E DEMOCRACIA REPRESENTATIVA NO LIMIAR DO ...
595

Para continuar leyendo

Solicita tu prueba

VLEX utiliza cookies de inicio de sesión para aportarte una mejor experiencia de navegación. Si haces click en 'Aceptar' o continúas navegando por esta web consideramos que aceptas nuestra política de cookies. ACEPTAR