Problemas Jurídicos da Transferencia Electrónica de Dados (EDI).

AutorMiguel Pupo Correia
CargoProfessor de Direito Comercial - Universidade Lusíada - Lisboa. Advogado.

PROBLEMAS JURÍDICOS DA

TRANSFERÊNCIA ELECTRÓNICA DE DADOS (EDI)

Miguel J. A. Pupo Correia

I - INTRODUÇÃO

  1. Define-se o EDI (também designado por vezes entre nós pela sigla TED, de "Transferência Electrónica de Dados"), como «a transferência de dados com formato normalizado entre os sistemas informáticos de aplicação com uma intervenção manual mínima» (1).

    Este enunciado um tanto hermético procura traduzir uma tecnologia telemática - isto é, combinando meios de informática e de telecomunicações - que permite a substituição dos meios tradicionais de comunicação escrita utilizados na comunicação entre parceiros comerciais (sempre baseados em suportes de papel, mesmo quando associados a transmissão por meios telecomunicativos, como a telegrafia, o telex e o fac-símile ou fax).

    Esta transmissão de mensagens efectua-se, como se sabe, em regra através de redes de telecomunicações públicas ou privadas, sendo, no primeiro caso, disponibilizada por uma empresa prestadora de serviços de telecomunicações complementares fixos de transmissão de dados.

    É, porém, indispensável que o intercâmbio por via electrónica diga respeito a dados estruturados, remetidos em mensagens normalizadas: quer-se com isto significar que os dados são seleccionados e sequenciados segundo determinadas regras e introduzidos em mensagens cuja formalização não é feita livremente pelo emitente, mas sim definida previamente por organismos normalizadores (2).

    Esta normalização das mensagens destina-se a revestir de segurança a troca de documentos de relevante valor jurídico, por formalizarem declarações de vontade constitutivas de contratos ou constituírem provas de execução dos respectivos direitos e obrigações. Assim, a mensagem informática normal emitida pelo autor do documento é convertida por um "tradutor" numa mensagem normalizada e de novo "traduzida" no destino, de modo a que o destinatário possa dispor do texto para um qualquer tratamento informático (3).

  2. Genericamente, o EDI existe para servir o comércio, expressão que devemos entender aqui, não no significado que reveste face ao C. Comercial, mas numa acepção extremamente abrangente, que cobre todas as actividades económicas e, mesmo, larga parte dos serviços públicos e privados com elas relacionados. Revestem já especial importância os usos de EDI em:

    - empresas que exploram actividades comerciais em sentido estrito, nas relações que estabelecem com fornecedores, transportadores, bancos, seguradores, prestadores de serviços, etc.; e certas actividades comerciais especificamente vocacionadas para o uso desta tecnologia, como são as instituições financeiras (transferências electrónicas de meios de pagamento: p. ex., rede SWIFT interbancária), os intermediários das operações de mercados de valores mobiliários (p. ex., operações de bolsa);

    - sectores e serviços da Administração Pública que de forma mais massiva e directa estabelecem trocas de mensagens com operadores económicos: alfândegas, serviços fiscais relativos a impostos indirectos, serviços da Segurança Social, serviços estatísticos, etc.

    Quer isto dizer que o EDI não tem o seu campo de utilização confinado exclusivamente à celebração e execução de contratos e outros negócios jurídicos comerciais entre empresas. Muitos outros aspectos das actividades económicas ou com elas relacionadas já hoje e cada vez mais dão azo à utilização do EDI, a fim de beneficiarem das enormes vantagens de celeridade, precisão e economicidade que esta forma de comunicação proporciona às entidades nela envolvidas.

  3. Há que reconhecer, todavia, que o conceito de EDI faz imediato apelo à ideia da sua utilidade no âmbito das transacções comerciais, isto é, como via para a transmissão das declarações de vontade que consubstanciam a celebração de contratos comerciais e materializam a execução das prestações por eles geradas.

    Realmente, embora a ideia de contrato ande vulgarmente associada a um documento escrito e assinado por duas ou mais partes, a verdade é que, das transacções comerciais entre empresas, só uma pequena minoria de casos dão origem à celebração de contratos reduzidos a um instrumento único e subscrito pelos contraentes. A prática habitual envolve a troca de um certo número de mensagens distintas física e temporalmente, que materializam as declarações de vontade pelas quais as partes reciprocamente se obrigam.

    Ora, como a nossa cultura negocial e jurídica se acha construída em torno do uso de suportes escritos em papel para tais mensagens, toda essa base conceitual fica posta em questão quando se aborda a possibilidade de elas passarem a ser trocadas via EDI. Não há dúvida de que a substituição do papel, como suporte da transmissão dos dados relativos à negociação de um contrato comercial, levanta novos problemas e lança novos cambiantes em áreas estudadas no contexto tradicional, dando causa a que se questione a validade dos contratos negociados e celebrados sob forma EDI.

    O que é tanto mais importante quanto é certo que o mundo da contratualidade comercial assenta necessariamente e desde sempre em alicerces jurídicos e, por isso, exige fundamentalmente ao Direito regras claras e seguras.

    Porém, quase todas as legislações nacionais desconhecem ainda a realidade do EDI, não consagrando normas específicas destinadas a regular as implicações deste ambiente tecnológico de comunicação de mensagens(4).

    E não conhecemos nenhum caso de decisão judicial de qualquer litígio relacionado com o uso de EDI em transacções comerciais.

    Perante este deserto legislativo e jurisprudencial, as empresas e outras entidades que desejem estabelecer relações comerciais via EDI terão natural tendência a valer-se do meio tradicional da auto-regulação: recorrendo ao princípio da autonomia da vontade (art. 405º do nosso C. Civil), estabelecerão, introdutoriamente, por via de um contrato normativo, as regras a que irá sujeitar-se a troca entre elas de mensagens EDI para consubstanciar a celebração dos futuros contratos que prevêem vir a celebrar, nomeadamente contemplando os seguintes temas gerais: celebração de futuros contratos; responsabilidade das partes; sanções por incumprimento; solução de litígios.

    Em todo o caso, estas regras contratualmente formuladas terão de conformar-se com o Direito positivo vigente. E, para além daquelas, as lacunas de regulamentação e as dúvidas existentes terão de resolver-se pelo recurso a normas gerais de Direito, as quais, também por regra, não foram pensadas pelos legisladores tendo presentes as implicações da telemática.

  4. No entanto, daqui não resulta que a irresistível vaga de expansão do uso do EDI - que torna previsível que ele se venha a transformar, num horizonte temporal bastante curto, em principal meio de concretização das transacções comerciais -, se depare necessariamente com barreiras legais extremamente embaraçosas. Muitos dos entraves surgidos na prática do EDI estão mais relacionadas com a relutância em abandonar convenções e rotinas administrativas baseadas no primado do papel, do que com qualquer requisito legal de fundo. Relutância que, no entanto, vai pouco a pouco desaparecendo, à medida em que as inegáveis vantagens económicas e operacionais do EDI se tornam evidentes: a economia dos 3,5% a 15% do valor das mercadorias que constituem custos da "via papel" nas transacções; a inegável aceleração e facilitação das operações comerciais e administrativas.

    Mas isto não significa que se possam negligenciar os problemas jurídicos suscitados pelo EDI, até porque, para além do vácuo normativo específico já apontado e das interrogações que ele suscita quanto à interpretação do direito positivo geral vigente, o EDI, pelas inovações que traz à própria genética contratual, é, em si mesmo, um potencial criador de problemas jurídicos, cuja complexidade se tornará mais notória à medida que se for alargando o leque das utilizações concretas desta tecnologia.

    As observações aqui formuladas continuam, entretanto, a ter um carácter muito perfunctório, não tendo havido da nossa parte ainda condições para uma investigação aprofundada e conclusiva desta temática.

    II - POSSÍVEIS OBSTÁCULOS À ADOPÇÃO DO EDI

    Em dois estudos elaborados no contexto do Programa TEDIS (5), apontaram-se as dificuldades que enfrenta o EDI na Europa, as quais decorrem essencialmente das obrigações impostas pelo direito dos Estados-membros da hoje União Europeia de criar, entregar, expedir e conservar documentos sobre suporte de papel e assinados, tendo sobretudo em vista assegurar a segurança e certeza das relações jurídicas, através da maior fiabilidade dos suportes das manifestações de vontade (6).

    Deste modo, poderão identificar-se os seguintes tipos de problemas acerca da viabilidade jurídica do EDI:

    1. Problemas jurídicos inerentes à formação dos contratos:

    2. Problemas de responsabilidade jurídica;

    3. Problemas resultantes de exigências de ordem administrativa.

    Vamos examinar em que termos se colocam estes problemas, quer nos principais países europeus - com sintéticas referências de direito comparado -, que face ao direito português.

    1. FORMAÇÃO DOS CONTRATOS

  5. Algumas notas introdutórias

    1.1Parece-me interessante fazer notar, de início, que a utilização do EDI na formação dos contratos não reveste sempre o mesmo conteúdo prático negocial e, por isso mesmo, não assume sempre o mesmo significado jurídico e respectivas consequências (7).

    Com efeito, umas vezes o EDI é usado como um simples meio de transmissão de declarações de vontade negocial, definidas e formuladas individualizadamente para a respectiva operação negocial. Tudo se passa como se a remessa da mensagem se fizesse por correio, telex, fax ou telegrama, com a só diferença de se tratar de mensagens pré-formatadas e transmitidas por uma específica modalidade de correio electrónico. Por isso mesmo, são aqui já detectáveis problemas específicos, v.g. quanto ao formalismo negocial, quanto à identificação do declarante, quanto à autenticidade do conteúdo da declaração, etc.

    Noutros casos, o...

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