Modificagóes na obra de arquitectura: regime do artigo 60.° do código do direito de autor e dos direitos conexos (CDADC)

AutorMaría Victoria Rocha
Páginas541-562

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(Comentario de la Sentencia del Tribunal da Relacáo de Coimbra de 25 de marzo de 2003)

I Antecedentes, feitos e doutrina do acordao

Acordam no Tribunal da Relacáo de Coimbra:

A Vepor - Construgóes e Propriedades, S. A., intentou providencia cautelar nao especificada contra Maria Alzira Amaro Neves, com os seguintes fundamentos:

— Tem em construgáo um conjunto habitacional, segundo projecto da autoría da requerida, arquitecta Alzira Neves, por encomenda sua;

— Apesar de devidamente licenciado pela Cámara Municipal, o Pro jecto «tinha algumas ilegalidades», as quais, logo que detectadas pelos técnicos que acompanhavam os trabalhos, foram comunicadas a reque rida, para efectuar no projecto as alterac,óes e submeté-las ao necessário licenciamento administrativo;

— A requerida recusou-se a fazer essas alteracóes, senáo contrapar tidas exorbitantes;

— Perante esta atitude da requerida, a requerente prosseguiu a cons truyo, corrigindo «em obra» os «erros» do projecto;

— Ficou, por isso, a construyo em desconformidade com o projecto aprovado, o que acabou por determinar o embargo da obra pela Cámara;

— Está a sofrer um prejuízo diario superior a € 10.000, pelo que pediu que, nos termos do artigo 381.° y ss. CPC, o tribunal decretasse providencia nao especificada «... suspendendo os direitos dePage 542autor que protegem o projecto de arquitectura em causa, para que outro profissional possa apresentar as alteragóes ao projecto inicial, elaborar outros projectos e praticar quaisquer actos necessários ao normal andamento da obra, pois só assim haverá concordancia entre o projecto de arquitectura e a edificado, facto que irá permitir o levantamento do embargo decretado pela Cámara Municipal de ílhavo, sem audiencia da requerida, tudo para minimizar de todos os prejuízos decorrentes do comportamento de total incumprimento e desleixo da requerida, cujo montante, somente no que agora é possível de calcular, cifra a quantia superior a €10.000 diarios»...

A requerida, mandada citar, deduziu oposigáo, arguindo a excepcáo da ilegitimidade passiva e a nulidade do processo, por falta de causa de pedir, e impugnando, ponto por ponto, os factos alegados.

Foi, de imediato, proferida decisáo que, por ilicitude do pedido formulado, porque o direito moral de autor é inalienável, irrenunciável e imprescritível,;w/go« improcedente o procedimento.

Inconformada, agrava a requerente, formulando as seguintes conclusóes:

  1. Ao decretar o indeferimento da providencia cautelar nao espe cificada, está o douto despacho a violar a norma consignada no artigo 60.° do C. de Direito de Autor, ao nao admitir como possíveis as modificacóes ao projecto por parte da agravante.

  2. Afirmando que a pretensáo da agravante no procedimento nao é viável por se tratar de direitos moráis e estes sao indisponíveis.

  3. Ao nao admitir a possibilidade de a obra arquitectónica sofrer modificac,óes por parte do proprietário da mesma, mesmo sem acordó do seu autor, e aplicando a situac,áo concreta os n.os 1 e 2 do artigo 56.° do CDA, está o douto despacho a aplicar erradamente urna norma de direito a situa§áo concreta, está assim o douto despacho a violar o men cionado artigo.

  4. Ao aplicar cegamente o artigo 56.°, n.os 1 e 2, CDA e ao omitir a aplicabilidade do artigo 60." do mesmo diploma legal, violou o douto despacho o principio da legalidade, principio com consagrado consti tucional, pois aplicou o primeiro artigo em detrimento da lei e omitiu a aplicado do segundo, pelo que violou o principio da legalidade con sagrado no artigo 18.° da CRP.

A) De facto

Os factos a considerar, dado o fundamento e sentido da decisáo sao os alegados pela requerente, ácima reproduzidos em síntese.

B) De direito
  1. Depois de estatuir, no artigo 56.°, o direito do autor (criador intelectual) á genuinidade e integridade da obra (protegida —art. 2.°— ePage 543proibir, no artigo 59.°, n.° 1, a modificado da «obra» sem o seu consentimento, o Código do Direito de Autor (CDA) regula especialmente o capítulo da introducto de «modificares de projecto arquitectónico», no artigo 60.°:

    «1. O autor de projecto de arquitectura ou de obra plástica executada por outrem e incorporada em obra de arquitectura tem direito de fiscalizar a sua construcáo ou execuqáo em todas as fases e pormenores, de maneira a assegurar a exacta conformidade da obra com o projecto de que é autor.

    2. Quando edificada segundo projecto, nao pode o dono da obra, duran te a construqáo nem após a conclusáo, introduzir nela alteraqoes sem consulta previa ao autor do projecto, sob pena de indemnizaqáo por perdas e danos.

    3. Nao havendo acordó, pode o autor repudiar a paternidade da obra modificada, ficando vedado ao proprietário invocar para o futuro, em proveito próprio, o nome do autor do projecto».

    Esta disciplina, mantendo o principio da imodificabilidade do projecto, na sua concretizac,áo em obra, sem o acordó previo do autor do projecto, previne e regula o conflito na falta desse acordó.

    Em que termos? — Deferindo ao «proprietário» a faculdade de introduzir as altera res que bem entenda, mais ou menos desfigurantes do projecto, ao mesmo tempo que o submete á obrigac,áo de indemnizar o autor do projecto por perdas e danos; e

    — Atribuindo ao autor do projecto a faculdade de repudiar a pater nidade da obra modificada (a par do direito á indemnizagáo por perdas e danos), com o que ficará o proprietário da obra, havendo o repudio, impedido de invocar para o futuro, em seu beneficio, o nome do autor do projecto inicial.

    A ambas as partes atribuí a lei um «poder soberano» da sua vontade: ao proprietário, o de introduzir as alterac,óes, e ao autor do projecto o de repudiar a paternidade da obra modificada.

    No lado passivo destes poderes estáo as sujeic,óes respectivas: a de o arquitecto, autor do projecto, suportar as alterac,óes pretendidas ou introduzidas, e a de o proprietário ver repudiada a paternidade da obra, com a consequente perda das vantagens dessa paternidade.

    Está, assim, claramente desenliada urna relac,áo jurídica composta por direitos subjectivos do tipo potestativo, para ambas as partes, definido este como o «poder de, por um acto livre de vontade, só por si ou integrado por urna decisáo judicial, produzir efeitos jurídicos, que inevitavelmente se impóem á contraparte (MOTA PINTO, Teoría Geral do Direito Civil, 1976, pág. 140).

    Ora, salvo disposic,áo expressa da lei (o que acontece, v. g. no divorcio litigioso —art. 1.779.° CC— ou na constituido de servidáo de passagem dum predio encravado, na falta de acordó —art. 1.550CC) o exer- | cício do direito potestativo pelo seu titular produz os seus efeitos naPage 544conformacáo da relac.áo jurídica sem necessidade de recurso a decisáo judicial. Sao os chamados «direitos potestativos de carácter puramente substancial». Nesta categoria se inserem os direitos em causa, quer do dono da obra quer do autor do projecto, de que sao também exemplos, entre outros, o direito de resolugáo do contrato por incumprimento — art. 432.° CC— e o direito de resolver o contrato na venda a retro — art. 927.° CC—.

    Assim, no caso, a requerente «Vepor» podia, por si só, realizar o seu interesse, pela supremacía da sua vontade e respectiva sujeigáo da senhora arquitecta requerida, nos termos do citado artigo 60." do CDA, sem necessidade de recurso a decisáo judicial.

  2. Concretizando:

    Com base num conflito sobre a introducto no projecto arquitectónico, encomendado pela requerente «Vepor» á arquitecta requerida, aquela requereu como providencia cautelar a «suspensáo dos direitos de autor» da requerida sobre o projecto.

    Estáo, pacificamente, fora de causa nao só os direitos gerados pelo contrato de prestac,áo de servidos ou empreitada que teve por objecto o projecto de arquitectura, mas também os direitos de carácter patrimonial do conteúdo do direito de propriedade intelectual (direito de autor) sobre esse projecto, circunscrevendo-se a dúvida apenas nos direitos de natureza pessoal (direito moral) deste.

    Desde a contestagáo que a requerida tem vindo a proclamar, com o aplauso, alias, do Parecer junto pela recorrente (fls. 275), que a lei nao contempla a figura da suspensáo dos direitos de autor.

    Cremos, com eles, que o Código do Direito de Autor desconhece essa «criatura», sendo certo, por outro lado, que, em geral, a suspensáo de direitos, inclusive os de propriedade (art. 62.° da Constituido) só é possível nos casos excepcionais, como efeito da declarado do «estado de sitio» ou do «estado de emergencia» —art. 19.° da CRP—.

    Nao está, pois, a requerente assistida do direito a ver suspenso o direito de autor da requerida sobre o projecto de arquitectura que a requerente lhe encomendou, nem a título cautelar nem a título definitivo.

    Nao se «aterrorize» esta conclusáo com a impossibilidade de recurso por parte da requerente a outro arquitecto para a legalizado das alteragóes. Cremos que os obstáculos representados nao sao reais (o Parecer referido demonstra-o, quer em relac,áo aos Regulamentos das Edificac,óes Urbanas quer em relac,áo ao Estatuto da Ordem dos Arquitectos —fls. 276— sob pena de se reduzir a «cinzas e nada» as normas do artigo 60.° do CDA).

    Contudo, a serem reais tais obstáculos, constituiriam questóes da competencia de outras entidades —administrativas e de organizagáo funcional— enquanto condicionamento do acto administrativo ou pressuposto do poder disciplinar, a dirimir nos foros respectivos.

    Page 545

    A decisáo, por outro lado, nao merece as críticas que a recorrente the tece:

    Primeiro, sustenta a recorrente que o direito de autor, no caso, nao é irrenunciável (fundamento da decisáo), constituindo a norma do artigo 60.° do CDA urna excepc.áo a esse principio.

    Nao acompanhamos este entendimento: A norma do artigo 60.° nao constituí desvio a regra da irrenunciabilidade, porquanto, nos seus próprios termos, o autor tanto pode enjeitar a...

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