Por uma bioética da biodiversidade
Autor | Bruno Torquato de Oliveira Naves - Maria de Fátima Freire de Sá |
Cargo | Doutor e Mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas - Brasil). Professor do Mestrado em 'Direito Ambiental e Desenvolvimento Sustentável' da Escola Superior Dom Helder Câmara (Brasil). Professor nos Cursos de Graduação e Especialização em Direito na PUC Minas. Pesquisador do Centro de Estudos em ... |
Páginas | 58-68 |
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Há, indubitavelmente, uma nítida e crescente preocupação com a Bioética nas diversas áreas do conhecimento científico, inclusive na área jurídica que se ocupa da problemática ambiental. Contudo, é curioso perceber que nem sempre há um substrato ético nos tratamentos que juristas dispensam aos temas supostamente bioéticos.
É importante perquirir qual a Ética, se é que ela existe, que está por detrás dos argumentos. Ou ainda: será mesmo possível construir um arcabouço ético aplicável à natureza e aos outros organismos vivos, que não o homem?
Se partirmos de uma visão antropocêntrica a resposta provavelmente será: "Não! Não se pode falar de Ética para a biodiversidade!" Essa provavelmente seria a resposta de Immanuel Kant, que construiu uma Ética racional, que reconciliava empirismo e idealismo, dogmatismo e ceticismo, mas que sempre teve como únicos partícipes o ser humano. Seus escritos constituem a base do Direito moderno e por isso, ainda hoje, são o fundamento ético que profissionais do Direito tentam trazer para a Bioética.
E, embora o meio ambiente brasileiro ocupe uma importante função no equilíbrio planetário, ainda são poucos os trabalhos de Bioética Ambiental.
Tem-se, pois, duas situações-problema a se enfrentar: 1) Nem sempre quando se diz tratar de Bioética, há realmente um substrato ético; 2) Muitos que exprimem tal substrato, o fazem pautados na Ética clássica, o que é um contrassenso. A Filosofia kantiana, por exemplo, não parece ser adequada para fundamentar argumentos bioéticos que pretendem transcender uma Ética para os homens, chegando na "Ética animal" ou Ética para a natureza.
Em síntese: é possível uma Ética para o meio ambiente?
Embora nos últimos anos a Bioética Médica tenha ocupado o centro de muitas discussões, o nascedouro da Bioética é mais abrangente e confunde-se com a Bioética Ambiental.
O vocábulo Bioética foi cunhado pelo filósofo alemão Fritz Jahr pela junção de duas conhecidas palavras gregas - bios, vida e ethos, comportamento -, em seu artigo "Bioethik: eine Übersicht der Ethik und der Beziehung des Menschen mit Tieren und Pflanzen", publicado na revista Kosmos, em 1927.
Jahr propôs um imperativo bioético de respeito a todas as formas de vida, como um fim em si mesmas. A Bioética seria uma disciplina acadêmica, um princípio e uma virtude, que, como tal, imporia obrigações morais em relação a todos os seres vivos. (1924)
Jahr conta que o impacto da Teoria da Evolução, de Darwin, sobre Nietzsche fez com que este último visse o homem como um ser inferior em transição para uma fase superior. Esta reviravolta no
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antropocentrismo levou muitos estudiosos a utilizarem em outros seres vivos, analogicamente, métodos antes aplicáveis somente a seres humanos. Como exemplo, Jahr cita a Psicologia, que tem por objeto "o estudo de todos os seres vivos em seus limites. [...] Da Biopsicologia à Bioética só um passo é necessário: a aceitação de obrigações morais a todos os seres vivos, não só em relação aos seres humanos." (1924, p. 24) E acrescenta:
Desta forma, quanto aos animais, a alegação moral tornou-se irrefutável, pelo menos em termos de não fazê-los sofrer desnecessariamente. Não é o mesmo com as plantas. Pode parecer absurdo para algumas pessoas que também devêssemos manter algumas obrigações éticas para com elas. [...]
A nossa ordem social de leis e determinações para a proteção de plantas ou flores isoladas em uma determinada região (por exemplo, plantas alpinas) também é baseada em uma perspectiva completamente diferente: a ordem social quer preservar estas plantas para impedir a sua destruição na região e, em seguida, elas podem ser um prazer para os humanos. (1924, p. 24)
A primeira preocupação bioética com a biodiversidade encontra aí seu nascedouro. No entanto, a expressão Bioética popularizou-se a partir da obra "Bioethic: Bridge to the Future", do oncologista estadunidense Van Rensselaer Potter, publicada em 1971. Potter propõe a construção de uma Ética ponte, capaz de mediar as relações entre as Ciências e as Humanidades, e voltada para os problemas ambientais e as questões de saúde.
Outro importante marco para a Bioética, mas voltado para as práticas de profissionais de saúde, foi a criação, em 1974, nos Estados Unidos, da Comissão Nacional para a Proteção dos Interesses Humanos de Biomedicina e Pesquisa Comportamental (National Commission for the Protection of Human Subjects of Biomedical and Behavioral Research), que quatro anos mais tarde apresentou o Relatório Belmont, com os princípios éticos básicos que norteiam a experimentação com seres humanos - autonomia, beneficência e justiça.
A Bioética é, portanto, a disciplina que estuda os aspectos éticos das práticas dos profissionais das Geociências, Ciências Biológicas, Ciências Humanas e Ciências da Saúde sobre os organismos vivos, humanos ou não humanos, e seus impactos sobre os ecossistemas. Avalia, pois, as interações entre os homens, entre estes e outros seres vivos, isto é, é a Ética em todas as suas implicações com a vida, de forma a garantir sua continuidade e a construir parâmetros de dignidade.
Para avaliar a possibilidade de uma Ética para o meio ambiente, tomaremos por ponto de partida as ideias de Hans Jonas em duas de suas obras - "O princípio vida" e "O princípio responsabilidade".1
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Jonas alerta-nos dos riscos do progresso técnico global e de seu uso inadequado, denunciando os riscos de uma Ética antropocêntrica, como a Ética clássica.
Dessa forma, seu pensamento é estimulado por dois grandes eixos: a intervenção tecnológica na natureza, submetendo-a ao uso humano e passível de ser alterada drasticamente; e a intervenção extra-humana, por meio da manipulação do patrimônio genético. Será a partir dessas constatações que sugerirá como necessária uma Ética que contemple a natureza e não somente a pessoa humana, impondo alterações na própria natureza da Ética.
Outra preocupação que assalta Jonas está na apreensão com as gerações vindouras, uma vez que o futuro carece de representação no presente. É necessário que a nova Ética contemple a preocupação com o futuro, com as gerações futuras. Por isso, tais ditames só se fazem possível a partir...
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