Transacções com Partes relacionadas

AutorAlexandre Mota Pinto
Páginas25-35

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I - Relevancia e actualidade do problema

A possibilidade bem real de certas partes relacionadas com a sociedade exercerem a sua influencia e poder, no sentido de obterem vantagens privadas, que nao corresponden! ao interesse social da sociedade é, actualmente, um dos temas quentes do governo das sociedades e com bastante actualidade em Portugal. Vejamos algumas hipóteses:

— Urna sociedade concede um empréstimo a um administrador ou a um accionista, num momento em que estes nao obteriam crédito ou, pelo menos, nao o obteriam em condigóes normáis no mercado:

— Urna sociedade vende um dos principáis activos ao seu maior accionista, por um prego inferior ao normalmente praticado no mercado;

— Urna sociedade («y») celebra o seu principal contrato de fornecimento com urna sociedade controlada por um administrador ou por um accionista (de «y»);

— Urna sociedade tem como principal cliente um accionista, com o qual celebra inúmeros contratos de compra e venda;

— Urna sociedade desenvolve um projecto crucial de internacionalizagáo, através de um consorcio com o seu principal accionista.

Nos mercados em que há urna grande disseminagáo e diluigáo do controle societario pelo público em geral, surge sobretudo a questáo dos negocios da

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sociedade com os seus administradores, implicando, portanto, um problema de agencia.

Nos mercados em que há urna maior concentracáo do controle accionista, em accionistas maioritários ou com capacidade de influenciar a sociedade, surge sobretudo a questáo dos negocios celebrados entre a sociedade e estes accionistas, pondo um problema de conflito de interesses entre a sociedade e o accionista que, bem vistas as coisas, corresponde a um conflito entre o accionista controlador ou dominante e os accionistas minoritarios1.

Nos negocios da sociedade com os administradores, tendo em conta a influencia directa destes nos pro-cessos decisorios da administracáo, verifica-se sobretudo o risco de um aproveitamento abusivo desses negocios, no interesse próprio do administrador2.

Nos negocios da sociedade com os principáis accionistas, esse risco de extraccáo abusiva de vantagens da sociedade decorre da influencia que estes accionistas tém sobre a administracáo da sociedade, em último termo, pelos poderes de nomeacáo e desti-tuicáo dos administradores3.

E fácil de intuir e a realidade, infelizmente, tem-se encarregado de demonstrar que estas transaccóes com partes relacionadas4 transportam um risco de perda ou apropriacáo injustificada (por vezes, até fraudulenta) de activos da sociedade, em beneficio das partes relacionadas56.

Por outro lado, o simples relacionamento especial com urna certa parte pode afectar a actividade e os resultados da sociedade, desde logo, na medida em que pode afectar relacóes com terceiros7. Por exemplo:

— Urna sociedade pode cessar um relacionamento proveitoso com um parceiro comercial, apenas por ter passado a ser controlada por urna sociedade que tem urna subsidiaria que se dedica a essa actividade;

— Urna sociedade pode abster-se de aproveitar urna oportunidade de mercado, apenas porque isso nao convém ao socio controlador (v.g. porque nao quer ferir os interesses de um parceiro comercial com presenca relevante nesse mercado ou entende que deve ser urna outra subsidiaria a aproveitar essa oportunidade).

Donde resulta a necessidade de identificar as partes relacionadas com a sociedade, independentemente da existencia de transaccóes com as mesmas, de forma a permitir conhecer eventuais condicionalis-mos á actividade da sociedade resultantes desses relacionamentos.

Confirmando que as preocupacóes com esta materia sao bem actuáis, a Comissáo Europeia, em Abril de 2014, apresentou urna proposta de alteracáo á Directiva 2007/36/CE relativa aos incentivos ao envolvi-mento dos acionistas a longo prazo, propondo urna nova norma (o artigo 9.°-C) para regular justamente a materia das transaccóes com partes relacionadas.

II - Formas de regulamentacao do problema

A realidade tem demonstrado que o conflito de interesses inerente á dupla qualidade de administrador ou accionista e contraparte num contrato

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com a sociedade exige mecanismos de controle e salvaguarda da posicáo da socieadde e dos respectivos accionistas.

No entanto, devemos notar que muitas transaccóes com partes relacionadas sao amplamente justificadas e podem até corresponder a urna vantagem da própria sociedade (v.g. porque esta tem vantagem em comprar determinados equipamentos a um accionista ou porque os seus accionsitas, melhor informados sobre o valor dos produtos da sociedade, estáo dispostos a pagar mais pelos mesmos do que um terceiro menos informado).

Assim, é importante que a regulamentacáo da materia corresponda a um ponto de equilibrio entre a finalidade de impedir negocios abusivos e a necessidade de evitar um excesso de regulamentacáo que acabe por restringir a actividade da sociedade, nomeadamente, quanto as condicóes dos negocios a celebrar pela sociedade.

Assim, por exemplo, seria injustificado do ponto de vista de urna análise de custo para a sociedade e beneficio para os accionistas ou investidores em geral, que qualquer transaccáo com accionistas, inserida na actividade normal da sociedade - v.g. contratos de fornecimento de servico telefónico a um accionista ou contratos de leasing de automóveis com urna locadora dominada por um accionista - se tivesse de submeter a mecanismos de controlo.

Impóe-se, portanto, urna regulamentacáo equilibrada, que passa pela previsáo de mecanismos de controle preventivo, como a divulgacáo e a sujeicáo a autori-zacáo previa das transaccóes com partes relacionadas, e mecanismos de controle repressivo, como, por exemplo, a responsabilizacáo dos administradores e dos accionistas que intervenham nessas transaccóes. A regulamentacáo só será equilibrada se distinguir entre transaccóes relevantes, com materialidade, para a actividade social, que deveráo submeter-se a um controle máximo e transaccóes menos relevantes, que poderáo submeter-se a um controle menos exigente ou até nao carecer de qualquer controle.

Elemento essencial a qualquer regulamentacáo é a nocáo de parte relacionada, que delimita o campo de aplicacáo desses mecanismos de controle.

a) Nocjio de parte relacionada

Entre nos, os artigos 66.°-A, n.° 3, alinea a) e 508.°-F, n.° 3, alinea d) (para as sociedades coligadas), adoptaram o «significado [de partes relacionadas] definido ñas normas internacionais de contabilidade adoptadas nos termos de regulamento comunitario».

Portanto, vigora entre nos a nocáo de parte relacionada prevista no IAS 24, ou seja, ñas Normas Internacionais de Contabilidade (os IAS - International Accounting Standards), acolhidas pelo Regulamento (CE) n.° 1126/2008, da Comissáo, de 3 de novem-bro de 2008 (na versáo consolidada a 20 de novembro de 2013)8.

Básicamente, a NIC 24 prevé um ampio conjunto de situacóes que integram a nocáo de «parte relacionada», esclarece alguns conceitos imprecisos dessa previsáo e concede prevaléncia a urna análise substancial de cada relacionamento9.

Assim, considera-se parte relacionada com urna sociedade, a parte que :

— Directa, ou indirectamente através de um ou mais intermediarios: i) controlar10, ou for controlada pela sociedade ou estiver com esta sob um controlo comum (incluindo assim «socieda-des-máe», subsidiarias e subsidiarias «irmás»); ii) tiver um interesse na sociedade que lhe con-fira urna influencia significativa11 sobre a mesma, ou iii) tiver um controlo conjunto12 sobre a entidade (IAS 24, 9, alinea a);

— For urna associada13 da sociedade (IAS 24, 9, alinea b);

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— For um empreendimento conjunto14 em que a sociedade seja um dos empreendedores (IAS 24, 9, alinea c);

— For membro do pessoal-chave da gerencia15 da entidade ou da sua empresa-máe (IAS 24, 9, alinea d);

— For membro íntimo da familia16 de qualquer individuo referido ñas alineas a), ou seja, de um accionista controlador ou de «pessoal-chave da gerencia» (IAS 24, 9, alinea e);

— For urna sociedade controlada, controlada conjuntamente ou significativamente influenciada por, ou em que o poder de voto significativo reside, directa ou indirectamente, em qualquer individuo referido ñas alineas d) ou e), ou seja, num accionista controlador ou em «pessoal-chave da gerencia» (IAS 24, 9, alinea 0;

— For um plano de beneficios pós-emprego (v.g. um fundo de pensóes) para beneficio dos empregados da sociedade, ou de qualquer entidade que seja urna parte relacionada dessa sociedade (IAS 24, 9, alinea g);

Conforme referido, o n.° 10 da norma opta pela prevalencia da substancia sobre a forma na identi-ficacáo de partes relacionadas, dispondo que «a atencao é dirigida para a substancia do relacionamen-to e nao meramente para a forma legal». Se esta aná-lise substancial é indutora de alguma inseguranca jurídica, nao deixa de ser a única possível face á impossibilidade de prever formalmente todas as situacóes que revelem um controle ou influencia significativa de urna determinada parte sobre urna sociedade17.

Parece-nos, assim, que essa análise substancial deve também procurar identificar situacóes de controlo ou influencia significativa, de facto.

b) A regulamentado do problema em Portugal

Entre nos, esta materia está legalmente regulada, no que se refere á divulgacáo da existencia de partes relacionadas e de transaccóes com as mesmas.

Já no que se refere ao controlo previo das transaccóes, estáo legalmente regulamentadas apenas as transaccóes com administradores, nao já as transaccóes com outras partes relacionadas, nomeada-mente com accionistas. Como veremos, as transaccóes com...

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