¿Para que serve um direito do trabalho?

AutorAntónio Monteiro Fernandes
Cargo del AutorInstituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa Lisboa - Portugal
Páginas305 - 320

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A imagem mais forte que a minha memória guarda de António Marzal é a de uma pessoa que, guardando no seu íntimo as certezas essenciais, se interrogava incessantemente sobre tudo o resto, tranquilamente, sem preconceitos, sem receio do desconforto da dúvida nem das fadigas da indagação, como quem diz que não há outra maneira de ser e de estar.. Com ele #x2013;que me acolhia sempre com a proclamação irónica #x201c;Eu sou um português de Olivenza!#x201d;#x2013; aprendi a amizade que resiste às distâncias (inclusive, porventura, as ideológicas) e, sobretudo, o sentido profundo da humildade intelectual. A minha homenagem só podia consistir numa pergunta angustiante e no esforço de lhe oferecer uma provisória resposta.

I Uma estratégia de reorientaçao de um mesmo instrumento para outros fins#x2026;

Tudo o que caracteriza a identidade e fornece razão de ser ao direito do trabalho está hoje em causa. Se ninguém já reclama a abolição de um ramo autónomo de direito destinado a regular o uso da força de trabalho na economia, isso devese ao facto de ter sido dada prioridade a uma inteligente estratégia de colocação da norma trabalhista ao serviço do mercado. Por outras palavras, o que está em desenvolvimento é uma doutrina politico-jurídica orientada para a salvaguarda do instrumento na condição de que seja usado para fins diversos (ou melhor, inversos) dos que levaram a concebêlo.

Há, porém, nisso uma dificuldade séria. Podese imaginar um #x201c;direito do trabalho#x201d; identificado exclusivamente pelo seu objecto, isto é, pelo facto dePage 306regular as relações sociais que se formam em torno da execução do trabalho por certas pessoas em proveito de outras. é nesta perspectiva que, por exemplo, se pode começar a narração deste ramo de direito com a abordagem das regras que definiam o estatuto dos escravos na Antiguidade. Mas uma tal configuração do #x201c;direito do trabalho#x201d; não é funcional para a compreensão do debate que actualmente se desenvolve em torno dos regimes laborais.

II #x2026;Aparentemente condenada porque os fins definem o instrumento

O debate, com efeito, referese a uma configuração jurídica que se caracte-riza pelo facto de relações susceptíveis de serem reguladas pelo direito comum dos contratos e das obrigações (e que, na verdade, tiveram esse enquadramento normativo em certa fase) terem sido afastadas desse domínio, num gesto intervencionista do Estado legislador, para se recobrirem com um #x201c;direito privado especial#x201d; dominado por princípios e valores próprios.

Da mesma peculiar configuração jurídica faz parte um outro traço constitucional: o de, numa manifestação particularmente impressiva do pluralismo jurídico, se perfilar, ao lado da normatividade estatal, um direito autónomo das organizações laborais, produzido através da negociação colectiva e nascido sob o signo da melhoria das condições de trabalho1.

A intervenção estatal, no quadro histórico em que se produziu, teve um sentido único e bem preciso: o de compensar, de algum modo, a assimetria de poderes contratuais que se verifica nas relações de emprego assalariado. Não se tratou, pois, simplesmente, de afirmar a autoridade do estado e o poder modelador da lei; tratouse de intervirao arrepio dos pressupostos básicos que, na época, regiam a acção das autoridades públicas #x2013; numa certa direcção e visando uma finalidade determinada.

A negociação colectiva não surgiu também, simplesmente, como modo de afirmação e expressão da identidade e dos desígnios de certos grupos; o que lhe confere fisionomia e sentido é o papel desempenhado na compensação, pela força colectiva, das debilidades individuais no tocante á determinação das condições de trabalho.

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Os #x201c;instrumentos#x201d; não têm pois, aqui, vida ou identidade própria: só são compreensíveis mediante a consideração das finalidades e dos fundamentos que, historicamente, lhes presidiram.

III No entanto, uma estratégia de sucesso

No entanto, como se disse, as estratégias de #x201c;modernização#x201d; do direito do trabalho que têm sido desenhadas, inclusivamente no ambiente europeu comunitário2, apontam no sentido de manter a #x201c;forma#x201d; e os #x201c;instrumentos#x201d;, modificando (e, nalguns casos, invertendo) a sua utilização. tudo se passa (ou se apresenta) como se o direito do trabalho fosse um ordenamento #x201c;neutral#x201d; face ao conteúdo das relações reguladas3, havendo que modular as suas regras em função dos imperativos dos mercados (em especial, da situação do desemprego).

O êxito considerável que, apesar de profusamente criticada, essa linha de entendimento alcançou oferece o pano de fundo às várias equações de que se faz hoje depender a evolução futura do direito do trabalho e o seu próprio destino como região demarcada e autónoma no ordenamento jurídico.

De entre as várias questões que se cruzam no debate europeu a tal propósito, julgo poder colocar em plano de especial relevo três pontos: a efectividade das normas trabalhistas, os desafios da #x201c;flexibilização#x201d; e o novo #x201c;mercado internacional de normas#x201d;.

Explicome, brevemente, sobre cada um destes pontos.

IV A ambição de efectividade do direito do trabalho

As normas do DT incorporam um ambição natural, que nelas ganha uma particular intensidade #x2013; a ambição de serem cumpridas. Por outras palavras, a de serem #x201c;efectivas#x201d;, de produzirem as desejadas modificações na realidade.

A efectividade é uma exigência particularmente crítica no DT. Uma norma é efectiva tanto quando é cumprida como quando actua a sanção pela infracção. Mas as formas de ressarcimento dos interesses lesados pela violação das normas trabalhistas nunca são plenas.

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A inerência da relação de emprego à pessoa do trabalhador abre espaços em que a compensação em dinheiro pode não funcionar. O tempo que o tribunal demora a decidir um litígio originado por pretensa violação da lei é tempo de vida de várias pessoas atingidas pelas consequências práticas dessa violação: o trabalhador e os que dele dependem economicamente.

Os direitos trabalhistas, pela sua ligação à viabilidade e à qualidade da exi-stência do assalariado, cumpremse e descumpremse dia a dia. O ressarcimento económico vem sempre tarde demais e deixa sempre algo a descoberto.

V #x2026; E suas limitações

Tornar efectivas as normas trabalhistas é, pois, um imperativo da realização dos valores que elas corporizam. E o problema está em saber como fazer actuar #x201c;efectivamente#x201d; as normas trabalhistas num mercado cujo funcionamento elas pretendem condicionar e até contrariar.

Tratase de um problema que sempre existiria, dada a orientação geral do DT como direito de condições mínimas e, portanto, como travão às leis do mercado.

Mas é um problema fortemente agravado por dois factores ligados à actualidade económica e social: o enfraquecimento do #x201c;sistema de tutela#x201d; trabalhista e a dificuldade de adaptação das normas às novas realidades organizacionais, tecnológicas e até civilizacionais.

VI Ostribunais, ossindicatos, a administraçãodotrabalho

Comecemos pelo #x201c;sistema de tutela#x201d; trabalhista. Designo com esta expressão o conjunto das instituições e dos mecanismos que existem para garantir o respeito pelos valores éticos e sociais servidos pelas normas trabalhistas. Tratase dos tribunais, das organizações profissionais e da administração do trabalho.

Os órgãos da justiça do trabalho4 têm com a realidade social uma relação de desajustamento crónico, e que não depende nem da diligência nem da qualidade profissional dos magistrados.

A realidade exigelhes prontidão, quase imediatismo, nas decisões; mas, ao mesmo tempo, despeja sobre eles uma vaga crescente de litígios, não invertendo a tendência para o aumento do número de processos.

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Por outro lado, a realidade exige aos tribunais conhecimento profundo (ou, no mínimo, a sensibilidade necessária à compreensão) das múltiplas formas que pode assumir o exercício profissional, nas mais diversas actividades económicas e em empresas de todas as dimensões. Mas a formação dos magistrados está longe de corresponder a essa exigência, e os critérios de decisão tendem a ignorar a diversidade das situações #x2013;por exemplo a diversidade que pode resultar da diferente dimensão das empresas ou estabelecimentos.

As organizações profissionais #x2013;e refirome, particularmente, aos sindicatos de trabalhadores#x2013; atravessam um longo processo de enfraquecimento, pelo menos desde a década de oitenta do longínquo século passado.

A diminuição do número dos filiados é, pelo menos na Europa, um fenómeno generalizado, embora com excepções na Escandinávia.

Por outro lado, as organizações sindicais mostram grande dificuldade de adaptação às novas realidades da organização das empresas e dos processos produtivos.

Finalmente, confrontamse com desafios que, em muitos casos, estão para além dos seus...

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