Responsabilidade ambiental e imputação colectiva: prevenção cooperativa de riscos ecológicos em redes poluidoras-redes pagadoras

AutorRafael Lazzarotto Simioni
CargoProfessor na Universidade de Caxias do Sul, Brasil

Palavras-chave: responsabilidade; imputação, prevenção cooperativa, risco ecológico; redes poluidoras-redes pagadoras.

1 Introdução

Este texto procura demonstrar, com alguns aportes da teoria dos sistemas de Niklas Luhmann, as condições sob as quais uma decisão jurídica sobre imputação de responsabilidade por danos ambientais pode refletir sobre os seus pressupostos decisórios. A questão central, portanto, é como a responsabilidade civil por danos ecológicos tem operacionalizado as informações que circulam no seu ambiente sociológico e quais são as possibilidades de institucionalização de um modelo de imputação coletiva de responsabilidade. Com isso, pretende-se resolver problemas como os da identificação de "ecomáfias" não personalizadas juridicamente, da responsabilização de agentes coletivos em grandes cadeias poluidoras e, principalmente, da utilização da responsabilidade ambiental nas decisões jurídicas como forma de estímulo à auto-organização de cooperativas de risco ecológico.

Para tanto, partimos das seguintes premissas teórico-sistêmicas, didaticamente distinguidas em três dimensões: a) a decisão jurídica não tem acesso à "realidade" policontextural envolvida na decisão; b) os riscos e perigos de efeitos colaterais não podem ser previstos por planejamentos simples; e c) a resposta caótica do ambiente sociológico às interferências produzidas por decisões jurídicas deste tipo serão inevitavelmente falsificadas por esquemas de observação (análises, analogias e prognósticos) que poderão, apesar de contingencialmente desastrosos, ser observados como progresso.

2 Dano, imputação, causalidade e recursividade

Diante da complexidade das relações entre atividades humanas e os processos ecológicos, o Direito Ambiental não tem outra alternativa senão operar seletivamente. O mecanismo jurídico de seleção que reduz a complexidade do ambiente sociológico se chama juridicização. O processo de juridicização seleciona as informações do ambiente na forma de um código binário com valores auto-excludentes: direito/não direito (Luhmann, s/d; Teubner, 1996; Clam, 2005). Assim, toda a complexidade das relações comunicativas da sociedade global é filtrada pela juridicização, onde então os diversos sentidos contingencialmente incompatíveis entre si se estabilizam em uma semântica rígida. Essa semântica pode ser chamada de comunicação jurídica, que se caracteriza por um discurso que faz referência a si mesmo, isto é, um discurso jurídico cujos pressupostos são discursos jurídicos precedentes.

Em outros termos, a comunicação jurídica é uma comunicação recursiva, uma intertextualidade fechada em um círculo de auto-referência. Mas que, exatamente por isso, tem como pressuposto um ambiente sociológico sobre o qual pode tematizar-se (hetero-referência). Isso pode ser observado em toda doutrina, jurisprudência ou pareceres da consultoria jurídica: a comunicação que se estabelece é uma comunicação sobre posicionamentos ou entendimentos jurídicos (auto-referência) com vistas a soluções de problemas jurídicos da sociedade (hetero-referência). Com outras palavras: a comunicação jurídica pode ser observada como um diálogo ambivalente entre duas correntes doutrinárias ou jurisprudenciais que têm apenas como pano de fundo os problemas do mundo fora do direito. Pode-se clarificar isso nos três âmbitos cognitivos da responsabilidade civil: a) o dano; b) a conduta ou atividade lesiva; e c) a relação de causalidade.

  1. Pensa-se em uma decisão jurídica que se depara com a exigência de responsabilização por danos ecológicos. Uma vez provada a ocorrência de danos a "bens" ambientais juridicamente tutelados, a sua reparação no equivalente monetário torna-se possível. Mas só se torna possível quantificar um dano ecológico porque o próprio direito o nomeia na forma de "bem". A recursividade comunicativa fica então evidente: os bens ambientais passíveis de indenização por danos são os bens ambientais que o próprio direito diz serem bens passíveis de indenização por danos. Naturalmente, quase tudo é indenizável porque quase tudo pode ser nomeado "bem". Quase tudo. O que não pode ser nomeado na forma de "bem" não é passível de indenização porque o direito sequer pode observar a sua existência. E como é a economia que define quais os valores da sociedade que são bens e quais não são, o Direito Ambiental, no seu círculo de recursividade operativa, permite decisões jurídicas que condenam a reparação de danos a bens que o próprio direito observa como bens, com a exclusão de todos os demais valores da sociedade que não entram nessa forma "bem". Se isso parece vago, pensa-se, por exemplo, na possibilidade de indenização por contaminação da água e do ar, antes deles ganharem um preço da economia, vale dizer, antes de serem "bens". Ou na indenização por danos à biodiversidade de um determinado ecossistema local, quando não se vê mais que uma degradação paisagística ou uma mera infração administrativa. Ou ainda na redução da luz natural por urbanizações mal planejadas. Pelo fato de alguns elementos indispensáveis à sadia qualidade de vida não estarem designados pela economia na forma de bens, eles permanecem invisíveis para o direito, até que a economia observe a sua escassez e os transforme em bens.

  2. Outra dimensão dessa recursividade operacional da responsabilidade civil por danos ecológicos está na identificação da conduta ou atividade responsável. Quem é o responsável pela indenização de um determinado dano ecológico é uma resposta que o próprio direito dirá. O problema é que o "quem", para o direito, são todas as pessoas físicas e jurídicas. Mas só elas. Em outras palavras, o direito não permite identificar responsáveis além de CPF's e CNPJ's. Para um centro decisório, um âmbito complexo de ação, um colective pool ser juridicamente identificado como responsável por danos ecológicos, ele precisa de personalidade civil. Ele precisa, no mínimo, existir como fato jurídico lato sensu. Só são responsáveis juridicamente, portanto, pessoas físicas e jurídicas assim reconhecidas juridicamente, com seus CPF's e CNPJ's, certidões de nascimentos e estatutos ou contratos sociais. Isso facilita muito o surgimento daquilo que Teubner (2005) denominou "cartéis ecológicos" e "ecomáfias", ou seja, formas de organização não tipificadas pelo direito que, por isso, mantêm-se à margem da personalidade jurídica como estratégia de inimputabilidade. Se por um lado o Direito Ambiental pode identificar a vítima dos danos sob o nome de direitos difusos ou coletivos, inclusive com a atribuição de personalidade e competência para subsumir centros de imputação coletiva, por outro a identificação dos responsáveis não vai além de uma lógica de solidariedade limitada a personalidades. Voltaremos a essa questão a seguir. Neste momento pretende-se registrar o caráter recursivo dessa dimensão da responsabilidade civil por danos ecológicos: tanto os responsáveis como as vítimas estão previamente definidos pelo próprio direito, onde qualquer outro pool volitivo - para nos mantermos nos padrões tradicionais da teoria do fato jurídico - ou decisório, ganha o nome de ilegitimidade ad causam. Em outras palavras, só pode ser vítima ou responsável quem tem personalidade jurídica, apesar dos danos poderem ser provocados ou sofridos por pools decisórios sem personalidade. Pensa-se, por exemplo, nos responsáveis pela degradação de uma floresta nativa causada pela poluição do trânsito de uma cidade, nos responsáveis pelo efeito estufa, nos responsáveis pela miséria altamente poluidora de ocupações urbanas irregulares, nos responsáveis por danos decorrentes do consumo de alimentos com componentes transgênicos e etc. Somente em casos muito simples é possível fazer coincidir a "fonte poluidora" com uma ou várias personalidades jurídicas. E esse problema remete à terceira dimensão da recursividade na responsabilidade civil por danos ecológicos, que é a relação de causalidade.

  3. A relação de causalidade é um framework que produz uma simplificação grosseira na relação entre o dano e a imputação. A causalidade lineariza aquela relação não-linear. Ela funciona como um actrator suficientemente seletivo a ponto de excluir outras possibilidades, mantendo tão-somente aquelas que o esquema mesmo permite. "Considera-se causa a ação ou omissão sem a qual o resultado não teria ocorrido", instrui o art. 13 do Código Penal, lembrando Aristóteles: a causa eficiente é aquela que precede ao efeito, enquanto a final é aquela que sucede ao efeito. Quando um sujeito descasa uma fruta com uma faca, a causa eficiente é a fricção mecânica da faca sobre a casca, enquanto que a causa final é o desejo do sujeito de ver a fruta descascada. Mas basta aplicar essa diferenciação em situações com um nível a mais de complexidade para observar os seus limites: quando um sujeito liga a lâmpada de sua sala, a causa final é o desejo do sujeito de ver a sala iluminada, mas a causa eficiente é a ativação do circuito elétrico operada pelo interruptor, a existência de energia elétrica no circuito ou o próprio circuito? Logo se vê que a causa eficiente, necessária, isto é, a causa-condição do efeito, força o observador a reduzir sua percepção das relações entre causas e efeitos até que encontre a causa necessária e suficiente para explicar o que aconteceu. Todo o resto deve ser irrelevante. Todo o resto é irracional. Todo o resto não é científico. Todo o resto fica fora do "cordão sanitário" (Morin, 2002, p. 24) dos métodos científicos tradicionais. E do ponto de vista jurídico, todo o resto não tem legitimidade ad causam. Diante do caso apresentado acima, a causalidade remeterá às personalidades jurídicas das pessoas responsáveis pelas plantações de pinus (proprietários e arrendatários) e, no máximo, estenderá uma solidariedade às personalidades jurídicas de entidades integrantes do SISNAMA por omissão. O curioso é que isso está correto juridicamente e não poderia ser diferente. Mas, paradoxalmente, deveria ser diferente se se pretendesse um maior grau de sensibilidade e eficácia na proteção jurídica da sustentabilidade ecológica.

Os riscos e perigos ecológicos de processos decisórios desse tipo são altíssimos. Está-se diante da possibilidade de decisões ecologicamente desastrosas, apesar de juridicamente corretas. Mas como pode uma decisão jurídica prever que suas conseqüências futuras, apesar de juridicamente correta, pode desencadear processos ecologicamente desastrosos? O próprio direito está fechado em si mesmo, em um círculo recursivo onde para o direito só interessa o direito e qualquer outro elemento de sentido é pré-excluído como erro. Por isso a decisão jurídica não precisa se preocupar com a família do falido na decretação da falência, nem com a saúde do preso por ela condenado, nem com qualquer outra consideração de efeitos colaterais futuros. E qualquer um pode, depois de observar a trajetória evolutiva dos acontecimentos, julgar aquela decisão sob outras premissas, ou seja, agir cinicamente. Então parece que para uma decisão jurídica só resta decidir juridicamente e torcer para que tudo saia bem. Porque como acima observado: a) só são bens ambientais indenizáveis aqueles que o próprio direito reconhece como tais; b) só são responsáveis pela indenização aqueles pools descisóriosque o próprio direito reconhece como tais através da personalidade jurídica; e c) a relação já bastante seletiva entre o dano e a responsabilização ganha mais uma seletividade na relação de causalidade que o próprio direito constrói na forma de um framework desenvolvido inteligentemente por Kelsen (1986, p. 31; 2000, p. 133; 2003, p. 109) e conhecido como imputação, ou seja, a conexão jurídica entre o dano a bens jurídicos e a personalidade jurídica. Fecha-se, aqui, o círculo de auto-referência da responsabilidade civil, para o qual todo o resto fica sem sentido, fica fora dos limites da racionalidade jurídica.

3 Risco e perigo na auto-referência

A recursividade operacional dos três âmbitos cognitivos da responsabilidade civil (dano, conduta ou atividade lesiva e relação de causalidade) produz um risco e um perigo: o risco de uma decisão jurídica provocar conseqüências capazes de produzir expectativas normativas de variação em suas premissas decisórias, que podem ser posteriormente aceitas ou negadas como progresso ou corrupção1; e o perigo de produção de impactos negativos nos demais sistemas sociais (economia, política, ecologia e etc.). Aqui também há uma recursividade: os impactos extra-sistêmicos de uma decisão jurídica (perigo) podem desencadear uma ressonância intersistêmica que, no direito, pode ser posteriormente julgada como ilícito (risco)2. Grosso modo, isso significa que o próprio direito está obrigado a assumir o risco de produzir ilícitos a médio e longo prazo. Aliás, uma decisão que decide não decidir também está obrigada a assumir o risco de perder oportunidades, como por exemplo a oportunidade de evitar o desencadeamento de processos sociais arriscados ou perigosos. Em suma, na sociedade contemporânea, até uma não-decisão é uma decisão arriscada.

Esses riscos e perigos da auto-referência operacional do direito podem, contudo, ser mitigados através de complicadas estruturas de auto-observação que chamamos de planejamento reflexivo3. Contudo, não há garantias de realidade na decisão jurídica que planeja reflexivamente, porque só o tempo entre a conclusão de uma perícia e a decisão jurídica tematizada nessas informações peritas é suficiente para permitir mudanças no "objeto" da lide, do inquérito ou do parecer da consultoria jurídica. Grosso modo, a decisão está obrigada a confiar na comunicação científica das perícias técnicas. Daí a crescente dependência das decisões jurídicas em relação a perícias no Direito Ambiental (Rocha & Simioni, 2005).

Se por um lado os riscos e perigos são inevitáveis, não devem, por outro, ser problematizados como desgraça ou dádiva ou qualquer outra designação negativa ou positiva. O risco é um meio de comunicação simbolicamente generalizado que pode ser utilizado para vários fins: desde legitimar uma guerra pelo risco de ataques terroristas, até a legitimação de desenvolvimento não sustentável diante do risco de concorrências e pressões econômicas. O próprio conceito de risco, portanto, é um conceito arriscado. Contra ele faltam argumentos para a objeção e, assim, qualquer um pode transformá-lo em valor agregado na economia, em lobby na política, em dogma na ciência, em fé na religião e em argumentos jurídicos no direito4. Esse é o risco do risco: contra o seu uso na comunicação apenas se pode dizer: "isso é um exagero", porque diante dele, a única certeza que se pode ter é a de que, a respeito do futuro, ninguém pode saber-lo melhor (Luhmann, 1992, p. 116). No que toca ao direito, negar riscos não produz segurança, pois a própria segurança jurídica - tão prezada ontologicamente - pode produzir insegurança. Naturalmente, em um ambiente em constante mudança, a segurança jurídica já ameaça a necessidade de urgência na tomada de decisões (Ost, 1999). E o risco não é um problema somente jurídico. Ele atravessa ortogonalmente todos os sistemas sociais.

E isso torna problemática a introdução, na responsabilidade civil ambiental, da idéia de risco da atividade. Já é bastante conhecida a idéia de responsabilidade civil pelo risco, com suas variações "risco criado" e "risco assumido". Mas os impactos dessa idéia nas decisões jurídicas são um mistério e os impactos sociológicos ainda mais, porque quando se faz referência à responsabilidade pelo risco se faz referência apenas à dimensão objetiva da responsabilidade pelo risco. Todo o resto fica fora da racionalidade jurídica. A idéia da responsabilidade pelo risco modifica radicalmente os actratores da teoria da responsabilidade civil tradicional e podemos sistematizá-los em três dimensões da auto-referência, quais sejam: a) o risco dispensa as exigências seletivas da relação de causalidade (dimensão objetiva); b) o risco dispensa a efetiva ocorrência de danos ecológicos (dimensão temporal); e c) o risco mistifica (torna simbólica) a comunicação jurídica, legitimando assim as dimensões "a" e "b" que, em combinação, conquistam autonomia.

  1. Na dimensão objetiva, o risco desmonta os esquemas causais. Ele se torna incompatível com uma sociedade análoga às partículas de Newton. Entre o dano e a respectiva conduta ou atividade responsável (imputável) torna-se suficiente uma aferição probabilística da causalidade - uma sociedade análoga às estruturas dissipativas de Prigogine (1996; 2002). E como o provável só pode ser definido a partir da diferença em relação ao improvável, basta uma atividade ilícita (sem licenciamento) para fazer provável juridicamente a ocorrência de danos - e, ao contrário, basta uma atividade lícita (licenciada) para fazer improvável a ocorrência de danos. Observa-se que a ligação rígida entre uma ação e um dano ecológico efetivo já se torna supérflua pela responsabilidade baseada no risco e isso significa: exigências teóricas de inversão do ônus da prova da causalidade e extensão da solidariedade na linha de multicausalidades que podem apontar para qualquer direção. Relembra-se a questão da degradação de uma floresta "causada" pelo trânsito de uma cidade. O risco permite que a conexão da causalidade ligue o dano a todos os motoristas, ao Município, às montadoras e revendedoras dos veículos... Isso para não observar a questão da omissão. A dispensa das exigências seletivas da causalidade pode parecer um exagero que só se justificaria por uma questão básica - e ingênua - de equidade (as vítimas não podem ficar sem reparação).

  2. Na dimensão temporal, o risco pode dispensar a efetiva ocorrência dos danos. Ele substitui o dano. Uma atividade ilícita autoriza a ligação da ilicitude com a probabilidade (indícios) de danos, onde então o ônus da prova se inverte. Isso gera um problema de legitimidade: uma ou várias personalidades jurídicas seriam responsabilidadas por danos apenas conjecturados como prováveis na decisão jurídica. Uma dotação de força jurídica à imaginação. Em outras palavras, uma sentença condenatória de procedência em uma ação de indenização por danos ecológicos estaria obrigada a partir de premissas que, no futuro, podem não se verificar. Naturalmente, a Ação Rescisória seria um remédio, se não fosse o prazo decadencial de dois anos. Não se pretende entrar em detalhes aqui, mas pode-se verificar que a estrutura toda do Direito Ambiental aponta para isto: o risco como elemento do suporte fático juridicizável se satisfaz com uma atividade potencialmente poluidora não apenas para a exigência de licenciamento, mas também para a imputação de responsabilidade. Decisões assim orientadas para o futuro ganham do próprio direito um cenário futurístico autoconstruído para basear as suas próprias premissas decisórias. Em outras palavras, a prova do risco é mística, simbólica, é uma ficção. Mas o que é uma ficção, pergunta Derrida (2005, p. 50), senão uma realidade na forma de hipérbole? E ainda assim os jurisdicionados poderão afirmar: por sorte aquela atividade foi interrompida antes que acontecesse qualquer dano ecológico.

  3. Essa função mística que o risco cumpre na imputação de responsabilidade é conquistada porque, na dimensão social, o risco é um meio de comunicação simbolicamente generalizado. Ele legitima comunicações, transformando as probabilidades de sua negação em probabilidades de aceitação (Luhmann; De Georgi, 1993, p. 126). A característica dos meios simbolicamente generalizados é a sua circulação em todos os sistemas sociais: eles atravessam, com sentido, qualquer contexto comunicativo. Nessas condições, o risco legitima a sua própria comunicação porque, contra ele, faltam argumentos. A não ser a negação de que se trata de um exagero. Do mesmo modo que por honra se pode legitimar socialmente um assassinato, por poder se pode legitimar a dominação, por dinheiro se pode legitimar a miséria, por amor se pode legitimar o suicídio e inúmeras outras irracionalidades - e os exemplos poderiam ser multiplicados -, o risco legitima, no direito, a introdução de considerandos decisórios que não se verificaram no passado e que talvez não se verifiquem no futuro. E o princípio da precaução reforça essa função mística do risco no Direito Ambiental, já que também nele encontra a sua legitimidade social, isto é, sua aceitação como premissa de comunicações sem possibilidade de um "mas", salvo o "mas isso é um exagero" referido não ao próprio risco, mas a quem pratica o ato de comunicar. O risco, com efeito, é um argumento "blindado" na comunicação.

Como se vê, os riscos e perigos de efeitos colaterais não podem ser previstos pela decisão jurídica (proposição "b"). Também eles estão fechados na recursividade altamente seletiva do processo de juridicização (proposição "a"). Uma decisão jurídica que pretender introduzir em suas premissas decisórias as idéias de risco e perigo, só pode fazê-lo na forma e nos limites da seletividade da juridicização. No âmbito da responsabilidade por danos ecológicos, isso significa que os riscos e perigos a processos ecológicos que não estão juridicizados na forma de "bens" ambientais, não existem para o direito. Embora o Direito Ambiental inove as referências temporais das decisões jurídicas, possibilitando fundamentações baseadas no futuro (o direito das futuras gerações, por exemplo), esse futuro introduzido na decisão jurídica é produto da própria decisão: é dotação de força jurídica à imaginação de um futuro pelo próprio direito. É o direito criando um futuro jurídico para legitimar decisões do presente, embora esse futuro juridicamente criado seja complexo e, por isso, com liberdade suficiente para ocorrer de modo diferente.

Em síntese, os riscos e perigos de decisões jurídicas com efeitos colaterais são inelimináveis, até mesmo porque qualquer tipo de planejamento jurídico da sustentabilidade ecológica partirá de premissas autoconstruídas pela racionalidade jurídica: até a referência ao direito das futuras gerações não é mais que uma projeção ao futuro de conseqüências imaginadas no presente da decisão, na forma de "bens" ambientais juridicamente tutelados. Essa circularidade na racionalidade jurídica do Direito Ambiental, contudo, ainda não está completa. Falta a terceira dimensão da auto-referência (dimensão social), que é a proposição "c" estabelecida na introdução: a resposta caótica do ambiente sociológico aos impactos da decisão jurídica pode ser observada como progresso. Demonstraremos isso a partir de uma estratégia de aproximação das operações jurídicas às operações da economia, com vistas a maiores graus de sensibilidade do direito de responsabilidade civil por danos ecológicos ao seu ambiente sociológico.

4 Imputação solidária e colectivização do risco

Se a decisão jurídica é uma decisão fechada em suas próprias premissas decisórias e inclusive a consideração de riscos e perigos não escapa desse fechamento operacional, pode-se então perguntar pelo como, apesar dessa seletividade da decisão jurídica a respeito da realidade, é possível acreditar na sua possibilidade de solucionar problemas concretos. Ou, em outros termos: como é possível observar a solução e a produção de problemas ecológicos por decisões jurídicas e ainda assim ver isso como progresso? Está-se diante, portanto, de uma terceira dimensão da auto-referência do direito, responsável pela legitimação (aceitação) social das propostas jurídicas de soluções de problemas sociais. Pode-se iniciar a descrição desse processo a partir de uma questão relevante à responsabilidade civil por danos ecológicos: quais são os limites da responsabilidade pelo risco? Até onde vai essa responsabilidade? Quem será conectado pela imputação coletiva? E, por fim, a questão mais ousada: o que pode acontecer depois dessas respostas? E o ponto de partida a partir do qual as procuraremos são os processos sociais de auto-organização de redes5.

O problema da imputação jurídica de responsabilidade a essas formas de organização não é a desconsideração da personalidade jurídica, mas a inexistência de personalidade jurídica. Atualmente, os danos ecológicos causados por uma empresa X, já preparada societariamente para assumir o risco de falência por eventuais danos ecológicos, não poderá ser estendido a empresa Y se não houver a prova de alguma relação societária entre elas e mais: a relação ainda deve ser hierárquica. Se a relação entre X e Y não for hierárquica (empresa mãe- filha), a imputação fica limitada àquela cuja atividade provocou o dano, com a exclusão de toda uma rede de organizações que se serve da atividade da imputável para os seus processos produtivos.

Observa-se que a idéia de solidariedade não resolve esse problema, porque ela pressupõe dois ou mais responsáveis pelo dano, ou seja, duas ou mais atividades imputáveis a alguma personalidade jurídica. Então, enquanto a responsabilidade ambiental fica à procura de CPF's e CNPJ's, grupos de organizações em rede beneficiam-se de atividades poluidoras invisivelmente, porque estão à margem de qualquer tipo societário ou contratual. Naturalmente, isso não é um problema só probatório. Provar que existe relação jurídica entre uma atividade danosa e uma pessoa jurídica no outro lado do planeta é tão-somente desconsiderar os frames da causalidade. A invisibilidade de organizações em rede é um problema de visão da imputabilidade, conforme tentamos demonstrar através do processo de auto-referência da imputação acima observado. Para o direito, seria um absurdo responsabilizar alguém que não praticou sequer atividade potencialmente poluidora. E é um absurdo porque a auto-referência dos processos decisórios do direito não permite ver que, fora desse círculo de auto-referência, podem existir outras personalidades jurídicas ou redes beneficiando-se diretamente da atividade poluidora exercida por um CNPJ. E mais: podem co-operarem várias atividades poluidoras imputáveis solidariamente aos respectivos CNPJ's que, apenas por contratos atípicos, são controladas por pools decisórios invisíveis para o direito. E invisíveis porque destituídos de personalidade jurídica: ecomáfias. A imputação solidária, portanto, revela-se ineficaz. Ela não permite responder às questões acima formuladas que, aqui, resumimos no seguinte: para onde deve apontar a imputação coletiva de responsabilidade por danos ecológicos?

Teubner (2005), partindo do problema da crise causal na responsabilidade ambiental, analisa com profundidade o problema da coletivização dos riscos ecológicos e propõe a tese da imputação coletiva. Após considerar as discussões em nível europeu e americano, Teubner observa uma tendência de criação de "comunidades de risco" (2005, p. 195), onde a flexibilização da causalidade e a inversão do ônus da prova oportunizam a responsabilização de agentes individuais por ações de terceiros. O simples fato de ser membro de uma comunidade de risco torna-se então suficiente para a responsabilidade por danos ecológicos. Teubner entende inadequadas essas propostas, porque elas oportunizam apenas mudanças na percepção de riscos individuais ao invés do risco de organizações. E além disso, dependem da pré-existência, juridicamente institucionalizada, de uma comunidade de risco. O próprio direito então cria a comunidade de risco para torná-la imputável e isso significa uma ordem autoritária que, ao invés de incentivar uma gestão coletiva de prevenção de riscos ecológicos, impõe a alocação de recursos também para quem não causou o dano e não poderia evitá-lo. Em última análise, essa solução não enxerga a "cúpula" como agente coletivo responsável, ou seja, apenas enxerga a imputação individual de agentes coletivos pré-existentes na forma de contratos ou de nexos causais.

A solução seria então substituir "as conexões causais da responsabilidade individual pela cúpula da responsabilidade coletiva" (Teubner, 2005, p. 201). Mas como identificar uma "cúpula", um agente coletivo? A "intenção de cooperação" da concerted action americana não serve, porque acordos cooperativos com a intenção de causar danos ecológicos são improváveis e de difícil prova (Teubner, 2005, p. 202). Diga-se de passagem, exigiria a prova de um dolo cooperativo naturalmente incompatível com a responsabilidade objetiva. Por outro lado, a enterprise liability, embora dispense a exigência finalística da concerted action, tem por efeito colateral a criação de incentivos negativos de cooperação na gestão integrada de riscos ecológicos, posto que ela não alcança - e por isso pode estimular - comportamentos paralelos em detrimento de esforços coletivos de prevenção de danos (Teubner, 2005, p. 203). Outra proposta, a market share liability, também não funcionaria, porque renunciar a um agente coletivo e delimitar um mercado como centro de imputação seria substituir a responsabilidade de agentes cooperativos por agentes competitivos. Em outras palavras, alguém poderia ser responsabilizado por atos individuais de seus concorrentes, ou seja, uma organização empresarial poderia utilizar a poluição como estratégia de dominação de mercado, já que seus concorrentes seriam igualmente onerados. Ao invés de estimular a cooperação na gestão integrada dos riscos ecológicos, o Direito Ambiental estaria criando condições favoráveis a estratégias individualistas e ecologicamente desastrosas. E além disso, qual seria o "mercado relevante"? O mercado poluidor local, o regional, o global?6 Por outro lado, a solução alemã, para Teubner, também não está adequada, porque tais como as propostas americanas, ela também "criou responsabilidade coletiva em casos de comportamento não-cooperativo" (2005, p. 205).

Diante da inconsistência desses critérios sociais (empresas, mercados), Teubner propõe então a sua substituição por critérios ecossistêmicos. O direito poderia eleger áreas de risco ecológico - tais como, no caso brasileiro, as APP's, UC's, e outros processos ecológicos juridicamente protegidos - e criar uma obrigação coletiva de gerenciamento dos riscos e dos danos. Assim, o direito criaria categorias de risco - semelhantes às faixas de risco definidas pelas seguradoras -, permitindo a identificação não apenas de agentes coletivos pré-existentes, pré-personificados, como também possíveis agentes e outras configurações coletivas futuras. A partir da definição de áreas de risco ao invés de personalidades jurídicas imputáveis, torna-se possível estimular a cooperação empresarial de toda uma cadeia produtiva (matéria-prima, beneficiamento, venda, consumo). Porque diante do risco de responsabilidade dos integrantes de uma cadeia produtiva, a gestão coletiva dos riscos ecológicos torna-se a única alternativa além do abandono da atividade econômica. Assim consegue-se algo bastante improvável: a responsabilidade mantém-se conectada a uma capacidade de agir - para satisfazer os requisitos da imputabilidade (Kelsen) - e ao mesmo tempo se define por uma coletividade de agentes não geográfica ou temporalmente definida, mas uma coletividade operacional e por isso dinâmica o suficiente para oportunizar a juridicização das atividades de agentes coletivos sobre uma determinada área ou processo ecológico.

A sensibilidade das descrições de Teubner aos processos de auto-organização do ambiente do Direito Ambiental nos leva a pensar nisso e mais: uma responsabilidade coletiva desse tipo torna economicamente racional a cooperação de toda uma cadeia produtiva para um controle conjunto dos riscos ecológicos. Ou seja, uma responsabilidade que autoproduz prevenção e precaução. "Aquele que atua em um mercado no qual é aplicada uma responsabilidade por participação de mercado e gostaria de reduzir o seu risco de responsabilidade não pode se restringir a reduzir os riscos em sua própria empresa; ao contrário, ele faz bem em procurar instâncias de fiscalização coletiva de todos os participantes do mercado" (Teubner, 2005, p. 212). Naturalmente, pode surgir o problema daquele participante da cadeia produtiva que fez tudo o que era possível para evitar um dano mas que, por falta de cooperação de um outro participante, o dano foi provocado. Isso significa que embora o direito possa criar um background favorável para a racionalidade econômica interpretá-lo no sentido da obrigação de cooperação, não se pode confiar na inteligência estratégica de todos os participantes da cadeia de responsabilidade. Uma decisão individual ignorante pode onerar toda uma cadeia produtiva e então talvez seja conveniente pensar-se em excludentes de ilicitude e circunstâncias atenuantes para os integrantes em dia com as obrigações de cooperação na gestão integrada de risco, em suas cadeias produtivas.

Teoricamente, tudo isso faz sentido. Mas as respostas das organizações a um novo modelo de responsabilidade por danos ecológicos podem não corresponder àquilo que havia sido planejado. As interdependências não são lineares e a sociedade contemporânea possui autonomia suficiente para produzir a sua própria complexidade auto-organizada na forma de sistemas sociais autopoiéticos, cujas operações são realizadas a partir de um código binário onde todo o resto cai como pressuposto indiferente do sistema (Luhmann, 1998). Como observado acima, a resposta da economia às interferências do direito é uma resposta da economia, não do direito. As organizações fazem o que fazem porque elas não têm outra alternativa senão operarem seletivamente em suas bases de auto-referência. E essa seletividade das organizações ao conteúdo normativo do direito pode, com igualdade de chances, estimular tanto a cooperação como a marginalidade.

Teubner, a propósito, não se satisfaz com as suas próprias descrições e inicia a observação de prováveis impactos organizacionais da responsabilidade coletiva na forma de dois cenários: oportunismo, de um lado, e cooperativismo, de outro, concluindo que devem ser mantidas as formas tradicionais de responsabilidade individual, mas incrementadas por novas formas de gestão coletiva dos riscos, através da definição de áreas delimitadas de risco ecológico a partir das quais o direito deve combinar a responsabilidade individual, a responsabilidade pela gestão conjunta dos riscos e a regulação Estatal. E para os casos de riscos ecológicos altamente difusos e de grande extensão, a preferência deverá ser dada a fundos ecológicos Estatais, conclui o autor (Teubner, 2005, p. 227).

5 A solução do problema: redes poluidoras- redes pagadoras

As observações de Teubner possibilitam pensar-se em modelos inteligentes de flexibilização de restrições ecológicas sem que isso signifique não-intervenção. A imputação coletiva de responsabilidade por áreas de risco ecológico substitui uma taxação linear no modelo do poluidor-pagador, inspirado na incorporação das externalidades de Pigou (2002), por uma ameaça de taxação como sanção pelo descumprimento dos deveres de gestão cooperativa dos riscos (rede poluidora-rede pagadora). A internalização dos custos ambientais torna-se uma opção racionalmente econômica e pode assim estimular a auto-organização de empresas na forma de cooperativas de risco ecológico. Naturalmente, os custos da gestão integrada do risco influenciam os preços e encarecem as atividades ecologicamente arriscadas como um todo e isso pode gerar tanto problemas coaseanos como também a possibilidade de influenciar a alocação dos riscos em níveis maiores de prevenção cooperativa.

Respondendo então a questão dos limites da responsabilidade pelo risco, pôde-se propor, com a ajuda de Teubner, a imputação coletiva de cadeias de processos produtivos sob determinadas áreas de risco ecológico. Nessa perspectiva, os danos provocados pela supressão irregular de vegetação nativa em um determinado local, por exemplo, seriam imputados às madeireiras que extraíram aquela madeira, à transportadora daquela madeira, à indústria moveleira que utilizou aquela madeira como insumo produtivo, as indústrias de beneficiamento que trabalharam naquela madeira e se poderia pensar também na inclusão, neste pool de risco, do comércio e dos consumidores. Os danos por acidentes de consumo envolvendo soja transgênica, por exemplo, seriam imputados ao fabricante do produto transgênico, ao sojicultor, ao banco que financiou a safra, à indústria de alimentos que utilizou o produto transgênico como insumo, até o comércio e consumo. Já nos casos de danos provocados por ocupações urbanas irregulares ou de danos provocados a uma floresta pela poluição do trânsito de uma cidade, o pool de risco para a imputação coletiva pode ser extenso demais e talvez sem ligação com cadeias produtivas economicamente individualizáveis, o que aponta para a conveniência de fundos Estatais (ou simplesmente o profilático cumprimento, respectivamente, das leis municipais de ocupação do solo e dos arts. 230, XI e XVIII e 231, III, do Código de Trânsito). Já em casos de imputação coletiva por danos internacionais, o problema exigirá cooperação internacional, face aos limites territoriais da Jurisdição.

As vantagens desse tipo de responsabilidade de imputação coletiva está no fato de conectar toda uma coletividade de atividades que se beneficiam do dano ecológico e que, sob uma perspectiva tradicional, sequer seriam enxergados. Além disso, os custos com a compensação dos danos são repartidos pela cadeia produtiva, ou seja, são repartidos exatamente pelos beneficiários do consumo degradante de recursos naturais. Isso evita o grave problema da concorrência ecológica: um órgão do SISNAMA autua e encaminha para o Ministério Público a atividade ilícita de uma empresa mas não faz o mesmo em relação às outras concorrentes que, mantendo-se na ilicitude, acabam ganhando vantagens competitivas capazes de arruinar a empresa que investir em proteção ecológica. O problema da imputação coletiva de responsabilidade pode ser então solucionado pelo direito de responsabilidade civil ambiental, através da criação de dimensões de imputabilidade ou de "joint ventures" de responsabilidade ecológica, ligadas a determinadas áreas de risco ecológico pelas conexões dos processos produtivos.

6 O problema da solução

A idéia de uma responsabilidade coletiva de processos produtivos sobre áreas de risco ecológico parece ser uma solução adequada às lógicas de auto-organização produzidas pelos mercados. Ela pode desencadear organizações de risco ecológico baseadas na cooperação horizontal sobre áreas específicas, para a compensação de processos ecológicos degradados e para a prevenção de riscos. A responsabilidade autoproduzindo prevenção. Em outras palavras, as respostas das organizações empresariais a pressões jurídicas desse tipo podem desencadear a necessidade da obrigação de organização cooperativa para fins de prevenção. Mas além da obrigação de organização, deve-se também já pensar na obrigação de manutenção da organização - como por exemplo através da gestão de circunstâncias agravantes e atenuantes. Porque um membro da cooperativa de risco pode projetar vantagens em não fazer parte dessa organização.

Isso autoriza o questionamento da própria forma de solução jurídica para problemas ecológicos. Do mesmo modo que uma decisão jurídica, sob pena de ser pré-excluída como errada, deve decidir juridicamente (auto-referência), também a solução de um problema ecológico está obrigada a manter-se dentro da estrutura do problema. Do mesmo modo que uma decisão jurídica decide juridicamente sobre temas da sociedade (hetero-referência) que, a partir da juridicização, já não são mais problemas sociais mas tão-somente problemas jurídicos, a solução de um problema ecológico é uma solução autoproduzida pelo próprio problema. O problema da solução, portanto, está no fato dele exigir redução de complexidade para poder ser formulado com vistas a uma solução. O problema é um axioma de incompletude, porque a sua solução é seu elemento e, por isso, o problema só é problema enquanto temporalização de uma solução - enquanto Différence (Derrida, 2002, p. 188). Desde a teoria da reminiscência de Platão se diz que a colocação do problema pressupõe saber-se o que se busca (solução). Mas como saber que não se sabe? Como é possível reconhecer um problema para solucioná-lo adequadamente?

Se um problema ecológico deve ser juridicamente reformulado para tornar-se um problema jurídico e economicamente reformulado para se tornar um problema econômico, como é possível estabelecer-se uma solução adequada aos três problemas (o ecológico, o jurídico e o econômico)? Essas questões revelam o paradoxo que constitui a forma problema/solução: a solução é tão problemática quanto o problema que a gerou e isso significa que tanto a formulação do problema como a sua solução estão condenadas a uma seletividade, isto é, a uma redução de complexidade realizada pelas teorias e métodos científicos (Luhmann, 1996, p. 302). A solução então economiza o problema para sempre poder ser reproblematizado.

7 Considerações finais

Os juristas do Direito Econômico, de um modo geral, acreditam que a law economics pode ser muito eficiente se utilizada no tempo e na intensidade adequadas. Entretanto, se as descrições até agora realizadas têm um mínimo de verificação empírica, incentivos econômicos produzidos pelo direito na forma de preços ou de prêmios não produzem nenhuma garantia de que o planejamento jurídico da eficiência econômica sobre o meio ambiente tenha êxito. A contingência de frustrações é ineliminável em uma perspectiva temporal e o impact assessmant corre o duplo risco da auto-referência: não ter garantais de realidade e - por isso - autoconstruir uma realidade com sentido de progresso. Partir do pressuposto de que as leis econômicas não expressam nenhum valor senão o valor monetário, acreditando ser possível ao direito manter então os outros valores não monetários na economia, implica na conclusão de que o direito pode servir como um mecanismo de correção das imperfeições relativas à concorrência e aos efeitos externos do mercado, como a poluição e o esgotamento dos recursos naturais.

Procurou-se demonstrar, contudo, que as chances de decisões jurídicas capazes de criar ambientes favoráveis a uma gestão integrada de riscos ecológicos são exatamente as mesmas de decisões com produção de efeitos não-cooperativos. Até porque uma gestão integrada não é nada mais que restrições mútuas dos graus de liberdade decisória das partes integrantes. Parece não haver, portanto, uma forma através da qual o direito poderia negar, às organizações, a opção pela não-cooperação em grandes cadeias produtivas. Especialmente quando toda uma cadeia produtiva decide investir menos no gerenciamento dos riscos com vistas à concorrência com outra cadeia produtiva do mesmo mercado. Mas ao menos se pode oportunizar, através desse modelo de responsabilidade ambiental, a opção pela cooperação com a exclusão de outras possibilidades.

Assim, apenas se pode concluir que a) uma decisão juridicamente correta é uma decisão fechada em suas próprias premissas decisórias, ou seja, é uma decisão baseada no direito e não na ecologia, na economia, na política ou em outro sistema social; por isso b) os riscos e perigos de efeitos colaterais não podem ser previstos pela decisão jurídica; e assim, c) a resposta caótica do ambiente sociológico aos impactos da decisão jurídica são observados como progresso, porque (volta-se recursivamente à questão "a") a decisão jurídica está fechada em suas próprias premissas decisórias. Então a questão (problema) que nós podemos recolocar agora é a mesma da qual partimos. Não se trata tanto de saber qual é a melhor solução para a definição de um pool jurídico para a responsabilidade civil por danos ecológicos. Mas sim: como é possível aceitar uma definição adequada de um pool jurídico de responsabilidade civil quando se sabe como é produzida essa definição?

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[1] Por exemplo, uma decisão jurídica que, sem condições técnicas para avaliar a validade científica de um Estudo de Impacto Ambiental, confia no órgão licenciador competente e assim confirma a validade do licenciamento e a regularidade do empreendimento mas que, posteriormente, orientada para fora do direito (para a opinião pública e para movimentos de protesto ambientalistas), aproveita-se de um recurso para modificar a decisão com base não mais no direito, mas na opinião pública. Nesses casos, a decisão deixa de ser jurídica para ser política, apesar de ser proferida por uma organização do Judiciário.

[2] Utiliza-se aqui a distinção entre risco e perigo (Luhmann,1992) por permitir a observação dessas relações intersistêmicas. Compare-se a outras distinções, como por exemplo a suposição de uma segurança como contraponto do risco em Giddens (1991) e Beck (1986 e 1996).

[3] Sobre os desafios e possibilidades de um planejamento jurídico da sustentabilidade ecológica, ver-se Simioni (2006).

[4] No Direito Ambiental, o risco de ficar sem energia, por exemplo, legitima o licenciamento de hidroelétricas e outras matrizes energéticas com questionáveis perspectivas de sustentabilidade ecológica. O risco de desemprego também legitima socialmente empreendimentos não sustentáveis. Como também o risco de degradação ecológica legitima as pretensões ambientalistas contra qualquer tipo de desenvolvimento, como faz o conhecido movimento da Deep Ecology (Mc'Cormick, 1992; Ost, 1997; Castells, 1999). Em última instância, o risco dá sentido a comunicações que, sem ele, seriam reciprocamente incomensuráveis. Na economia, o risco das sanções penais do direito podem legitimar um alto preço agregado a produtos ilícitos (tráfico de drogas, de animais silvestres, de madeira e etc.). De outro modo, não teria sentido econômico o tráfico juridicamente arriscado. Nesses casos, o direito cria para a economia a escassez e o risco, cuja resposta da economia é grandes oportunidades de lucro. E apenas para citar um exemplo da política, um posicionamento político pode ser tão conservador a ponto de ser radical na dinâmica comunicativa da opinião pública, daí não ter muito sentido a diferença entre conservadores e progressistas na política, mas sim a diferença entre governo e oposição (Luhmann, 1994).

[5] Redes de organizações são estruturas, às vezes empresariais, que operam decisões de grande impacto social (e ecológico) mas que, por estarem fora das fachadas conceituais do direito de personalidade civil, tornam-se juridicamente invisíveis. Por isso soa ilógico a pergunta pela imputação da responsabilidade civil pelo efeito estufa, pela poluição do trânsito de uma cidade, pelo desencadeamento de danos ecológicos causalmente difusos. As organizações em rede, do ponto de vista jurídico, têm como característica a convergência das gestões estratégicas de personalidades jurídicas distintas, através de redes contratuais típicas ou atípicas (holdings, joint ventures, franshising, consórcios, parcerias, colaborações, acordos cooperativos, corporação virtual, integração vertical, horizontal e todas as demais alianças estratégicas), para a realização de objetivos comuns.

[6] Observa-se que tipos de mercado não são dimensões suficientemente delimitadas (espacial e temporalmente) para servirem de centro de imputação jurídica de responsabilidade por danos. Em países continentais como o Brasil, a ocorrência de um dano ecológico provocado pelo mercado de celulose do Sudeste seria suficiente para responsabilizar também o mercado de celulose do Sul e do Norte? E se se optasse por mercados locais, como seria possível responsabilizar a cúpula transnacional da exploração ilegal de vegetação nativa na Amazônia?.

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