A responsabilidade criminal dos auditores, as normas de conduta profissional e a informação no sistema financeiro
Autor | Frederico De Lacerda Da Costa Pinto |
Cargo | Doctor en Derecho. Profesor de la Facultad de Derecho de la Universidade Nova de Lisboa |
Páginas | 16-25 |
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Estabelecer uma associação entre as actividades de auditoria no sistema financeiro e a eventual responsabilidade criminal daí decorrente implica equacionar situações que só podem ser absolutamente excepcionais e estranhas ao quadro de normal e diligente actuação dos auditores, já que estes - pela natureza, função e regime profissional a que estão adstritos - se orientam por critérios de verdade, diligência e legalidade e funcionam como guardiões da qualidade da informação divulgada pelas entidades auditadas. No entanto, a história dos mercados financeiros das últimas décadas evidencia que tal pode acontecer a um nível muito superior ao que seria pensável. Noutro plano, uma leitura do quadro normativo vigente permite verificar que o sistema penal português não contempla incriminações especificamente formuladas para os auditores. Não significa isto que a sua actuação não possa ser valorada pelas normas penais. A relevância criminal das suas condutas depende da possibilidade de os factos que praticam no âmbito da sua actividade serem ou não subsumíveis a tipos incriminadores previstos para situações genéricas que não dependem de uma certa qualidade típica do agente. Para efeito deste estudo, interessa-nos especialmente a intervenção do auditor na informação societária (por via da revisão legal de contas e da sua certificação legal) essencial ao regular funcionamento do mercado,1enquanto facto jurídico sujeito aos crivos e critérios do sistema penal. O percurso que se fará por vários tipos incriminadores será por isso ilustrativo e não exaustivo, ficando de fora, por exemplo, os crimes tributários que, apesar da sua relevância teórica e prática, contemplam várias particularidades cuja análise é incompatível com os limites deste trabalho.
O Estatuto da Ordem dos Revisores Oficiais de Contas,2o Regime Jurídico da Supervisão de Auditoria3e o Código dos Valores Mobiliários4não preveem crimes cometidos especificamente por auditores. O mesmo se pode afirmar do Código Penal e da legislação penal complementar. Mas o regime jurídico a que os auditores estão sujeitos pode determinar que alguns factos ilícitos que pratiquem no exercício da sua actividade tenham relevância criminal. Esse regime comporta uma extensa malha de normas técnicas e de
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conduta profissional, de origem nacional e internacional, completada pelos deveres contratuais que assumem em relação a cada entidade, destinadas a garantir, entre outros aspectos, a fiabilidade da informação auditada, a qualidade da intervenção do auditor, os elevados padrões de idoneidade profissional, a sua padronização e o controlo público da actividade. Se, por exemplo, cruzarmos alguns segmentos do regime contido no Regulamento (EU) n.º 537/2014 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16 de Abril (v.g. artigos 10.º,
12.º ou 22.º), o Estatuto da OROC (v.g. artigos 52.º e ss e 61.º e ss) e o Regime Jurídico da Supervisão de Auditoria (que contempla um elenco claro dos deveres no seu artigo 45.º, para efeitos sancionatórios) é possível identificar um acervo substancial de deveres legais relacionados com a informação divulgada (designadamente, o dever de emitir e fundamentar reservas e opiniões ou o dever de identificar e informar sobre situações de risco de distorção material) e com as condições do exercício da profissão (como o dever de independência ou o dever de segredo) que, quando violados, podem colocar o agente num plano de ilicitude que pode adquirir relevância criminal.
A relação entre as normas de conduta profissional dos auditores e a relevância criminal dos factos existe mas não é automática. Pode, com alguma segurança, afirmar-se que, por um lado, a violação dos deveres profissionais não implica necessariamente a prática de um crime, mas que, por outro, factos com relevância criminal são em regra acompanhados da violação de deveres profissionais dos auditores.
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A primeira afirmação resulta de dois aspectos conjugados: a lei portuguesa não prevê que a violação dos deveres profissionais dos auditores constitua por si só um crime (embora possa constituir uma contraordenação)5e a conclusão de que foi praticado um crime, por seu turno, depende sempre de uma operação autónoma de subsunção dos factos praticados ao tipo incriminador que os pode contemplar. Esta exigência – identificação do facto que pode ser subsumido ao tipo legal - tem de ser cumprida mesmo que a violação do dever possa ser intuitivamente relacionada com um tipo incriminador autónomo (como, por exemplo, o dever de sigilo profissional, quando visto à luz do crime de violação de segredo previsto no artigo 195.º do Código Penal).
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A segunda afirmação decorre do facto de as normas de conduta profissional, quando violadas por comportamentos que simultaneamente constituam um crime, poderem ser vistas como mediadores de ilicitude que densificam a realização do tipo penal.
Dificilmente um auditor pratica factos criminalmente puníveis no âmbito da sua actividade profissional sem que viole igualmente normas fundamentais de conduta (nacionais ou internacionais) que regulam essa actividade. Tais normas não têm natureza penal e vigoram autonomamente em relação ao ilícito penal tipificado, mas têm inegável relevância teórica e prática para delimitar o âmbito dos tipos incriminadores, para determinar a exigibilidade comportamental implícita nos mesmos e para aferir o cuidado devido inerente ao ilícito típico das normas penais que contemplam os factos. Assim, por exemplo, o conteúdo imperativo da certificação legal de contas (artigo 45.º do Estatuto da OROC) e as normas de auditoria emitidas pelas entidades competentes (com tutela directa pela norma de sanção do artigo
45.º, n.º, 2, alínea a), do RJSA) constituem instrumentos hermenêuticos para delimitar omissões ou falsidades relevantes em informação divulgada que, por esse motivo, pode conduzir à aplicação de um tipo incriminador (como falsificação de documentos ou
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manipulação do mercado, por exemplo). Noutro caso, o dever de cepticismo profissional perante eventuais distorções materiais, com possível origem em erro, fraude ou irregularidade (artigo 70.º do Estatuto da OROC) constitui um crivo essencial para aferir a diligência devida e a exigibilidade de controlo mais intenso sobre os elementos em análise, cujos parâmetros legais são a «atitude de dúvida» e o «espírito crítico». Ou seja, a ratio do ilícito penal pode integrar a violação da norma profissional de conduta, não enquanto facto típico mas como norma instrumental de proteção jurídica de interesses violados por comportamentos com relevância criminal.
Deste ponto de vista, a realização de um tipo incriminador por factos praticados por um auditor no exercício da sua actividade profissional pode implicar um juízo de ilicitude penal intensificado pela violação de deveres legais instrumentais (de natureza não penal).
A relevância de tais normas de conduta profissional pode ser negativa ou positiva: o seu rigoroso cumprimento indicia a inexigibilidade de uma conduta diferente, o que se pode reflectir no funcionamento de uma causa de exclusão da tipicidade (designadamente, por inexigibilidade de conduta alternativa) ou adquirir uma relevância ao nível da exclusão da ilicitude (cumprimento de deveres ou de permissões profissionais) e da desculpa; e, em sentido oposto, a sua violação cria riscos proibidos que, associados a factos com relevância típica, permite colocar o comportamento dos agentes no âmbito de vigência das normas penais incriminadoras.
As duas afirmações podem ser documentadas de forma mais pormenorizada com o regime legal de segredo e a sua articulação com os deveres de informação dos auditores. Vejamos em que termos:
O conteúdo fáctico e jurídico do segredo profissional dos auditores é delimitado pelo artigo
84.º do Estatuto da OROC e pelos deveres legais de informação e de comunicação a que aqueles estão obrigados. A violação do citado artigo 84.º (em especial nos casos dos n.º 1 e 2) coloca o agente no âmbito típico do crime de violação de segredo (artigo 195.º do Código Penal).6Este tipo incriminador de violação de segredo é em parte um tipo legal dependente, que comporta um reenvio necessário implícito para as normas profissionais de cada sector que delimitam o âmbito do segredo a que o agente está vinculado: o âmbito material, pessoal e temporal do segredo é traçado nestes casos não pelo tipo penal, mas em primeira linha pelos regimes sectoriais de segredo. Torna-se, por isso, necessário que o intérprete recorra a esses regimes para delimitar o âmbito do segredo e verificar se a revelação feita é ou não criminalmente proibida.7
Nesse mesmo plano, mas com um sentido oposto, deve notar-se que o cumprimento dos deveres legais de informação e de comunicação a que os auditores estão adstritos (v.g. artigos 61.º, 79.º ou 113.º, do Estatuto da OROC, ou artigo 304.º-C, do CdVM), apesar de
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implicar transmissão da informação para terceiros, não pode ser relevante para a violação do regime de segredo, porque em tais...
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