A responsabilidade civil por daño ecológico

AutorCarla Amado Gomes
CargoProfessora Auxiliar da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa Professora Convidada da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa

Reflexões preliminares sobre o novo regime instituído pelo DL 147/2008, de 29 de Julho (*).

0. Introdução

Na sua obra "Tous les hommes sont mortels", Simone de Beauvoir confronta o leitor com o insustentável peso da vida eterna. O instituto da responsabilidade por dano ecológico evoca dilema semelhante. Ao cabo e ao resto, o que se pretende é ressarcir a geração presente pela degradação do estado de um determinado componente ambiental e proporcionar à geração futura idêntico grau de fruição, repondo, sempre que possível, o estado anterior à ocorrência do facto lesivo. Se o Homem vivesse para sempre, e assumida a obrigação primacial de prevenção, a responsabilidade civil por dano ecológico seria certamente reconhecida e praticada como um instrumento fundamental da salvaguarda das condições de sobrevivência na Terra. Mas a mortalidade condena-o à finitude, reduzindo-lhe a perspectiva com que encara o dano ambiental, sacrificando a integridade dos recursos ecológicos ao conforto ou ao lucro1.

A noção de dano ecológico - o dano causado à integridade de um bem ambiental natural - não se impôs imediatamente após a "descoberta" do Direito do Ambiente. A vocação primacialmente preventiva deste ramo do Direito justifica, de alguma maneira, este alheamento. Mas a razão axiológica principal da resistência à noção de dano ecológico, prende-se, julgamos, com a lógica predominantemente antropocêntrica que emergiu da Conferência do Rio, onde se declarou os seres humanos como "centro" das preocupações ambientais (princípio 1). Apesar de, na linha da Declaração de Estocolmo (1972) - e do direito internacional geral -, a Declaração do Rio ter consagrado o princípio da responsabilização (princípio 2), afirmando a responsabilização por danos transfronteiriços como contrapeso do reconhecimento, a cada Estado, do direito soberano de explorar recursos naturais sitos em território estadual, o Direito Internacional do Ambiente furtou-se a dar solução aos casos de agressão a bens ambientais em zonas alheias à jurisdição estadual sem consequências para a população ou propriedade de qualquer Estado (nomeadamente, através do reconhecimento de um mecanismo de actio popularis junto dos tribunais internacionais, maxime do Tribunal Internacional de Justiça com vista à denúncia de tais situações)2.

A esta objecção de fundo juntam-se dificuldades práticas de peso, como a dilação temporal entre facto e dano ecológico, o fenómeno da poluição difusa, a convergência de causas, naturais e humanas, para a produção do dano ou para o seu agravamento. Bem como a determinação de critérios de avaliação do dano e a destinação de eventuais quantias pecuniárias impostas ao lesante, sempre que o bem não possa ser ressarcido in natura. Não surpreende, por isso, a decisão proferida no caso Amoco-Cadiz, em 1988, por um tribunal americano, na qual se desestimou todos os pedidos de ressarcimento de danos ecológicos provocados na costa francesa pela maré negra cujos efeitos se prolongaram por um ano3 - mas, em contrapartida, aplaude-se a decisão da justiça francesa no caso Erika (2008), que adoptou uma perspectiva clara no tocante ao dano ecológico, atribuindo vultuosas quantias indemnizatórias aos Municípios mais afectados4.

Tão pouco é de estranhar o facto de a Comissão de Direito Internacional das Nações Unidas ter trabalhado durante 50 anos num Projecto de Convenção sobre a Responsabilidade Internacional dos Estados (já apresentado à Assembleia Geral em 2001 e presentemente em discussão), que não contém normas específicas sobre responsabilidade por danos ecológicos5. Finalmente, a delicadeza da questão impede o consenso necessário à reunião das ratificações suficientes para a entrada em vigor da Convenção de Lugano (1993), sobre responsabilidade civil por actividades perigosas para o ambiente, adoptada no seio do Conselho da Europa - muito provavelmente devido à consagração de um regime de responsabilidade civil ilimitada, repudiado pelos operadores económicos.

O instituto da responsabilidade por danos ecológicos, em virtude do seu objecto, é confrontado com desafios estimulantes (e dilacerantes), quer no plano internacional, perante problemas como a alocação de "refugiados ecológicos" (por força do degelo induzido pelo aquecimento global), ou como a hipótese de compensação por renúncia à exploração de uma vasta jazida petrolífera em favor da conservação de uma reserva mundial de biodiversidade6 ; quer no plano nacional, enfrentando questões como a prova do dano (presunções de causalidade) e os critérios do seu cômputo7. Tendo em consideração as dificuldades e reticências conotadas com o instituto, o papel da prevenção avulta. Mas, infelizmente, haverá sempre lugar para a responsabilidade, no que respeita a todos os danos ecológicos significativos que, consciente ou inconscientemente, o Homem irremediavelmente provoca no meio natural, porque este constitui o seu suporte vivencial.

As instituições da Comunidade Europeia, levando a sério a prossecução da política ambiental comunitária, tomaram a dianteira do processo de elaboração de um quadro normativo de regulação da prevenção e reparação do dano ecológico através da Directiva 2004/35/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 21 de Abril. Esta directiva, cujo prazo de transposição expirou em Abril de 2007, foi agora transposta através do DL 147/2008, de 29 de Julho.

1. A difícil autonomização do "dano ecológico" no quadro normativo anterior ao DL 147/2008, de 29 de Julho

Em bom rigor, deve começar por dizer-se que o nosso ordenamento jurídico não autonomizava, até ao recentíssimo surgimento do DL 147/2008, de 29 de Julho, o dano ecológico do dano ambiental. Esta falha é, de resto, expressamente assumida pelo legislador, no Preâmbulo do diploma:

"Durante muitos anos a problemática da responsabilidade ambiental foi considerada na perspectiva do dano causado às pessoas e às coisas. O problema central consistia na reparação dos danos subsequentes às perturbações ambientais - ou seja, dos danos sofridos por determinada pessoa nos seus bens jurídicos da personalidade ou nos seus bens patrimoniais como consequência da contaminação do ambiente.

Com o tempo, todavia, a progressiva consolidação do Estado de direito ambiental determinou a autonomização de um novo conceito de danos causados à natureza em si, ao património natural e aos fundamentos naturais da vida. (...) Assim, existe dano ecológico quando um bem jurídico ecológico é perturbado, ou quando um determinado estado-dever de um componente do ambiente é alterado negativamente".

A lacuna era fruto de um concurso de equívocos. Por um lado, a Constituição não distingue claramente as duas realidades no artigo 52º/38; por outro lado, a Lei de Bases do Ambiente (Lei 11/87, de 7 de Abril =LBA) revela uma perspectiva individualista ou grupal do dano ambiental (artigo 40º/4 e 5)9; finalmente, a Lei 83/95, de 31 de Agosto (Lei da participação procedimental e da acção popular = LAP) ignora a diferença radical entre interesses individuais homogéneos e interesses de fruição de bens colectivos, reduzindo o regime de indemnização aos primeiros (cfr. o artigo 22º/2)10. A inacção do legislador no sentido da correcção destas insuficiências tornou-se especialmente indesculpável após o esforço doutrinal de CUNHAL SENDIM, que dedicou a sua dissertação de mestrado ao problema da reparação do dano ecológico11.

A não identificação clara do dano ecológico redundava em que este só poderia ser atalhado caso resultasse de uma acção lesiva de interesses individuais, cujo titular movesse uma acção inibitória contra o lesante, a qual pusesse fim à produção da emissão prejudicial para pessoas e bens naturais. Sublinhe-se, contudo, que o dano a ressarcir seria sempre e apenas o individual, não o colectivo. A tutela era meramente reflexa e só pontualmente visaria a reconstituição do statu quo ante, ou similar, ou mesmo a fixação de medidas compensatórias.

Claro que, em coerência com o objectivo constitucional de tutela ambiental, podia defender-se que, apesar da equivocidade das normas do ordenamento jusambiental, a autores populares (e ao Ministério Público) era admissível a propositura de acções inibitórias, precedidas de providências cautelares, bem como a dedução de pedidos indemnizatórios por danos ecológicos contra os lesantes - os quais se traduziriam, preferencialmente, na reconstituição da situação anterior à ocorrência do dano (artigo 48º/1 da LBA)12. Não sendo esta possível, avançar-se-ia então para a fixação da indemnização pecuniária (artigo 48º/3 da LBA); mas com base em que critérios (perda de utilidades para o Homem ou redução de equilíbrio do ecossistema? cômputo dos interesses das gerações presentes e/ou também das futuras? consideração de equivalência quanto a recursos não regeneráveis ou afirmação da sua infungibilidade?)? E a favor de quem? Estas interrogações ficavam sem resposta.

Com a entrada em vigor do DL 147/2008, afirma-se a diferença entre dano pessoal/patrimonial e dano ecológico; clarifica-se a legitimidade para reclamar a sua reparação; fixa-se os critérios de avaliação do dano; indica-se as formas da sua reparação. Vejamos em que termos.

2. O regime de responsabilidade por dano ecológico plasmado no DL 147/2008, de 29 de Julho: descrição sumária

Antes de entrar na descrição do regime incorporado no DL 147/2008, de 29 de Julho (=RRPDE), convém passar em revista, ainda que de forma sintética, o conteúdo da directiva que constitui o seu "farol".

2.1. Os objectivos visados pela directiva 2004/35/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 21 de Abril

"Existem hoje na Comunidade muitos sítios contaminados que suscitam riscos significativos para a saúde, e a perda da biodiversidade acelerou-se acentuadamente durante as últimas décadas. A falta de acção poderá resultar no acréscimo da contaminação e da perda da biodiversidade no futuro. Prevenir e reparar, tanto quanto possível, os danos ambientais contribui para concretizar os objectivos e princípios da política de ambiente da Comunidade, previstos no Tratado. (...)

A prevenção e a reparação de danos ambientais devem ser efectuadas mediante a aplicação do princípio do poluidor-pagador, previsto no Tratado e em consonância com o princípio do desenvolvimento sustentável. O princípio fundamental da presente directiva deve portanto ser o da responsabilização financeira do operador cuja actividade tenha causado danos ambientais ou a ameaça iminente de tais danos, a fim de induzir os operadores a tomarem medidas e a desenvolverem práticas de forma a reduzir os riscos de danos ambientais".

É desta forma que a directiva 2004/35/CE se apresenta à comunidade jurídica13. Do seu texto, ressaltamos os seguintes objectivos:

i) A directiva autonomiza o dano ecológico e pretende-se como só aplicável a este14. Por outras palavras, a reparação dos danos infligidos à pessoa ou à propriedade rege-se pelos princípios gerais da responsabilidade civil15;

ii) A directiva responsabiliza directamente os operadores (das actividades listadas no Anexo III, quanto à responsabilidade objectiva; todos, quanto à responsabilidade subjectiva por lesão de espécies e habitats protegidos), públicos e privados, no âmbito de actividade lucrativa e não lucrativa, pelos custos de prevenção e reparação de danos ecológicos comprovadamente causados pela sua actividade. Todavia, o Estado pode optar por suportar os custos quando não tenha havido culpa do operador ou quando, provada embora a culpa, o custo for excessivo;

iii) A directiva circunscreve os danos ecológicos aos danos causados às espécies e habitats protegidos no contexto da Rede Natura 2000, à água e ao solo, deixando aos Estados a possibilidade de alargar o âmbito do dano ecológico a outros componentes ambientais16;

iv) A directiva ancora-se no princípio do poluidor-pagador (cfr. o artigo 174/2 do Tratado de Roma), e adere a um conceito amplo de responsabilidade, que prescinde da ocorrência do dano. Com efeito, a directiva prevê a possibilidade de imposição de medidas de reparação e de prevenção, perante a ameaça de dano iminente a um dado bem natural17- o que, em bom rigor, configura mais um duplo fundamento nos princípios da prevenção e da responsabilização, do que uma concretização do princípio do poluidor-pagador (que atende ao mero desgaste dos bens ambientais por determinadas actividades e se corporiza, na sua expressão pura, em tributos pagos a título de compensação desse desgaste e afectos à recuperação e promoção do estado de tais bens);

v) A directiva consagra um conjunto amplo de exclusões, obrigatórias e facultativas. Antes de as indicar, convém precisar que o dano (ecológico) tem que ser significativo, concreto, quantificável18 e imputável através do estabelecimento de um nexo de causalidade facto/dano19.

Quanto às primeiras, e além da delimitação resultante dos âmbitos objectivo e subjectivo já mencionados, excluem-se:

- danos na sequência de actos de conflito armado;

- danos provocados por fenómenos naturais de carácter imprevisível20 e irresistível;

- danos cuja compensação esteja abrangida por instrumentos de Direito Internacional listados no Anexo IV21;

- danos advenientes de acidentes nucleares;

- danos causados por actividades de defesa nacional ou internacional, ou relacionadas com a protecção civil22;

- danos provocados por terceiros, apesar das medidas de segurança serem suficientes e adequadas;

- danos advenientes do cumprimento de uma ordem pelo operador, emanada das autoridades com competência em sede de protecção do ambiente23;

- danos ocorridos em data anterior a 30 de Abril de 200724;

- danos ocorridos posteriormente a 30 de Abril de 2007 que derivem de uma actividade específica já terminada nessa data25-26;

- quaisquer danos relativamente aos quais, embora ocorridos posteriormente a 30 de Abril de 2007 e independentemente de a actividade que os provocou se manter, tenham decorrido mais de 30 anos desde o facto que concretamente lhes deu origem27.

Quanto às segundas, permite-se que os Estados-membros excluam a responsabilidade do operador, total ou parcialmente - o que não é o mesmo que dizer que a reparação fica comprometida, pois nalguns casos as entidades públicas competentes em sede de protecção do ambiente antecipar-se-ão, e ainda que possam estabelecer prioridades de reparação -, quando:

- não tenha havido culpa do operador e a actividade foi validamente autorizada;

- não tenha havido culpa do operador e os danos se filiam em riscos imprevisíveis28;

- o custo da adopção de medidas complementares "tomadas para atingir o estado inicial ou um nível similar for desproporcionado em relação aos benefícios ambientais a obter" (artigo 7º/3, em articulação com o ponto 1.3.3. b) do Anexo II da directiva)29.

vi) A directiva, porque exclui do seu âmbito a reparação de danos pessoais e patrimoniais - e porque deseja evitar situações de locupletamento à custa da colectividade -, veda a entrega de quantias pecuniárias a particulares30. Esta solução torna clara, por um lado, a absoluta preferência pela reconstituição natural ou, caso esta não seja possível, a alocação de quantias pecuniárias exclusivamente à efectivação de medidas de reparação, complementares ou compensatórias31. Por outro lado, a directiva corta cerce hipóteses como a de "dano moral" da colectividade por perda de qualidade de bens ambientais naturais32;

vii) A directiva, reconhecendo a necessidade de cobertura de riscos agravados por parte dos operadores, propõe aos Estados-membros a tomada de medidas tendentes a instituir mecanismos de garantia financeira (seguros; fundos) que permitam a resposta adequada e suficiente às obrigações de prevenção e reparação de danos ecológicos33. Sem impor desde já o seguro obrigatório, a directiva estabelece uma data - 30 de Abril de 2010 - para a apresentação eventual ("se adequado"), pela Comissão, de "propostas sobre um sistema harmonizado de garantias financeiras obrigatórias" (artigo 14º/2 da directiva)34.

2.2. Os reflexos da directiva no DL 147/2008, de 29 de Julho

Depois desta síntese das soluções preconizadas pela directiva 2004/35/CE, passemos então a compulsar a apreensão que o legislador português delas fez, ao efectuar a sua transposição para o RRPDE. Este diploma constitui actualmente o diploma aplicável em sede de prevenção e reparação de dano ecológico e só35 deste36- na definição do artigo 11º/1/d) do RRPDE, dano ecológico é toda "a alteração adversa mensurável de um recurso natural ou a deterioração mensurável do serviço de um recurso natural que ocorram directa ou indirectamente".

2.2.1. O alargamento do âmbito objectivo de aplicação

Uma primeira nota para o alargamento do conjunto de bens naturais a coberto do regime do RRPDE a que o nosso legislador procedeu. Com efeito, danos ecológicos, para os efeitos do RRPDE (artigo 11º), são todos os danos causados: à água (ressalvados os efeitos adversos sobre os quais incida o regime da Lei 58/2005, de 29 de Dezembro - Lei da Água); ao solo37; e às espécies e habitats protegidos pelo ordenamento nacional. Foi neste último ponto que o legislador acresceu ao regime da directiva, uma vez que esta aponta apenas como objecto de protecção as espécies e habitats protegidos ao abrigo do regime da Rede Natura 2000, enquanto que o RRPDE remete a identificação para a "legislação aplicável" - que é, neste momento, o DL 142/2008, de 24 de Julho (Regime da conservação da natureza e da biodiversidade).

Nestes termos, os exemplares de fauna e flora protegidos são todos os que estiverem abrangidos por instrumentos de protecção inseridos no Sistema Nacional de Áreas Classificadas, que compreende a Rede Nacional de Áreas Protegidas, as áreas classificadas da Rede Natura 2000 e outras áreas classificadas ao abrigo de instrumentos internacionais assumidos pelo Estado português (artigo 9º/1 do DL 142/2008). Como se vê, a Rede Natura 2000 é apenas um subsistema de áreas protegidas, aplicando-se o RRPDE ao sistema no seu todo.

2.2.2. O alargamento do âmbito subjectivo de aplicação

Também no âmbito subjectivo o legislador português aumentou o raio de acção da directiva. Na verdade, o RRPDE, no tocante à responsabilidade subjectiva (artigo 13º), segue o alargamento que a directiva preconiza - desafectando os lesantes da estrita enumeração de actividades do Anexo III. Porém, acrescenta-lhe um novo segmento, que respeita aos bens sobre os quais os danos podem incidir. Assim, enquanto a directiva impõe a responsabilização, assente na culpa, de todos os sujeitos e entidades, públicos e privados, independentemente da actividade, por danos infligidos a espécies e habitats protegidos ao abrigo do regime da Rede Natura 2000, o RRPDE acrescenta a este universo a responsabilização daqueles por quaisquer danos ecológicos, desde que compreendidos nas categorias enunciadas no artigo 11º/1/e) - ou seja, também ao solo e à água.

2.2.3. As exclusões

As exclusões a que procede o RRPDE coincidem, ressalvadas as questões abordadas infra, em 3.4., com as indicadas na directiva (cfr. o artigo 2º/2) e já mencionadas (supra, 2.1.v)). Existe, todavia, uma questão que tratamos neste ponto mas que, em bom rigor, integra o problema do âmbito objectivo de aplicação do diploma, e que se prende com o universo de bens naturais abrangidos pelo regime de prevenção e reparação de danos ecológicos. Reportamo-nos à não consideração dos danos ao ar (e ao subsolo?38) como danos ecológicos.

Com efeito, a directiva não os menciona, mas o RRPDE, porque emitido não só em razão de uma obrigação de transposição da directiva 2004/35/CE como também de desenvolvimento do regime de responsabilização sumariamente gizado na LBA e, naturalmente, no quadro da tutela constitucional do ambiente, não pode, arbitrariamente, estabelecer distinções entre bens ambientais merecedores de tutela preventiva, reconstitutiva e compensatória e bens isentos dela. Não há (não deve haver) bens ambientais de 1ª e de 2ª. Nem deve o legislador revelar um temor reverencial pelo Direito Comunitário (rectius: um receio de ser alvo de acções por incumprimento...) e uma indiferença olímpica pelo Direito nacional, maxime pela Lei Básica.

Note-se que a LBA recenseia como bens ambientais naturais, no artigo 6º: o ar, a luz, a água, o solo vivo e o subsolo, a flora e a fauna. Acresce que o artigo 66º/2/a) da Constituição (= CRP) impõe, como tarefa do Estado e demais entidades públicas, a "prevenção da poluição", não fazendo distinção entre recursos afectados por esta. Além de que os danos ecológicos a ressarcir, nos termos do artigo 52º/3/a) da CRP (e apesar da equivocidade do texto do preceito) são relativos ao "ambiente", sem exclusão de qualquer componente.

Daí que, das duas uma: ou se conclui que o RRPDE padece de ilegalidade reforçada (cfr. os artigos 280º/2/a) e 281º/1/b) da CRP), por afronta da LBA (bem como de inconstitucionalidade indirecta, por redução do âmbito de protecção das normas constitucionais de tutela do ambiente), na parte em que omite a referência ao(s) componente(s) ar (e subsolo); ou, em nome de uma interpretação útil - mas forçada -, se procede a uma leitura do RRPDE conforme à LBA e à CRP, considerando dano ecológico também a degradação significativa, concreta, mensurável e imputável a um/vários operador(es) das condições ecológicas do ar39(e do subsolo), sujeitando estas lesões ao regime de prevenção e reparação instituído por aquele diploma.

2.2.4. A noção ampla de responsabilidade e as modalidades de prevenção/reparação do dano ecológico

Na linha da directiva, o RRPDE assenta numa compreensão alargada de responsabilidade, isto é, independente da verificação de um dano. O princípio da prevenção, que pontifica no Direito do Ambiente, justifica esta visão, uma vez que, dada a fragilidade de muitos bens naturais, ofensas à sua integridade podem revelar-se irreversíveis (sobretudo quando não regeneráveis)40.

O RRPDE vem confirmar a ideia de que a protecção do ambiente impõe deveres de defesa e promoção da qualidade dos bens ambientais aos operadores de actividades que possam ter sobre estes efeitos significativos. Os actos autorizativos estabelecem uma relação para-contratual entre o industrial/produtor/comerciante e as entidades com competência autorizativa, na medida em que, para desenvolverem a sua liberdade de iniciativa económica de acordo com os limites impostos pela tutela ambiental, os operadores ficam adstritos a um conjunto de vinculações que configuram deveres de facere, de pati e de non facere - densificados através de cláusulas modais, mais ou menos precisamente definidas nas leis sectoriais. Porque o ambiente é um bem público e frágil, as actividades que o possam afectar mais significativamente estão sujeitas a um princípio de proibição sob reserva de permissão, que só se ultrapassa através da concessão das autorizações necessárias à concretização de tais deveres41.

Sucede que tais autorizações, porque incidentes sobre uma realidade permanentemente mutável - quer em virtude de alterações de funcionamento do ecossistema, quer por força dos progressos técnico-científicos -, estão sujeitas a períodos de vida curtos e, sobretudo, a um princípio de revisibilidade por alteração de circunstâncias42. A relação estabelecida através do acto autorizativo é dinâmica e cria, para a Administração, competências de fiscalização que se renovam ao ritmo das alterações, fácticas e legislativas, que vão surgindo43. Tais competências, na medida em que constituam restrições à liberdade de iniciativa económica do operador, hão-de estar previstas, mesmo que apenas de forma genérica, nos diplomas aplicáveis à regulação da actividade44.

Cumpre, pois, entrelaçar os poderes de ingerência administrativa no tocante à determinação de medidas preventivas aos operadores, por um lado, com as competências de conformação dinâmica da relação autorizativa, bem como com a proibição (genérica) de poluir sediada na LBA (artigo 26º). Por outro lado, despontam identicamente importantes obrigações públicas de prevenção, agora de segundo grau (ou seja, após a detecção da infracção às normas jus-ambientais, o que não é o mesmo que dizer após a eclosão do dano45) pela via das competências conferidas à Administração no âmbito do procedimento sancionatório (cfr. o artigo 30º/2 do RRPDE, e a Lei 50/2006, de 29 de Agosto), maxime no tocante à possibilidade de decretamento de medidas cautelares (cfr. os artigos 41º e 42º da lei 50/2006). Por outras palavras, não é no capítulo da prevenção que o RRPDE verdadeiramente inova, pois esta dimensão já se encontrava coberta pelos diplomas sectoriais e pelo regime sancionatório - ficando, no entanto, reforçada. Na reparação/compensação é que reside o seu forte.

Ainda assim, relativamente ao dever de adopção de medidas preventivas previsto no artigo 14º do RRPDE, cumpre esclarecer alguns aspectos:

i) as medidas preventivas são exigíveis perante a ameaça iminente de um dano ecológico, ou de novos danos subsequentes a uma lesão já ocorrida. A noção de iminência do dano não é estritamente temporal, mas também circunstancial; ou seja, o facto de o dano ser iminente não significa que se configure como prestes a acontecer (por horas ou dias), mas antes que esteja reunido (ou em vias de estar reunido) um conjunto de pressupostos que, no plano da verosimilhança e probabilidade, permita prever, com grau de certeza razoável, a eclosão daquele (cfr. os artigos 11º/1/b) e 5º do RRPDE)46;

ii) a determinação das medidas preventivas obedece aos critérios constantes do Anexo V (ponto 1.3.1., alíneas a) a f)), por remissão do artigo 14º/3 do RRPDE; ou seja, é precedida de uma ponderação alargada de factores que a entidade pública estará especialmente apta a realizar. Daí que, em bom rigor, se possam admitir duas perspectivas: por um lado, a do operador/sujeito que, perante a ameaça iminente de um dano ecológico, toma as medidas que entender aptas para prevenir o dano, de acordo com a melhor tecnologia disponível, atendendo primacialmente ao custo, ao grau de êxito da medida e aos seus prováveis efeitos colaterais noutros componentes ambientais; por outro lado, a da entidade pública, que ponderará estes aspectos mais os efeitos das medidas na saúde e segurança das pessoas, no sistema ecológico em geral e no contexto socio-económico em particular.

Esta sensível diferença de perspectivas pode levar o operador a escudar-se no custo excessivo das medidas e/ou na dificuldade de aferição dos seus eventuais efeitos colaterais. Por isso, o artigo 14º/4 do RRPDE institui um dever de informação que pretende investir a autoridade competente - a autoridade com competências específicas no domínio da prevenção da poluição, ou seja, a Agência Portuguesa do Ambiente (cfr. os artigos 14º/5 e 29º do RRPDE, e 16º/1 do DL 173/2008, de 26 de Agosto: regime do licenciamento ambiental) - no conhecimento dos dados necessários à correcção das medidas adoptadas, num quadro de ponderação alargada (v. também o nº 5/b) do artigo 14º do RRPDE).

Entre uma lógica de custo, em que prepondera o interesse privado, e uma lógica de eficácia, em que prepondera o interesse público, arriscamos prever uma tendência para a determinação das medidas preventivas adequadas e suficientes por parte das entidades competentes e para a sua execução subsidiária, a expensas do operador - hipótese prevista no artigo 14º/5/d) do RRPDE -, esgotadas as possibilidades de execução atempada por este. Anote-se que, em "situações extremas para pessoas e bens", a urgência confere à autoridade competente a faculdade de prescindir da emissão de "actos de execução" de determinação/correcção de medidas preventivas, actuando directamente - cfr. o artigo 17º/2 do RRPDE47;

iii) a competência de prevenção de danos ecológicos é irrenunciável48 - constitui um poder-dever da Agência Portuguesa do Ambiente (artigo 29º do RRPDE). A tutela do ambiente é primacialmente pública, como o afirmam os artigos 66º/2 da CRP, e 37º da LBA, e preferencialmente preventiva. Intervindo oficiosamente, a requerimento de interessados (cfr. o artigo 18º do RRPDE) ou na sequência de informação veiculada pelo operador e uma vez constatada a insuficiência da actuação deste, a entidade competente está vinculada a exercer a competência de tutela preventiva, desde que o dano iminente se afigure significativo (cfr. o Anexo IV, §7º do RRPDE). Se o não fizer e o dano efectivamente ocorrer, pode vir a ser responsabilizada solidariamente com o operador e condenada à reparação da lesão, nos termos do RRPDE.

Duas notas: em primeiro lugar, para ressaltar que, em algumas situações, a adopção de medidas preventivas positivas (e não meramente negativas ou inibitórias) muito dificilmente poderá ser assegurada subsidiariamente pela Administração, que não domina os processos de produção. Donde, a vantagem para o operador de, e apesar do custo, as adoptar, antes que a Administração seja "forçada" a suspender a laboração (o que acarretará um prejuízo superior). Em segundo lugar, para frisar que esta competência "secundária" de prevenção de riscos tem a sua primeira manifestação na conformação dos deveres do operador levada a cabo no acto autorizativo que lhe permite desenvolver a actividade. Donde, a ocorrência de um dano ecológico em virtude de défice de ponderação de circunstâncias de risco com base na melhor informação disponível gera igualmente responsabilidade por facto ilícito, que a Administração suporta solidariamente com o operador49.

Quanto às competências de determinação e adopção de medidas reparatórias (artigos 15º e 16º do RRPDE e Anexo V)50, elas sediam-se desde logo no artigo 48º da LBA. Nesta sede, a actuação reparatória - sempre precedida de informação sobre o incidente, permanentemente actualizada, às autoridades competentes (artigo 15º/1/a) do RRPDE) - pode revestir um de dois modelos:

i) Por iniciativa da entidade competente: esta, em face da inércia ou insuficiência do operador, determina, nos termos do artigo 16º/2 do RRPDE, as medidas a tomar, após ouvi-lo, bem assim como os interessados (público em geral, e sujeitos cujos bens possam ser reflexamente visados, em particular), e ainda, se necessário, autoridades com competências de tutela (ambiental e outras) especialmente aptas no sector em questão, conforme dispõe o artigo 16º/4 do RRPDE. A lei não fixa prazo para conclusão deste procedimento, que julgamos, em face da necessidade de actuação rápida, não dever ultrapassar os 30 dias, podendo prorrogar-se, em situações de especial complexidade, até 3 meses;

ii) Por iniciativa do operador: este submete uma proposta de medidas de reparação do dano, num prazo de 10 dias após a sua eclosão (artigo 16º/1, in fine, do RRPDE). A entidade competente deve, do mesmo modo e ainda que a lei o não diga expressamente, convidar os interessados a pronunciar-se, nos termos supra referidos, e emitir decisão final, fixando as medidas a cargo do operador de acordo com os critérios definidos no Anexo V.

Acresce que, em situações de extrema urgência, a entidade competente pode prescindir deste procedimento, nos termos do artigo 17º/2 do RRPDE.

A reparação efectiva dos danos ecológicos obedecerá, eventualmente, a prioridades ditadas pela entidade competente, "atendendo, nomeadamente, à natureza, à extensão e à gravidade de cada dano ambiental, bem como às possibilidades de regeneração natural, sendo em qualquer caso, prioritária a aplicação das medidas destinadas à eliminação de riscos para a saúde humana" (artigo 16º/3 do RRPDE). Sublinhe-se ainda que, no plano da reparação de danos causados à qualidade da água e à integridade de espécies e habitats protegidos, a entidade competente pode optar por não reconstituir integralmente o estado ecológico inicial, verificados os pressupostos indicados no ponto 1.3.3. do Anexo V.

No que respeita à execução das medidas reparatórias, esta deve obedecer ao plano previamente fixado e debatido, salvo no que toca a medidas de minimização imediatas - que acabam por ter mais natureza preventiva de agravamento dos danos do que reparatória, embora o legislador as tenha incluído no conteúdo regulatório do artigo 15º do RRPDE. A execução deve ser levada a cabo pelo operador, segundo instruções da entidade competente e de acordo com plano e prazo previamente fixados (artigo 15º/3/c), d) e e) do RRPDE). Perante a inércia do operador, a Administração actua em execução subsidiária - artigo 15º/3/f) do RRPDE.

Diga-se, para finalizar, que o incumprimento das obrigações: de prevenção, de informação e de reparação, é cominado com a aplicação de sanções contra-ordenacionais, nos termos do artigo 26º, bem como de sanções acessórias, de acordo com o disposto no artigo 27º, ambos do RRPDE (pelas autoridades com competência de fiscalização - artigo 25º). Os planos aplicativos do RRPDE e da Lei 50/2006, de 29 de Agosto (Lei-quadro das contra-ordenações ambientais) são diversos, na medida em que incidem sobre aspectos diferentes da tutela ambiental: preventiva, reparatória (RRPDE) e repressiva (Lei 50/2006) - cfr, de resto, o artigo 30º/2 do RRPDE. No entanto, os poderes de decretamento de medidas cautelares conferidos às autoridades administrativas ambientais no contexto de um processo contra-ordenacional movido a um operador que desrespeite as condições, legais e regulamentares, de laboração, podem - como se começou por assinalar - ser determinantes no sentido da redução da amplitude e consequências do dano ecológico.

2.2.5. A legitimidade alargada para requerer a prevenção/reparação de danos ecológicos

Tanto a directiva como o RRPDE apostam em fazer do cidadão um "zelador do ambiente" - na senda, aliás, da CRP, que no artigo 52º/3/a) afirma a consequência natural do alargamento de legitimidade procedimental e processual a qualquer cidadão para defesa de um bem de fruição colectiva. De certa forma, ambos os diplomas se aproveitam da eventual "paralelização" entre dano ambiental/pessoal e dano ecológico para convidar o cidadão a tomar a ofensa à sua esfera jurídica como pretexto de defesa também dos componentes naturais. Frise-se, todavia, que o objecto do RRPDE (mau grado a excrescência do Capítulo II...) é o dano ao ambiente; daí que o objecto directo da denúncia e do pedido de intervenção seja a salvaguarda deste bem jurídico.

O artigo 18º do RRPDE reconhece legitimidade para a denúncia de ameaça iminente51 de dano ecológico ou de verificação deste (devidamente documentada) em três situações (vide o nº 2):

i) Caracterização de um dano patrimonial directo, actual ou provável - alínea c);

ii) Caracterização de um dano pessoal ou patrimonial colateral, actual ou provável - alínea a)52;

iii) Caracterização de um dano exclusivamente ecológico, denunciável por qualquer actor popular, nos termos dos artigos 2º/1 da Lei 83/95, de 31 de Agosto, e 53º/2 do CPA, a cujo elenco se deve aditar o Ministério Público (cfr. os artigos 26ºA do CPC, e 9º/2 do CPTA), ou seja, cidadãos, autarquias, Ministério Público, fundações e associações que tenham a defesa do ambiente como objecto estatutário (cfr. também o artigo 3º da Lei 83/95).

Não podemos deixar de fazer uma brevíssima referência à tutela contenciosa. A natureza pública do dano ecológico - porque incidente sobre um bem que, na sua vertente imaterial (indivisível e inapropriável), é público: o ambiente - determina a propositura, quer de acções administrativas comuns de condenação na abstenção de comportamentos lesivos do ambiente por parte do operador (precedida de eventual pedido cautelar), nos termos do artigo 37º/2/c) e nº 3 do CPTA; quer de acções administrativas comuns de efectivação da responsabilidade contra o operador (em eventual solidariedade com a Administração omissiva), nos termos do artigo 37º/2/f) do CPTA, nos tribunais administrativos, independentemente da natureza jurídica do operador53. A alínea l) do artigo 4º/1 do ETAF, embora não configure expressamente uma reserva de jurisdição administrativa em sede de acção popular, deve ser entendida como tal. O autêntico dano ecológico é sempre órfão: a sua prevenção e reparação só por representantes da colectividade pode ser levada a cabo, junto dos tribunais especializados em questões jurídico-públicas.

Já assim se não passará caso a alegação diga respeito a um dano pessoal ou patrimonial do autor da acção, que consumirá (pelo menos numa primeira linha, respeitante à dimensão corpórea e individual do recurso natural) a dimensão ecológica do bem - uma vez que a legislação descarta a possibilidade de atribuição de indemnização a título de dano moral da colectividade -, e a ofensa seja perpetrada por entidade privada. Por outras palavras, pretendendo o autor/proprietário do bem ressarcimento por um dano que, para si, é primacialmente um dano patrimonial - ou tutela cautelar contra a sua efectivação -, os tribunais competentes para conhecerem a acção serão os tribunais cíveis sempre que a actuação lesiva não revestir natureza pública. Em contrapartida, insistimos, todas as acções populares para defesa da integridade dos recursos ecológicos qua tale deverão ser apreciadas pelos tribunais administrativos, ainda que o ofensor seja privado, pois a indemnização - materializada em prestações de facere a realizar no quadro do Anexo V do RRPDE - reveste sempre natureza pública.

No caso de sobreposição entre dimensões patrimonialista e ecológica do bem, cumpre lembrar a proibição de dupla reparação que resulta do artigo 10º do RRPDE, e que se poderá levantar perante situações de necessidade de ressarcimento que extravasem as operações de reconstituição natural (ou complementar)54. Pense-se, por hipótese, no proprietário de um montado de sobreiros cujas árvores morreram por contaminação de lençóis freáticos, em que o lesante foi condenado a promover o replantio: a reconstituição natural (sem embargo do tempo que demorará) não evita o incumprimento de contratos de fornecimento de cortiça assumidos pelo proprietário - são danos patrimoniais que devem ser ressarcidos nos termos gerais de Direito55.

Uma última nota: a reparação de danos ecológicos promovida por autores populares não resulta na atribuição de quantias pecuniárias aos peticionantes. Ultrapassando os equívocos da Lei 83/95, de 31 de Agosto e posicionando-se na linha da directiva, o RRPDE nega a concessão de "compensações" a sujeitos/associações agindo em nome da colectividade, afastando-se de uma hipótese de dano moral colectivo. Perante um dano ecológico, ou há possibilidade de reparação primária ou, não sendo esta (plenamente) possível, avança-se para uma indemnização complementar e/ou compensatória, conforme explicitadas no Anexo V, 1., visando a reconstituição natural ou por equivalente. Isto não significa que, em acções de efectivação da responsabilidade e perante a inércia do lesante na execução das medidas em que foi condenado, os autores não se vejam forçados a pedir a execução por terceiro ou a execução para pagamento de quantia certa56, que reverterá para o Fundo de Intervenção Ambiental, conforme dispõe o artigo 6º/1/d) do DL 150/2008, de 30 de Julho57.

2.2.6. A exclusão da obrigação de pagamento dos custos de prevenção/reparação; em especial, a responsabilidade objectiva

Vimos que a directiva autoriza os Estados-membros a dispensar o operador de custear as operações de reparação de danos ecológicos advenientes de actividade por si desenvolvida em determinados casos, e nomeadamente quando inexistir culpa daquele. O legislador português aproveitou esta ressalva e, no artigo 20º do RRPDE, libertou o operador da obrigação de pagamento de medidas de prevenção e reparação num conjunto de situações que passaremos a analisar sumariamente, com especial incidência dos casos de responsabilização objectiva58.

O artigo 20º aponta para dois grandes grupos de casos:

  1. Responsabilidade por facto de outrem ou instrução administrativa;

  2. Responsabilidade objectiva.

  3. No primeiro caso, o legislador exige que o operador avance com o montante em que importam as medidas preventivas ou reparatórias, reconhecendo-lhe direito de regresso contra o terceiro que provocou a ameaça de lesão ou o dano (não tendo havido incumprimento dos deveres de cuidado e segurança por parte do operador59), bem como contra a entidade administrativa que emitiu a ordem ou instrução que concorreu para a formação da ameaça ou para a produção do dano (e que se não relacione com a correcção de um processo causal lesivo iniciado pelo operador) - artigo 20º/1 e 2 do RRPDE. Estas normas sobre transmissão da responsabilidade não nos levantam dúvidas de maior. Devemos sublinhar que elas são aplicáveis independentemente de quem, em concreto, tome as medidas requeridas - o operador ou a Administração, em execução substitutiva ou directa.

  4. No segundo caso, o legislador exime do pagamento de custos de prevenção60 e reparação de danos ecológicos o operador que, actuando sem culpa, provoque uma lesão ambiental:

a) quer no âmbito de actividades listadas no Anexo III61;

b) quer no âmbito de qualquer outra actividade não tipicamente conotada como actividade de risco, com base no estado do conhecimento técnico-científico à data da eclosão dos factos.

Cumpre começar por assinalar que o artigo 20º/3 do RRPDE deve ser lido conjugadamente, quer com os artigos 7º e 12º do RRPDE, quer e sobretudo, com o artigo 41º da LBA. Desta primeira aproximação retiram-se duas ideias: por um lado, admite-se a responsabilização objectiva por danos significativos causados aos bens ecológicos advenientes de "acções especialmente perigosas"; por outro lado, este modelo de imputação só incidirá sobre certas actividades, conotadas, à luz dos conhecimentos técnico-científicos disponíveis, como tipicamente aptas a produzir danos significativos nos componentes ambientais naturais.

De seguida, deve sublinhar-se que o artigo 20º do RRPDE exclui a obrigação de pagamento do custo das medidas de prevenção e reparação, mas já não a obrigação de o operador, enquanto entidade mais próxima do evento lesivo, as adoptar no mais curto prazo. Julgamos que, apesar da equivocidade da redacção do preceito, esta obrigação de actuação vale, quer para os casos do nº 1, quer para os casos do nº 3 - embora este último não esclareça a forma de recuperação das quantias despendidas. O custo será suportado pela Administração, através do Fundo de Intervenção Ambiental, devendo o reembolso ser solicitado pelo operador. Nâo ignoramos, todavia, uma certa ingenuidade desta solução, na medida em que o diploma afirma expressamente, no artigo 17º/1/c), que a Administração tem o dever - ainda que "em último recurso" - de adoptar todas as medidas necessárias, quando "o operador não seja obrigado a suportar os custos, nos termos do presente decreto-lei"...

Deve identicamente realçar-se, em terceiro lugar, que cabe ao legislador uma margem de conformação deste tipo de responsabilidade balizada por dois princípios: de uma banda, a obrigação de reparação de danos ao ambiente; de outra banda, o não estrangulamento da actividade económica e do progresso científico. Na verdade, o instituto da responsabilidade objectiva, porque prescinde da culpa, deve estar reservado, no contexto da sociedade de risco, a um (periodicamente revisível) conjunto circunscrito de actividades potencialmente perigosas, cujos operadores ficam plenamente cientes de que, aos custos de produção, caberá juntar custos de suportação de danos à colectividade.

Dito isto, torna-se mais fácil compulsar o acerto (ou desacerto...) das soluções decorrentes do artigo 20º/3 do RRPDE. Pese a complexidade da técnica legislativa utilizada, e sempre considerando que se trata de responsabilidade sem culpa, pensamos poder retirar-se da norma o seguinte:

i) No caso de actividades inscritas no Anexo III, o operador ficará isento de responsabilidade por danos/riscos associados ao funcionamento normal da instalação62. Trata-se de uma má solução, que faz impender sobre o Estado toda e qualquer negatividade que possa resultar de uma actividade tipicamente perigosa mas autorizada à luz dos melhores conhecimentos e técnicas disponíveis, obnubilando o benefício económico que o operador dela retira. Tal risco - residual - deveria ser suportado pelo operador e não pela comunidade.

O Estado executa as medidas necessárias e suporta estes custos, financiando-se a partir do Fundo de Intervenção Ambiental - cfr. os artigos 17º/1/b), 19º/5 e 23º do RRPDE.

Em contrapartida, o operador será responsável pelos danos/riscos decorrentes de funcionamento anormal daquela. Estes riscos consideram-se compreendidos na álea da iniciativa económica assumida pelo operador que, detendo os lucros, deve suportar os custos causados por desvios ao percurso causal normal da actividade e suas consequências. O operador executa as medidas necessárias e suporta estes custos, apoiado nas garantias financeiras que constituiu - cfr. os artigos 7º, 12º, 19º/1 e 22º do RRPDE.

Problemático é, aparentemente, que o operador se veja obrigado pela totalidade, uma vez que o legislador não fixou tectos indemnizatórios. O artigo 41º/2 da LBA parece apontar para esta situação, de resto comum no plano da responsabilidade objectiva (cfr. o artigo 508º do CC) - embora possa questionar-se a verdadeira intenção da LBA, conhecendo-se a confusão em que se enreda quando dispõe sobre o "dano ambiental" no artigo 40º. Enfim, a dúvida que nos fica é a seguinte: não está o legislador de desenvolvimento vinculado à opção da LBA no tocante ao estabelecimento de patamares indemnizatórios? Note-se que o facto de o RRPDE excluir a atribuição, nos estritos termos da sua aplicação, de quantias a particulares, não implica o custo-zero das operações de reparação... A fixação de um limite (proporcional) indemnizatório é uma forma de o Estado aliviar o industrial, fazendo recair sobre a sociedade uma parte do prejuízo, caso o património (e as garantias) daquele seja(m) insuficiente(s), em razão da magnitude do dano. Poder-se-á considerar que as isenções fixadas no RRPDE "compensam" a ausência de tectos indemnizatórios, não havendo assim violação da LBA? Hesitamos na resposta positiva.

Acresce uma segunda reflexão, de carácter prático: tendo em conta a obrigatoriedade - suspensa até 2010 - de constituição de garantias financeiras, será difícil o surgimento, sem a fixação de limites, pelo menos de contratos de seguro. A resistência à responsabilidade ilimitada é, como se observou de início, o grande óbice à ratificação da Convenção de Lugano, em virtude da aleatoriedade que representa a contratação de um seguro contra riscos que facilmente adquirem uma magnitude extrema63. E mesmo no plano do financiamento a partir de fundos, o não plafonamento destas indemnizações pode fazer sangrar perigosamente as reservas.

ii) No caso de actividades não inscritas no Anexo III, nunca há responsabilização a título objectivo. Falha aqui a caracterização da actividade como "tipicamente perigosa", o que a subtrai a este tipo de imputação. Trata-se aqui de operacionalizar o compromisso entre protecção do ambiente e não estrangulamento dos operadores económicos. O Estado executa as medidas necessárias e suporta estes custos, financiando-se a partir do Fundo de Intervenção Ambiental - cfr. os artigos 17º/1/b), 19º/5 e 23º do RRPDE.

2.2.7. A obrigatoriedade de constituição de garantias financeiras

O RRPDE estabelece um princípio de obrigatoriedade de constituição de garantias financeiras no artigo 22º - o qual só terá valência plena a partir de 1 de Janeiro de 2010 (artigo 34º). Só os operadores das actividades abrangidas pelo Anexo III estão vinculados a esta obrigação.

As garantias podem assumir várias modalidades (seguro; garantia bancária; participação em fundos ambientais ou outros) - artigo 22º/2. Obedecem ao princípio da exclusividade - artigo 22º/3. E podem sujeitar-se a limites mínimos, a fixar pelo Governo, através de portaria - artigo 22º/4. Sobre qualquer garantia financeira, obrigatória ou facultativa, incidirá uma taxa no montante máximo de 1% do respectivo valor64, que reverterá integralmente a favor do Fundo de Intervenção Ambiental (artigo 23º/2 e 4 do RRPDE).

3. O regime de responsabilidade por dano ecológico plasmado no DL 147/2008, de 29 de Julho: abordagem crítica

Até aqui, procedemos a uma "leitura" do RRPDE predominantemente descritiva. A autonomização do dano ecológico constitui, para nós, um enorme passo no sentido da afirmação do Direito do Ambiente enquanto ramo dedicado, não à tutela de bens pessoais e patrimoniais, mas antes à defesa e promoção de bens naturais. A perspectiva ampla de responsabilidade adoptada pelo RRPDE é outro dos factores que nos agrada especialmente, uma vez que concretiza e reforça a vertente do "dever de protecção do ambiente", consignada no artigo 66º/1/2ª parte, da CRP, mas normalmente ofuscada pela equívoca presença do "direito ao ambiente".

Há, no entanto, alguns pontos na regulação contida no RRPDE que merecem, mais que uma leitura, um comentário menos favorável. Seleccionámos quatro.

3.1. O equívoco da "responsabilidade administrativa"

O RRPDE está dividido por cinco Capítulos: I. Disposições gerais; II. Responsabilidade civil; III. Responsabilidade administrativa; IV. Fiscalização e regime contra-ordenacional; V. Disposições complementares, finais e transitórias. O sentido do Capítulo III é para nós uma incógnita.

Veja-se que o artigo 2º/1 do RRPDE estabelece a aplicação do regime de responsabilidade por dano ecológico a "uma qualquer actividade desenvolvida no âmbito de uma actividade económica, independentemente do seu carácter público ou privado, lucrativo ou não" (itálico nosso). Ora, se a consideração da natureza pública ou privada da actividade não releva, como explicar a inserção de um capítulo dedicado à "responsabilidade administrativa"? Não se pretende, seguramente, dispensar o recurso à Lei 67/2007, de 31 de Dezembro, regime da responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais entidades públicas, no domínio dos danos ecológicos - ao cabo e ao resto, o RRPDE inova quanto ao objecto e quanto à execução da obrigação de indemnizar, mas não dispensa as normas e modalidades de imputação específicas das entidades públicas. Nem se almeja, decerto, excluir entidades privadas do âmbito de aplicação do Capítulo III - isso equivaleria, mais do que a esvaziá-lo, a descaracterizá-lo consideravelmente.

Salvo melhor opinião e reflexão, julgamos que melhor teria sido o legislador não autonomizar o Capítulo III, devendo ter referenciado o Capítulo II pela epígrafe "Responsabilidade pela prevenção e reparação de danos ecológicos" (suprimindo-se os artigos 12º e 13º)65, e criando uma secção I sobre responsabilidade civil, e uma secção II sobre responsabilidade contra-ordenacional. A referência à responsabilidade administrativa leva a crer que é sobre as entidades administrativas que recaem todas as obrigações de prevenção e reparação, quando não é nada disso que sucede. A responsabilidade primária é do operador, embora as entidades competentes não se possam demitir das suas tarefas de prevenção e reparação, substituindo-se-lhe, em caso de inacção. Os casos de intervenção pública (leia-se: das entidades com competências de fiscalização) directa são contados: em casos de urgência; quando o operador incumpre as obrigações de prevenção e reparação que sobre si impendem; quando é impossível, por recurso aos critérios de causalidade enunciados, identificar o responsável - artigo 17º/1.

Num domínio em que de há muito se reclama a unificação do regime de responsabilidade66, a "limpeza" de conotações (ainda que meramente formais) da responsabilidade por dano ecológico com o regime da responsabilidade administrativa impor-se-ia. Num diploma dedicado ao dano ecológico, não faz qualquer sentido - sobretudo para nós, que não acreditamos na consistência do "direito ao ambiente"67 - a inserção de um Capítulo como o II, nem tão-pouco a alusão à "responsabilidade administrativa" na epígrafe do Capítulo III. Perdeu-se uma oportunidade de destrinçar claramente ambas as realidades de uma vez por todas, e agudizou-se o problema da eleição da jurisdição competente para se ocupar das questões relacionadas com "danos ambientais".

3.2. A deficiente previsão dos casos de actuação directa para prevenção e reparação de danos ecológicos

Constituindo a prevenção e reparação de danos ecológicos uma tarefa ineliminável das entidades públicas (artigos 9º/e) e 66º/2 da CRP), certo é que esta obrigação se reparte com os operadores económicos e demais sujeitos, uma vez que sobre estes impende identicamente um dever de protecção do ambiente (artigo 66º/1 da CRP). O RRPDE impõe aos operadores - operadores económicos e outros, no caso da imputação subjectiva - a obrigação de executar e custear as medidas preventivas e reparatórias motivadas pela necessidade de fazer face a danos e ameaças de danos ecológicos resultantes da sua actividade. É isto que resulta da regra geral extraída dos artigos 13º/1, 14º/1 e 15º/1/b) e c) do RRPDE. Em contrapartida, as hipóteses de danos provocados por operadores não identificados; as situações de extrema urgência de actuação; e sempre que o operador não cumprir as obrigações de reparação necessárias, ficam entregues, "em último recurso", à iniciativa da entidade pública competente.

Estas hipóteses de "actuação directa" estão previstas no artigo 17º do RRPDE, norma que peca a vários títulos:

i) Em primeiro lugar, contém uma previsão de execução subsidiária na alínea a) do nº 1. A execução subsidiária coloca-se, nos termos do artigo 157º/1 e 2 do CPA, nos casos de prestações fungíveis e sempre que o devedor/operador não cumprir o prazo estabelecido para o cumprimento no acto de execução. Contendo os artigos 14º/5/d) e 15º/3/f) do RRPDE normas de habilitação de execução68subsidiária de obrigações de prevenção e reparação, respectivamente, a norma contida no artigo 17º é, não só deslocada, como desconexa e inútil;

ii) Em segundo lugar, o nº 2 fala em dispensa de procedimento de fixação de medidas de prevenção por força da urgência, sendo certo que este procedimento não existe...;

iii) Em terceiro lugar, o nº 3 dispõe sobre a recuperação de custos em regresso reportando-se aos números anteriores; ora, as alíneas b) e c) do nº 1 referem-se a hipóteses em que tal recuperação é impossível, por não identificação do operador e por exclusão legal...

Estes "pecadilhos" (o primeiro é mais que isso...) revelam uma deficiente técnica legislativa na construção da hipótese de actuação directa. O legislador português deveria ter buscado inspiração no exemplo espanhol, cuja norma "irmã" ?o artigo 23 da Ley 26/2007, de 23 de Outubro ?dispõe o seguinte:

"1. Por requerirlo la más eficaz protección de los recursos naturales, y de los servicios que éstos prestan, la autoridad competente podrá acordar y ejecutar por si misma las medidas de prevención, de evitación de nuevos daños o de reparación previstas en esta ley, atendiendo, entre otras, a las seguientes circunstancias:

a) Que no se haya podido identificar al operador responsable y no quepa esperar a ello sin peligro de que se produzcan daños medioambientales.

b) Que haya diversos operadores responsables y no sea posible una distribución eficaz en el tiempo y en el espacio que garantice la correcta ejecución de las medidas.

c) Que se requieran estudios, conocimientos o medios técnicos que así lo aconsejen.

d) Que sean necesarias actuaciones en bienes de las Administraciones públicas o en los de propriedad privada de terceros que hagan dificil o inconveniente su realización por el operador responsable.

e) Que la gravedad y la trascendencia del daño así lo exijan.

  1. En casos de emergencia, la autoridad competente podrá actuar sin necesidad de tramitar el procedimiento previsto en esta ley para fijar las medidas reparadoras, de evitación o de prevención de los daños mediambientales o para exigir su adopción

    Una vez desaparecidas tales circunstancias, la autoridad competente, previa la instrucción del correspondiente procedimiento, dictará resolución fijando el importe de los costes de las medidas ejecutadas en aplicación de este artículo y el obligado a satisfacerlos, la cual será susceptible de ejecución forzosa.

  2. La autoridad competente recuperará del operador o, cuando proceda, del tercero que haya causado el daño o la amenaza inminente de daño, los costes en que haya incurrido por la adopción de tales medidas de prevención, de evitación de nuevos daños o de reparación.

    No obstante, la autoridad competente podrá acordar no recuperar los costes íntegros cuando los gastos necesarios para hacerlo sean superiores al importe recuperable. Para tomar este acuerdo será necesario la elaboración de una memoria económica que así lo justifique".

3.3. A ausência de presunções de causalidade e de uma norma sobre inversão do ónus da prova

Num domínio como o ambiente, a imputação de danos torna-se muitas vezes particularmente difícil, em virtude, entre outros, da inexistência de informação suficiente sobre as causas do dano e de fenómenos de causalidade alternativa69. O RRPDE definiu critérios de aferição da causalidade (artigo 5º) e estabeleceu uma presunção de repartição da responsabilidade em partes iguais no caso de cumulação de acções lesivas (artigo 4º/2). Porém, nem se reporta à inversão do ónus da prova a favor do denunciante ?decorrência natural do princípio da prevenção e da desigualdade informativa em que se encontra quem detecta um dano ecológico face ao lesante70? nem toma posição no tocante aos casos de causalidade alternativa ?aqueles em que vários sujeitos podem ter concorrido para o dano, não sendo possível estabelecer uma causalidade inquestionável.

Repare-se que, nem o artigo 4º do RRPDE supre esta falta ?porque parte do pressuposto de que a causalidade está aferida ? nem tão-pouco o artigo 6º do RRPDE a colmata ?dado que, identicamente, exige a prévia verificação da causalidade nos termos do artigo 5º do RRPDE. Esta norma assenta na teoria da causalidade adequada ("...o facto danoso ser apto a produzir a lesão..."), além de apontar para a prova científica do percurso causal ?o que reduz grandemente a margem de construção de situações de imputação menos firmes.

Claro que o legislador pode sempre escudar-se na reserva da directiva71?de certa forma compreensível, na medida em que se dirige a 27 Estados-membros, com sistemas de responsabilidade muito diversos e num domínio sensível, dada a afronta à clássica liberdade de poluir entrelida a partir da iniciativa económica. No entanto, no plano nacional, poder-se-ia porventura ter ido um pouco mais além, seguindo o exemplo alemão, conforme preconiza Ana PERESTRELO DE OLIVEIRA. Estabelecer uma presunção de causalidade para casos de responsabilidade alternativa, sobretudo no quadro de um diploma que estabelece a obrigatoridade de constituição de garantias financeiras, não se revelaria intolerável. E quanto à regra da inversão do ónus da prova, ela já se pode considerar uma decorrência lógica do princípio da prevenção; logo, a sua afirmação expressa não constituiria surpresa.

3.4. A fraude ao Direito Comunitário da norma sobre aplicação no tempo

Como afirmámos supra, a norma sobre exclusões (artigo 2º/2 do RRPDE) não esgota os casos imunes à aplicação do RRPDE. Dos artigos 33º e 35º constam mais algumas hipóteses, nomeadamente a prescrição, por um lado, e os danos ocorridos em data anterior à entrada em vigor (ou, ainda que posteriores, causados por actividade já concluída) do RRPDE.

Ora, a data de início de vigência do DL 147/2008 é tardia relativamente ao prazo de cumprimento estabelecido no artigo 19º/1 da directiva: 30 de Abril de 2007. Donde, a obrigação regulatória se ter vencido nessa data, não podendo, através de disposições como os artigos citados, os Estados-membros reduzir em mais de um ano o âmbito normativo da directiva72. Note-se que esta dilação do prazo de transposição contribui para um alargamento dos casos excluídos, contrariando a vocação de tutela ambiental contida no instrumento comunitário e violando, reflexamente, o princípio da solidariedade plasmado no artigo 10 do Tratado de Roma.

"Manobras" como esta são, infelizmente, comuns e, no plano específico do Direito do Ambiente, já mereceram expressa condenação e repúdio do Tribunal de Justiça. Veja-se, por exemplo, o Acórdão de 9 de Agosto de 1994, prolatado no caso Bund Naturschutz Bayern (caso C-396/92), no qual a Alta Instância do Luxemburgo rechaçou a possibilidade de introduzir no diploma de transposição um período transitório que defraudaria o termo inicial de vigência estabelecido na directiva. Deve, por isso, fazer-se uma leitura dos artigos referidos (33º e 35º do RRPDE) conforme à directiva, reportando a data de início de aplicação do RRPDE a 30 de Abril de 2007, e não a 1 de Agosto de 2008.73

4. Balanço preliminar dos impactos do DL 147/2008, de 29 de Julho

O RRPDE provoca-nos sentimentos contraditórios. Por um lado, o diploma dá um passo no sentido da autonomização do dano ecológico ?mas compromete esta ambição no Capítulo II... Por outro lado, fixa critérios para a reparação e compensação do dano ecológico ?mas esquece o estabelecimento da regra da inversão do ónus da prova... Por outro lado, ainda, descrimina deveres de prevenção e reparação a cargo dos operadores sem exonerar a Administração da competência primacial de tutela ambiental que a Constituição lhe confia ?mas enreda-se em equívocos na regulação do poder de execução administrativa... Acresce a má solução quanto à exoneração do operador de responsabilidade objectiva por riscos ligados ao normal funcionamento da instalação. E também a exclusão de bens ambientais como o ar, o subsolo e o solo do universo de componentes sujeitos a danos ecológicos...

Há, no entanto, uma expectativa positiva aliado ao efeito da novidade. Contudo, resta saber como será este diploma assimilado pelos operadores, económicos e jurídicos ?e pelos técnicos, a quem caberá, em primeira linha, identificar as "alterações adversas mensuráveis" e "significativas" do estado dos bens ambientais. Se for levado a sério, haverá custos acrescidos, em dinheiro e em complexidade (de aferição do dano; de determinação das formas de reparação e compensação), mas daremos passos seguros no sentido da consolidação do "Estado de Direito Ambiental" ?intra e intergeracionalmente falando. Se perdermos (mais) esta oportunidade de contribuir para a desaceleração da catástrofe ecológica, mesmo que apenas no espaço deste nosso "jardim à beira-mar plantado", who will want to live forever...?

Lisboa, Outubro de 2008

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(*) Este artigo serviu de suporte à intervenção da autora nas Jornadas de Direito do Ambiente que tiveram lugar na Faculdade de Direito de Lisboa, no dia 15 de Outubro de 2008, subordinadas ao tema O que há de novo no Direito do Ambiente?, patrocinadas pelo Instituto de Ciências Jurídico-Políticas. Como já vai sendo hábito nos meus escritos dedicados à temática ambiental, devo expressar o meu profundo agradecimento ao Dr. Tiago Antunes pela leitura atenta e (muito) crítica que teceu a uma primeira versão deste texto. Os erros e omissões são da minha inteira responsabilidade.

[1] Segundo Willy De Backer, Director para a Europa da Global Footprint Network, a "pegada ecológica" dos portugueses é, em média, de 5,2 hectares, para uma capacidade de regeneração de 1,8 hectares/ano... - Fonte: Revista Visão, nº 805, de 7 de Agosto de 2008, p. 18.

[2] Sobre esta questão, fulcral no Direito Internacional do Ambiente, maxime nos casos de responsabilidade ambiental, reflectimos mais demoradamente nos nossos Apontamentos sobre a jurisprudência ambiental internacional, in Elementos de apoio à disciplina de Direito Internacional do Ambiente, Lisboa, 2008, pp. * segs.

[3] O tribunal invocou a complexidade de aferição dos danos, bem como o facto de muitos danos se verificarem em zonas fora da jurisdição estadual, em bens ambientais com o estatuto de res nullius ?cfr. Alexandre KISS e Jean-Pierre BEURIER, Droit International de l'Environnement, 3ª ed., Paris, 2004, p. 433.

[4] Cfr. Agathe VON LANG, Affaire de l'Erika: la consécration du préjudice écologique par le juge judiciaire, in AJDA, 2008/17, pp. 936 segs.

[5] Cfr. Malgosia FITZMAURICE, International responsibility and liability, in Oxford Handbook of International Environmental Law, coord. Daniel Bodansky, Jutta Brunné e Ellen Hey, Chippenham, 2007, pp. 1010 segs, 1016 segs.

[6] Cfr. a notícia "Para salvar o planeta: comprem ar, não petróleo!", no Courrier Internacional nº 133, de 19 de Outubro de 2007, p. 22: tratou-se de uma iniciativa do Presidente do Equador, que a 24 de Setembro de 2007 apresentou, na Assembleia Geral da ONU, uma proposta no sentido de abdicar de explorar uma jazida petrolífera que "renderia" cerca de 900 milhões de barris/ano devido à sua localização numa zona (Yasuni) classificada como Reserva da Biosfera pela UNESCO em 1989.

[7] Sobre estes aspectos, veja-se Ana PERESTRELO DE OLIVEIRA, Causalidade e imputação na responsabilidade civil ambiental, Coimbra, 2006, passim.

[8] Como demonstrámos no nosso Constituição e Ambiente: errância e simbolismo, in Textos dispersos de Direito do Ambiente (e matérias relacionadas), II, Lisboa, 2008, pp. 21 segs, 35-36.

[9] Revelando idêntica preocupação, embora tomando como ponto de partida o artigo 41º da LBA, Pedro SILVA LOPES, Dano ambiental: responsabilidade civil e reparação sem responsável, in RJUA, nº 8, 1997, pp. 31 segs, 50 segs.

[10] Cfr. o nosso O Provedor de Justiça e a tutela de interesses difusos, in Textos dispersos de Direito do Ambiente (e matérias relacionadas), II, Lisboa, 2008, pp. 235 segs, 248 segs.

[11] José CUNHAL SENDIM, Responsabilidade civil por danos ecológicos, Coimbra, 1998, esp. pp. 130 segs.

[12] Decisão exemplar em sede de reparação por equivalente continua a ser a proferida no Caso das cegonhas brancas ?sentença do Tribunal Judicial de Coruche, de 23 de Fevereiro de 1990, proc. 278/89. Por iniciativa do Ministério Público, uma proprietária rural foi condenada a levantar estacas a fim de substituir as árvores que ilicitamente abateu e que serviam de poiso e local de nidificação de cegonhas brancas.

[13] Sobre o regime da directiva, vejam-se: Lucas BERGKAMP, The proposed Environmental liability directive, in EELR, 2002/11, pp. 294 segs; Carole HERMON, La réparation du dommage écologique. Les perspectives ouvertes par la directive du 21 avril 2004, in AJDA, 2004/33, pp. 1792 segs; Eckard REHBINDER, Prevention and restitution of pure environmental damage: the EU directive on environmental liability, in Direito Ambiental visto por nós, Advogados, coord. de Mário Werneck, Bruno Campos Silva, Henrique A. Mourão, Marcus Ferreira de Moraes, Walter Soares Oliveira, Belo Horizonte, 2005, pp. 395 segs; Barbara POZZO, La nuova direttiva 2004/35 del Parlamento europeo e del Consiglio sulla responsabilità ambientale in materia di prevenzione e riparazione del danno, in RGA, 2006/1, pp. 1 segs, bem assim como os textos recolhidos em duas publicações dedicadas ao tema ?Revista Aranzadi de Derecho Ambiental, nº monográfico - Estudios sobre la Directiva 2004/35/CE de responsabilidad por daños ambientales y su incidencia en el ordenamiento español, Navarra, 2005, e La responsabilità ambientale. La nuova direttiva sulla responsabilità ambientale in materia di prevenzione e riparazione del danno ambientale, a cura di Barbara Pozo, Milão, 2005. Sobre a proposta de directiva, Lucas BERGKAMP, The proposed environmental liability directive, in EELR, 2002/11, pp. 294 segs; bem assim como as comunicações proferidas na Conferência Internacional sobre responsabilidade ambiental promovida, em 2002, pelo British Council e pela Ecosphere, em colaboração com a Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento e com o Gabinete de Relações Internacionais do Ministério das Cidades, Ordenamento do Território e Ambiente, reunidas no nº 10 da Revista de Direito do Ambiente e Ordenamento do Território, 2002. Para uma visão comparada dos sistemas de responsabilidade "ambiental", Lucía GOMIS CATALÁ, Responsabilidad por daños al medio ambiente, Pamplona, 1998, pp. 29 segs.

[14] No texto da directiva existem, no entanto, referências a danos para a saúde humana, colaterais ?no artigo 7º/3, §2º, in fine, e no Anexo I, §2º ?e directos (no que tange ao solo: artigo 2º/1/c) e Anexo II, 2.). Quanto aos primeiros, a sua verificação serve para sobrequalificar como significativos os danos ecológicos, mas não dispensa a eclosão de uma lesão num bem ambiental natural como fundamento de aplicação do regime da directiva. Relativamente aos segundos, é forçoso concluir no sentido do desequilíbrio da solução encontrada, uma vez que se descartou qualquer lesão ecológica nas qualidades do solo, filiando-se estes danos exclusivamente na afectação da saúde humana. Para uma crítica da definição de dano ecológico constante da directiva (alteração adversa mensurável de um recurso natural ou a deterioração mensurável do serviço de um recurso natural), Lucas BERGKAMP, The proposed..., cit., pp. 306-307.

[15] Cfr. o considerando 14 do Preâmbulo, e o artigo 3º/3 da directiva.

[16] Cfr. os considerandos 4 e 6 do Preâmbulo, e o artigo 2º/1 da directiva.

[17] Cfr. os artigos 5º e 6º da directiva.

[18] Cfr., em geral, o considerando 13 do Preâmbulo e artigo 2º/1/a) da directiva. Em especial quanto às espécies e habitats, Anexo I, §3º.

[19] Cfr. o artigo 4º/5 da directiva.

[20] Anote-se esta exigência, uma vez que, havendo relação entre um défice de ponderação de risco relativamente a um evento natural ou omissão de medidas no sentido da minimização dos seus efeitos (a devastação provocada pelo furacão Katrina, em 2006, constitui um exemplo paradigmático: a fragilidade dos diques de Nova Orleans estava de há muito diagnosticada...), esta causa de exclusão cede.

[21] Esta categoria de exclusões é bem mais significativa do que parece, uma vez que, como sublinha Carole HERMON (La réparation..., cit., p. 1798), a grande maioria das convenções não contempla a reparação do dano ecológico qua tale.

[22] Estes cinco casos encontram-se descritos no artigo 4º da directiva.

[23] Estas duas hipóteses estão contempladas no artigo 8º/3/a) e b) da directiva.

[24] Cfr. o artigo 17º, 1º travessão, da directiva.

[25] Cfr. o artigo 17º, 2º travessão, da directiva.

[26] Conforme nota Mariachiara ALBERTON (Dalla definizione di danno ambinetale alla costruzione di un sistema di responsabilità: riflessioni sui recenti sviluppi del diritto europeo, in RGA, 2006/5, pp. 605 segs, 611), o legislador comunitário adoptou uma postura de responsabilidade ecológica não retroactiva, excluindo a sua aplicação aos casos de "contaminações antigas" (Altlasten) em virtude da magnitude económica da opção contrária.

[27] Cfr. o artigo 17º, 3º travessão, da directiva.

[28] Cfr. os casos descritos no artigo 8º da directiva.

[29] A que acresce a condição de "as medidas de reparação já realizadas assegurarem a inexistência de riscos significativos de efeitos adversos para a saúde humana, as águas ou as espécies e habitats naturais" ?Anexo II, ponto 1.3.3. a) da directiva. A situação a que nos reportamos, de reparação complementar, configura uma exoneração parcial do operador, com base numa avaliação pautada pelo princípio da proporcionalidade.

[30] Cfr. o artigo 3º/3, e o Anexo II., pontos 1.d) e 1.1.3. da directiva.

[31] Recenseando os principais problemas colocados pela reparação do dano ecológico e identificando vários modelos comparados, Lucía GOMIS CATALÁ, Responsabilidad..., cit., pp. 247 segs.

[32] Acepção acolhida pela Lei da acção civil pública brasileira ?Lei 7.347, de 1985 (com redacção dada pela Lei 8.884, de 1994) ? no artigo 1º, que menciona "acções de responsabilidade por danos morais e patrimoniais causados: I - ao meio ambiente". Sobre esta noção, vejam-se José Rubens MORATO LEITE, Dano ambiental: do individual ao colectivo extrapatrimonial, 2ª ed., S. Paulo, 2003, esp. pp. 265 segs; e João Carlos de CARVALHO ROCHA, Responsabilidade civil por dano ao meio ambiente, in Política Nacional do Meio Ambiente, 25 anos da Lei nº 6.938/1981, coord. João Carlos de Carvalho Rocha, Tarcísio H. P. Henriques Filho e Ubiratan Cazetta, Belo Horizonte, 2007, pp. 217 segs, 236 segs. Cremos que, apesar da equivocidade da fórmula do artigo 48º/3 da LBA, não é essa a intenção do legislador português. A "indemnização especial a definir por legislação" a que se reporta o preceito (na impossibilidade de restauração natural) articula-se com o disposto no artigo 40º da LBA, o qual, como já se referenciou supra no texto, configura uma visão pessoalista do dano ao ambiente. Diverso do dano moral da colectividade afigura-se-nos o dano não patrimonial de entidades com atribuições em matéria ambiental como os municípios, ou mesmo ONGAs. No caso Erika, o tribunal correccional de Paris admitiu a concessão a vários municípios afectados pela maré negra causado pelo naufrágio a título de lesão da "reputação da colectividade" (por as localidades serem internacionalmente reconhecidas pelas suas belezas naturais) ?cfr. Agathe VON LANG, Affaire de l'Erika:..., cit., pp. 937 segs.

[33] Note-se que a componente garantística da directiva foi exigida pelo Parlamento Europeu, tendo enfrentado forte resistência dos lóbis da indústria, que alegaram a falta de experiência do sector dos seguros relativamente a danos ecológicos. Daí o compromisso a que se chegou, adiando a solução até 2010 ?cfr. Eckard REHBINDER, Prevention..., cit., p. 411.

[34] Sobre este ponto, ver Armando FEDELI, Le soluzioni assicurative per un nuovo quadro di responsabilità ambientale, in La responsabilità ambientale..., cit., pp. 119 segs; Ángel Ruiz DE APODACA ESPINOSA, Garantias financieras y de reparación del daño ambiental establecidas en la directiva 2004/35/CE, in Revista Aranzadi de Derecho Ambiental, nº monográfico, cit., pp. 185 segs. A Ley 26/2007, de 23 de Outubro, diploma através do qual o Estado espanhol transpôs a directiva, estabelece um quadro extremamente desenvolvido da matéria das garantias financeiras (Cap. IV), que divide entre Garantias obrigatórias (Secção I: artigos 24 a 33) e Fundo Estatal de reparação de danos ambientais (Secção II: artigo 34).

[35] Esta afirmação pode causar estranheza em razão da existência de um Capítulo II relativo à "responsabilidade civil". Esta inclusão desiquilibra o diploma, uma vez que, não só duplica disposições da Código Civil inquestionavelmente aplicáveis em sede de danos pessoais e patrimoniais ("ambientais"), como desvirtua a vocação de regulação da reparação de danos ecológicos, raison d'être do RRPDE. V. infra, 3.1.. Nesta perspectiva, o artigo 10º do RRPDE pode causar alguma perplexidade ao falar de "lesados". O que se pretende é, como a epígrafe esclarece, excluir casos de dupla reparação, ou seja, hipóteses de sobreposição de pedidos de compensação financeira por perda de qualidade de um bem natural que constitui fruto de utilidades económicas para o seu titular com pedidos de reparação primária, complementar ou compensatória, do seu estado ecológico, apresentados anteriormente por autores populares.

[36] Convém referenciar aqui que o dano ao componente solo (na sequência da directiva) só releva enquanto fonte de risco para a saúde humana ?artigo 11º/e) iii) e Anexo III, ponto 2. Ou seja, não se trata aí de um verdadeiro dano ecológico.

[37] Mas cfr. a nota anterior...

[38] A interrogação deve-se a que poderá sempre ler-se a referência ao solo como abrangendo o subsolo ?apesar de a LBA os distinguir. Ainda assim, a circunscrição do dano ao solo como dano à saúde humana sempre implicará um duplo problema para o RRPDE: primo, a não consideração do dano ao solo como dano ecológico; secundo, a exclusão do dano ao subsolo.

[39] Poder-se-á objectar à inclusão do ar em virtude da dificuldade de reparação de danos a este componente ambiental, que tenderão a configurar danos difusos, excluídos pela directiva e de imputação complexa. Mas ainda assim, melhor seria ficarem compreendidos no âmbito de aplicação do RRPDE, à partida, mesmo que a maior parte dos casos não fosse imputável, à chegada.

[40] Poderíamos mesmo ser tentados a concluir por uma dupla amplitude do conceito de responsabilidade por dano ecológico, dadas as hipóteses de suportação de custos pela entidade pública autorizante ?ou com competência específica sobre o recurso natural em jogo. Isto é, não haveria dualidade entre credor e devedor, pois a colectividade sofre o dano ecológico e custeia a sua reparação. No entanto, a afectação dos custos ao Fundo de Intervenção Ambiental (alimentado por coimas e taxas sobre as garantias financeiras constituídas ao abrigo do RRPDE) faz com que, na realidade, os patrimónios sejam diferentes.

[41] Sobre o(s) dever(es) de protecção do ambiente, veja-se o nosso Risco e modificação do acto autorizativo concretizador de deveres de protecção do ambiente, Coimbra, 2007, pp. 152 segs.

[42] Vejam-se a título de exemplo os artigos 27º/b) do DL 69/2000, de 3 de Maio (com alterações posteriores e objecto de republicação pelo DL 197/2005, de 8 de Novembro); 67º/3/a) da Lei 58/2005, de 29 de Dezembro; e 20º/3/a) e b) do DL 173/2008, de 26 de Agosto.

[43] Vejam-se, a este propósito, José Joaquim GOMES CANOTILHO, Actos autorizativos jurídico-públicos e responsabilidade por danos ambientais, in BFDUC, 1993, pp. 1 segs, 38 segs, e o nosso Risco e modificação..., cit., esp. pp. 555 segs.

[44] Como consequência, do princípio da reserva de lei restritiva de direitos liberdades e garantias (ainda que aqui de natureza análoga): artigos 18º/2 e 3, e 165º/1/b) da CRP.

[45] Pense-se no desrespeito das normas fixando valores de emissão, passível de contra-ordenação e mesmo de aplicação de medidas cautelares de suspensão da laboração: o desrespeito, por si só, pode gerar acções de prevenção impostas pelas entidades com competência inspectiva (maxime, a IGAOT), sem que se configure, desde logo, uma ameaça de degradação significativa de um dado componente ambiental.

[46] A referência do artigo 5º à "possibilidade de prova científica" não deve significar, cremos, a adopção de uma visão minimalista da prevenção ?apenas relativamente a perigos, eventos determináveis a partir de dados estatísticos firmes ou teorias científicas consensuais. Note-se que o preceito menciona "risco" e "perigo", o que alarga o espectro de antecipação a eventos cuja causalidade pode não estar absolutamente determinada mas revestir uma probabilidade não descartável, à luz de conhecimentos plausíveis.

[47] A recuperação dos custos fica assegurada, na primeira situação ?de execução subsidiária ?pela prestação de garantias por parte do operador, nos termos do artigo 19º/2 do RRPDE, e na segunda situação ?de execução directa, por força da urgência na salvaguarda de bens de valor superior ?através de acção de regresso, prevista no artigo 17º/3 do RRPDE, e num prazo de cinco anos (artigo 19º/3 do RRPDE). A diferença reside em que, no primeiro caso, a existência de um título executivo ?o acto através do qual a Administração notifica o operador da quantia em dívida, que este liquidará, se necessário por recurso às garantias financeiras ?dispensa a propositura de uma acção declarativa com vista à determinação do débito (caso o operador não pague voluntariamente). Sobre a execução coerciva para pagamento de quantia certa, v. o nosso Contributo para o estudo das operações materiais administrativas e do seu controlo jurisdicional, Coimbra, 1999, pp. 133 segs. Em todas as hipóteses em que o operador não seja obrigado a suportar os custos e seja a autoridade pública a arcar com eles (cfr. os artigos 19º/4, 20º/1/b) e 20º/3 do RRPDE), as despesas de prevenção e reparação repercutem-se no Fundo de Intervenção Ambiental referido no artigo 23º do RRPDE, criado pela Lei 50/2006, de 29 de Agosto, e regulamentado pelo DL 150/2008, de 30 de Julho (cfr. o artigo 10º/2 deste último diploma).

[48] Em bom rigor, a alínea d) do nº 5 do artigo 14º do RRPDE deveria ser autonomizada, pois aí a discricionaridade de acção contemplada na hipótese normativa reduz-se drasticamente.

[49] A obrigação de indemnizar será, em regra, solidária com a entidade autorizada (embora não necessariamente partilhada em igual proporção) ?J. C. LAGUNA DE PAZ, Responsabilidad de la Administración por daños causados por el sujeto autorizado, in RAP, nº 1555, 2001, pp. 27 segs, 54 segs ? salvo quando o operador tiver agido com manifesta má-fé, falseando informações ou induzindo deliberadamente a Administração em erro (v.g., juntando pareceres técnicos "comprados") ?C. GOOSSENS, Le régime juridique des autorisations requises pour l’exploitation des établissements industriels en Belgique, in RISA, nº 1, 1953, pp. 608 segs, 670. Falando em possibilidade de repercussão de parte do quantum indemnizatório, através de acção de regresso proposta pelo operador contra a Administração, Susana GALERA RODRIGO, La responsabilidad de las administraciones publicas en la prevención de daños ambientales, Madrid, 2001, pp. 167 segs.

[50] O RRPDE, na senda da directiva, enuncia três gradações de medidas reparatórias: primárias, complementares e compensatórias. As primeiras visam reconstituir o status quo anterior à lesão; as segundas pretendem colmatar falhas eventualmente verificadas ao nível da restauração natural, actuando como reparação por equivalente. Finalmente, as medidas compensatórias têm por objectivo atenuar o impacto do dano no ecossistema, "corrigindo danos induzidos, ou seja, aqueles que ocorreram entre a verificação da lesão e a sua reparação", "a ruptura do ciclo natural normal" ?Carole HERMON, La réparation..., cit., p. 1795.

[51] Repare-se que a directiva, no artigo 12º/5, admite que os Estados-membros excluam o alargamento de legitimidade no caso de "mera" ameaça de dano. O legislador português, aqui bem mais ciente do parâmetro constitucional e legal, incluiu esta hipótese.

[52] Julgamos que a diferença entre estas duas alíneas reside na afectação directa ou indirecta da esfera jurídica de um sujeito, embora sempre pressuponha a verificação de um dano ecológico stricto sensu. No primeiro caso, ao dano ecológico cumula-se um dano ao património do sujeito ?v.g., contaminação de solos agrícolas que impossibilita o aproveitamento económico dos mesmos. No segundo caso, o dano ecológico tem total autonomia em face do dano provocado ao sujeito, mas pode, circunstancialmente, reflectir-se na sua esfera pessoal ou patrimonial ?v.g., descarga de poluentes numa albufeira de barragem onde o sujeito se banha.

[53] Para maiores desenvolvimentos sobre esta posição, veja-se o nosso A ecologização da justiça administrativa: brevíssima nota sobre a a alínea l) do nº 1 do artigo 4º do ETAF, in Textos dispersos de Direito do Ambiente, Lisboa, 2005, pp. 249 segs, 266-268.

[54] Sobre estas hipóteses, ver José Joaquim GOMES CANOTILHO, Actos autorizativos..., cit., p. 15.

[55] A acção de indemnização, a ser proposta pelo proprietário, sê-lo-á nos tribunais comuns se o lesante for um particular e não tiver havido convite às autoridades administrativas para porem fim à actividade poluente (se este fosse possível) ?artigo 37º/3 do CPTA; caso tenha existido denúncia e omissão da autoridade competente, então os tribunais administrativos serão competentes, uma vez que a acção comum será proposta em litisconsórico passivo necessário contra o lesante e contra a Administração. A opção pelos tribunais comuns, na primeira hipóetese, justifica-se em razão da natureza das coisas: o proprietário tenderá a olhar para os sobreiros perdidos como coisas e não como bens naturais. Já se a actuação judicial for desencadeada por autores desinteressados da vertente patrimonialista do bem, aí avultará a dimensão ecológica deste e dar-se-á primazia ao contencioso jurídico-público. Os tribunais administrativos aplicarão somente o RRPDE e, no que remanescer de dano patrimonial, o proprietário poderá, com o limite imposto pelo artigo 10º do RRPDE, propor uma acção contra o lesante para se ressarcir desse prejuízo.

[56] Nos termos do artigo 157º/2 do CPTA, que remete para os artigos 933º e segs do CPC.

[57] Do mesmo modo, as quantias obtidas através de acções de regresso movidas pelo Estado para recuperação de custos de medidas de prevenção e reparação de danos ecológicos têm o Fundo de Intervenção Ambiental por destino.

[58] Para uma visão comparada dos modelos de responsabilidade ambiental objectiva, Lucía GOMIS CATALÁ, Responsabilidad..., cit., pp. 93 segs.

[59] Realce-se uma vez mais que este operador não tem forçosamente que lidar com as actividades constantes do Anexo III do RRPDE, dado que estamos num plano de responsabilização subjectiva ?cfr. os artigos 8º e 13º/1.

[60] Temos fortes dúvidas sobre a aplicação desta norma em sede puramente preventiva ?aliás, o legislador fala em prevenção no corpo do nº 3 mas refere "dano ambiental" na alínea b)... A nossa descrença assenta em que, reportando-se a norma a riscos desconhecidos, se torna muito difícil conceber a obrigação de prevenção antes da eclosão do dano.

[61] Segundo Jesus JORDANO FRAGA (La responsabilidad por daños ambientales en el Derecho de la Unión Europea: análisis de la directiva 2004/35/CE, de 21 de abril, sobre responsabilidad ambiental, in Revista Aranzadi de Derecho Ambiental, nº monográfico, cit., pp. 13 segs, 25: pronunciando-se a propósito da directiva), a delimitação de actividades tipicamente perigosas deveria ter sido estendida às sujeitas a avaliação de impacto ambiental. Salvo o devido respeito, e dadas as "aberturas" do regime de submissão a AIA (cfr. o artigo 1º/4 e 5 do DL 69/2000, de 3 de Maio), este alargamento seria excessivo.

[62] É este o significado que nos vemos obrigados a dar à fórmula empregue pelo artigo 20º/3/i): "emissão/facto expressamente autorizado" + "respeito pelas condições estabelecidas no acto autorizador" = riscos previsíveis + funcionamento normal. Os riscos imprevisíveis estão cobertos pela alínea ii). Esta solução corresponde à da lei alemã (artigo 6, §2º da Umwelthaftungsgesetz, de 1990), a qual, sublinhe-se, não institui um verdadeiro regime de responsabilidade por dano ecológico mas antes por danos ambientais (pessoais e patrimoniais) ?Detlev von BREITENSTEIN, La loi allemande relative à la responsabilité en matière d'environnement: pierre angulaire du Droit de l'Environnement?, in RJE, 1993/2, pp. 231 segs, 235 e 238.

[63] O plafonamento da responsabilidade chegou a ser sugerido no seio do Parlamento Europeu, mas não passou para a versão final da directiva ?cfr. Carole HERMON, La réparation..., cit., p. 1796.

[64] Montante concreto a determinar pelo Governo, por portaria (artigo 23º/3 do RRPDE).

[65] Pode contraditar-se, é certo, com a observação de que a prevenção de danos não cabe no conceito de "responsabilidade civil" (que exige a verificação de um dano). No entanto, melhor seria assumir, na lógica específica do dano ecológico, um conceito amplo de responsabilidade, abarcando as vertentes preventiva e reparadora, do que criar a ilusão (e confusão) de que o Capítulo III constitui um novo regime de responsabilidade administrativa.

[66] Cfr. Vasco PEREIRA DA SILVA, Responsabilidade administrativa em matéria de ambiente, Lisboa, 1997, max. pp. 13-16.

[67] Para a demonstração cabal das razões desta descrença, veja-se o nosso Risco e modificação..., cit., pp. 25 segs, max. 111 segs.

[68] Sobre esta modalidade de execução coerciva, v. o nosso Contributo..., cit., pp. 140 segs.

[69] Cfr. Ana PERESTRELO DE OLIVEIRA, Causalidade..., cit., pp. 107-111.

[70] Ao contrário do que alguns supõem, a inversão do ónus da prova constitui corolário do princípio da prevenção na dimensão de antecipação de riscos (e não da "precaução"). Cfr. o nosso Risco e modificação..., cit., pp. 409 segs.

[71] É notório que o RRPDE vai muito além do conteúdo da directiva, uma vez que esta se demite de avançar quaisquer critérios de estabelecimento de causalidade ou de repartição de responsabilidade em hipóteses de causalidade múltipla (tão pouco em sede de repartição de ónus da prova). O recuo da directiva gera um avanço da autodeterminação normativa dos Estados-membros que pode conduzir, conforme alerta Eckard REHBINDER (Prevention..., cit., p. 400), a um enfraquecimento do seu âmbito regulatório.

[72] Tome-se o bom exemplo espanhol que, tendo transposto a directiva com seis meses de atraso, fez, para os efeitos referidos, retroagir a data de vigência a 30 de Abril de 2007 ?disposição transitória única, 1.a), da Ley 26/2007, de 23 de Outubro.

[73] Contra, Germán VALENCIA MARTÍN (El impacto (favorable) de la directiva 2004/35/CE en el «sistema» español actual de responsabilidad por daños ambientales, in Revista Aranzadi de Derecho Ambiental, nº monográfico, cit., pp. 109 segs, 150), negando o efeito directo de disposições que imputam obrigações aos particulares, com assento em jurisprudência constante do Tribunal de Justiça. Salvo o devido respeito, julgamos que, após a prolação do Acórdão de 7 de Janeiro de 2004, no Caso Delena Wells, o mito da proibição de invocação de normas de directivas entre particulares com vista à imposição de deveres de protecção do ambiente cedeu. Cfr. o nosso Apontamentos sobre a jurisprudência ambiental comunitária, ponto 3.1.d), em curso de publicação na Revista de Direito do Ambiente e Ordenamento do Território.

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