República e virtude. Raízes constitucionais helénicas: actualidade e desafios

AutorPaulo Ferreira da Cunha
CargoCatedrático de Derecho Constitucional, Metodología y Filosofía del Derecho

Paulo Ferreira da Cunha: Catedrático de Derecho Constitucional, Metodología y Filosofía del Derecho. Director del Instituto Jurídico Interdisciplinar de la Facultad de Derecho de la Universidad de Oporto, Portugal. Doctor en Derecho por la Universidad de Coimbra y de París II. "Agregado" en Derecho, Ciencias Jurídicas Públicas. Autor de más de 60 libros y 300 artículos especializados.

I Que gregos? Que grécia antiga?
  1. Discorrer sobre Virtude e sobre República necessariamente tem de levar-nos à Antiguidade: desde logo porque a primeira "começa" com a helénica areté1. Logo, é preciso ir, antes de mais, à Grécia Antiga2.

  2. Porém, falar em qualquer temática que envolva toda a Grécia Antiga é falar de um lapso temporal muitíssimo vasto, e, obviamente, é também falar dos Gregos, agrupados em diversas formações sociais e políticas, com a sua própria multiplicidade, decorrente, além do mais (desde logo, de factores intrínsecos e locais) da própria historicidade da sua existência.

  3. De qualquer forma, não é jamais possível generalizar em excesso, nem, sobretudo, idilicamente, miticamente, como foi feito, aliás com inegáveis intenções políticas. O mito de um passado helénico cristalizado e unitário está absolutamente desfeito3. E, como se sabe, mesmo os dualismos Atenas / Esparta4, também muito glosados (lembremo-nos de como Voltaire era pela primeira e Rousseau a favor da segunda), não deixando de ser tipos-ideais cómodos, não acomodam a realidade mais multifacetada, no interior e no exterior dessa simples e simplista oposição - que contudo já iremos utilizar, por comodidade, linhas a seguir.

  4. Ora, uma vez ultrapassado esse mito já quase classicamente se diz, numa nova clave, que uma coisa unia os Gregos antigos: o desporto e a religião5. Na verdade, talvez se devesse dizer: a díade constituída por jogos / competição (desportivos ou teatrais), de um lado / e religião, do outro - se de "lados" se pode falar, pois que se encontravam em grande simbiose. No resto, os Gregos seriam diferentes. Contudo, também o aspecto físico e a língua (apesar de algumas diferenças) os uniam6...

  5. Não devemos, contudo, embrenharmo-nos num estudo do presente género por estas antropologias e etiologias, para mais com componente arqueológica. De resto, a teoria restritiva que acabámos de referir só pôde existir precisamente como resposta a visões excessivamente englobantes, que a simples verificação de dados revelaria inconsistentes. Sempre o o vai-vém de maximalismos e minimalismos teóricos.

II Que legado para as repúblicas hodiernas?
  1. O que importa não é, realmente, encontrar, no nosso presente caso, uma herança helénica comum, mas um legado que possa ter algum interesse não apenas teórico, mas também prático, para o estado das presentes democracias. Sabemos das dificuldades, mesmo metodológicas, e da heresia de transposições simplistas. Trata-se apenas de considerar sugestões, de inspirações, nada mais. Mas tal não é pouco, porque é uma busca de fontes, remotas, indirectas, mas onde estão ainda águas lustrais. Como afirma, recentemente, Kurt A. Raaflaub: "Directly or indirectly, Athenian democracy as an extraordinary experiment in social history thus stimulates our own thinking about crucial issues of our own democracy and society, incomparably more complex though they are. The point is precisely that the ancients help us focus on the essentials."7

  2. É verdade que o próprio Rousseau preveniu os seus concidadãos genebrinos contra as influências clássicas. Mas bem pregava Frei Tomás... Ele estava eivado delas, e a elas transmitia como involuntário portador de um vírus:

  3. "Les anciens peuples ne sont plus un modèle pour les modernes; ils leur sont trop étrangers à tous égards. Vous surtout, Genevois, gardez votre place, et n'allez point aux objets élevés, qu'on vous présente pour vous cacher l'abîme qu'on creuse au-devant de vous. Vous n'êtes ni Romains ni Spartiates, vous n'êtes pas même Athéniens. Laissez là ces grands noms, qui ne vous vont point. Vous êtes des marchands, des artisans, des bourgeois, toujours occupés de leurs intérêts privés"8

  4. Este texto, citado até aqui por um Vidal-Naquet9 poderá, contudo, não dar a completa medida do pensamento de Rousseau, pois o parágrafo continua: ", de leur travail, de leur trafic, de leur gain; des gens pour qui la liberté même n'est qu'un moyen d'acquérir sans obstacle et de posséder en sûreté"10.

  5. E não poderá supor-se, sobretudo por este final, insistente, uma crítica aos seus concidadãos, demasiado materialistas, demasiado burgueses, para se alçarem aos longes dos exemplos clássicos? E essa possível crítica latente não indicará a paixão de Rousseau por esses altos exemplos? Não será, assim, todo este passo mera táctica retórica? Quantas vezes se iludiram, nesses tempos radiciais e matinais das democracias contemporâneas (e precisamente na Suíça, como em Portugal) as verdadeiras fontes, nomeadamente constitucionais, para evitar rejeições derivadas de mitos negativos!11

III Politeia: polissemia e conotações
  1. Sabemos que é em Aristóteles que (sem prejuízo das aportações ulteriores de um Cícero, e sobretudo de algumas das interpretações de Maquiavel) muitos fazem radicar o republicanismo moderno12. Ora é o próprio Aristóteles que nos dá pistas para entender a questão semântico-conceitual que, no limite, propicia, ainda nos nossos dias, alguma confusão entre democracia e república.

  2. Aristóteles compreende a necessidade de uma grande abertura designatória, e adopta-a, explicitamente concedendo que há situações em que não se encontra uma expressão adequada para abarcar a realidade que se pretende designar13. Acresce que também se não prende às palavras, explicitamente afirmando que o que importa é a compreensão das coisas e não as expressões que as designam14.

  3. Alguns dos conceitos utilizados revelam-se árduos a nossos olhos, grande parte das vezes pela derrapagem ou mesmo subversão semântica de certas palavras.

  4. Aristóteles, que não poderia prever pelo menos o sentido de uma ulterior metamorfose linguística, é o primeiro a fazer tais observações, no respeitante ao seu tempo, assim como relativamente a significados mais antigos. Com uma grande sensibilidade linguística e rigor conceitual, ora se congratula com a adequação do significado ao significante15, ora assinala a polissemia.

  5. E é aqui que explicitamente se debruça sobre o nosso tema presente. Na verdade, afirma que politeia tanto é a polis em que a multidão governa para a utilidade pública (e que tem sido traduzida de múltiplas formas: república, democracia, governo constitucional, etc.), como um nome comum a todas as sociedades políticas16.

  6. Se Aristóteles dá o nome de democracia à sociedade política que corresponde à corrupção da politeia (tida não como designação geral, mas como república, etc..), fá-lo, contudo, com duas prevenções. A primeira é a de que se se quer que a democracia ainda seja uma forma de governo, haveria que não usar tal nome para o caos resultante da perversão da politeia-república. Nestes termos o afirma:

  7. "Não é sem razão que se censura tal governo e, de preferência, o chamam democracia ao invés de República; pois onde as leis não têm força não pode haver República, já que este regime não é senão uma maneira de ser do Estado em que as leis regulam todas as coisas em geral e os magistrados decidem sobre os casos particulares. Se, no entanto, pretendermos que a democracia seja uma das formas de governo, então não se deverá nem mesmo dar este nome a esse caos em que tudo é governado pelos decretos do dia, não sendo então nem universal nem perpétua nenhuma medida"17.

  8. A segunda é uma observação de história da língua e evolução semântica: o Estagirita invoca um uso mais antigo de "democracia", em que este nome se identifica com a sua politeia-república. Parece que, apesar da corrupção do termo nos nossos dias, voltamos a recuperar o sentido pré-aristotélico de "democracia".

  9. Mas não se trata só de Aristóteles. A "democracia" não teve grande cotação no discurso teórico até a um momento relativamente recente. Moses I. Finley põe em relevo o facto de que houve, no séc. XX, uma mutação semântica, que permitiu que, ao contrário do que sucedia na Antiguidade, a maioria esmagadora dos intelectuais se pronunciem, hoje, a favor da democracia18. À mesma conclusão chega A. H. M. Jones, que afirma só nos terem chegados testemunhos de alguma forma favoráveis à oligarquia19. Ou, noutros termos, diríamos nós: ter-se-á produzido uma revolução semântica que propiciou que "democracia" tenha sido, e ainda seja hoje, a palavra utilizada, nas suas diversas variantes linguísticas locais, universalmente, para designar, afinal, o "bom governo". E cita Palmer20, afirmando ser raro, mesmo entre os philophes franceses que prepararam a Revolução Francesa, encontrar quem fale em democracia de forma positiva, refere Wordsworth como havendo-se autoqualificado de democrata provocatoriamente, ainda em 1794, e finalmente afirma que os foundig fathers americanos queriam uma república, não uma democracia21.

IV Recuperação pro domo e actualidade da hélade
  1. Talvez seja razoável partir de um pressuposto: de uma democracia ou república e de um cidadão na Grécia Antiga naturalmente com aspectos diferentes, segundo tempos e lugares, e para mais ainda envolto, por vezes, numa mitologia política que alimentou grande parte da erudição e do argumentário ocidental pelo menos até ao séc. XX, com grande relevo para o séc. XVIII e para a Revolução Francesa22. A...

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