Remixando a midia: a produção colaborativa nos noticiários de tv do brasil sob a ótica da recirculação midiática

AutorMata Alves Pereira, Jhonatan - Perleberg Blank, Raquel
Páginas620-634

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1. Introdução

"Viver como zumbi na mídia é o único meio de sobreviver". A frase-título do trabalho do professor da Universidade de Indiana, Mark Deuze (2013), observada isoladamente, causa - no mínimo - espanto e estranhamento. Remete, de imediato, aos personagens da dramática e pós-apocalíptica série de TV norte-americana "The

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Walking Dead" desenvolvida por Frank Darabont e baseada na série de quadrinhos de mesmo nome criada por Robert Kirkman, Tony Moore e Charlie Adlard e que estreou internacionalmente em 2010. Na ficção, a produção audiovisual que já bateu a marca dos 16 milhões de espectadores na quarta temporada, narra a saga de um pequeno grupo de sobreviventes de um apocalipse zumbi, em busca de segurança longe dos mortos-vivos, que devoram pessoas e têm uma mordida infecciosa. Na "vida real" -ou para usarmos a expressão genuína do autor, na "vida midiática" de Deuze, a metáfora se equipara- ou mesmo suplanta o espanto da série. Reflete e ao mesmo tempo refrata as discussões sobre a sociedade contemporânea, embebida num uso intensivo e imersivo das mídias sem precedentes. E exige da academia estudos que explorem menos a maneira como a mídia nos transforma e mais sobre o tipo de sociedade que estamos co-criando na mídia. Nas palavras do pesquisador gravamos e remixamos a nós mesmos e uns aos outros com as novas tecnologias e nossa sociedade se zumbifica enquanto navegamos por ela - voluntariamente ou involuntariamente - aumentada por tecnologias de virtualizaçâo. (DEUZE, 2013, p.113)

As pessoas- tanto profissionais quanto não profissionais da mídia estariam imersas na mídia sem perceber que estão expostas à mídia, movendo-se de uma suposta comunicação de massa para "auto-comunicação de massa". Os arranjos sociais passam a ser virais, movimentos sociais sem líder ou hierarquias

2. Hipotesesiniciais

A semelhança primordial entre os zumbis da ficção e os da vida midiática estaria no caráter não hierárquico ou não organizado verticalmente dessa zumbificação, para além do terror-metáfora, num cenário em que a grande vantagem estaria na ascensão de um certo tipo de coletivismo. A grande diferença é que na "media life" não há como na série, um lado "não-zumbi". Não existiria algo externo à mídia, sendo impossível montar, tal qual em The Walking Dead, barricadas contra os zumbis midiáticos. Não apenas os profissionais da mídia como toda pessoa "comum" quer se tornar a "pessoa do ano", espécie de eu mediado e lisonjeado, que quer ser curtido, tagueado, cutucado, de acordo com expressões utilizadas para definir formas de interações atuais na mídia, sobretudo a internet.

Neste contexto, surge o presente trabalho, que integra a pesquisa-tese intitulada "(Re) circulação midiática: a incorporação de conteúdos gerados por "cidadãos comuns" às produções jornalísticas da televisão brasileira" (MATA, 2014). Fugindo, tal qual faz Deuze, de uma aposta ingênua no conceito de zumbi midiático como lamentável problema social contemporâneo, apostamos num "estado zumbificado inevitável" (DEUZE, 2013, p.25) no qual a mídia se configura como elemento essencial para a sobrevivência humana. A tática da remixagem passa a ser estratégia-chave para esta sobrevida na mídia. Trata-se, aqui, de novos modos de entender o previsível, onde a identidade do profissional de mídia passa a ser pautada no ofício do dj, capaz de remixar identidades, representações e acontecimentos.

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Em nossos quadros-recorte, produções audiovisuais de nâo-jornalistas veiculadas em dois telejornais - Repórter Brasil (TV Brasil) e RJTV (Rede Globo), a identidade do amador que produz mídia também pode estabelecer relações com o ofício do disc jockey. Perceberemos que a vontade de visibilidade (o ser curtido, tagueado) e o clamor público (tão presente nas narrativas "tradicionais" sobre o povo na TV) se confundem durante o momento de remixagem na/da mídia por parte do "cidadâo-comum". A ação dialoga de maneira produtiva com o conceito de recirculaçâo midiática, visto em seqüência, já que, de acordo com as reflexões estabelecidas até o momento, a atitude fundamental para sobreviver na mídia não é mais (ou apenas) produzir conteúdo, mas fazê-lo circular, envolvendo usuários na produção. O termo (re)circulação midiática surge como uma adaptação do conceito de retroalimentação, que é um procedimento existente em diversos tipos de sistemas, sejam eles biológicos, econômicos, elétricos (circuitos), sociais ou outros. Sua utilização mais corriqueira (que também conta com o sinônimo feedback), se dá na endocrinología, onde determinadas glândulas produzem hormônios, que, por sua vez, estimulam a produção de outros hormônios, mantendo um complexo sistema em funcionamento.

Cumpre lembrar que o conceito de circulação no jornalismo e na comunicação não chega a ser algo recente e é quase inerente à atividade. A circulação é caracterizada como a terceira das quatro etapas do processo jornalístico elencadas por Machado e Palácios (2007): apuração, produção, circulação e consumo. A etapa da recirculaçâo midiática pode ser encarada como quinta etapa do processo, embora com a ressalva de que não exista uma linearidade na sucessão desta e das outras etapas "clássicas". Interessa-nos, assim, o atual e emaranhado fluxo de produção/recepção do audiovisual, num cenário em que consumidores não apenas passam a produzir audiovisual como também alteram as rotinas de circulação do material na mídia, remixando pessoas, contextos, vozes e colocando-os num processo de recirculaçâo.

Alex Primo (2013), ao analisar as tecnologias digitais de comunicação e informação pontua que as mesmas configuram uma nova modalidade de produção e circulação do jornalismo. O autor (2013) inclui neste panorama o jornalismo participativo, foco de nosso trabalho e questiona se esta modalidade de produção e circulação de notícias pode ser caracterizada como jornalismo, ao mesmo tempo em que aborda a aproximação entre produtores e consumidores de conteúdo. o consumo hoje mistura-se com a própria produção. Para alguns, tudo isso pode representar uma cooptaçâo de trabalho gratuito. Para outros, a audiência produtiva é uma forma de resistência, à medida que já não se aceita mais a imposição de conteúdos fechados através de meios monológicos. Certamente os estúdios, gravadoras, editoras e empresas jornalísticas de grande porte não desistirão de suas galinhas dos ovos de ouro, nem que precisem aceitar que seus clientes ajudem a pintar os ovos com novas cores! Mas os cidadãos não aceitam mais a imposição de qualquer conteúdo. Estão mais exigentes e procuram informações onde acharem mais conveniente. E, não raro, eles mesmos produzirão e circularão informações (...) As visões de mundo passam a ser construídas a partir de um número cada vez maior de fontes e meios. E as pessoas querem compartilhar e discutir estas impressões (PRIMO, 2013, p.32).

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Embora o conceito de retroalimentação, num sentido restrito, refira-se simplesmente ao retorno de informações do efeito para a causa de um fenômeno, no âmbito da comunicação e das interações humanas ele não se refere a uma proposta tão simplificada. Assim, para evitar ruídos no seu (re) conhecimento, optamos por inseri-lo na dinâmica de circulação midiática, ainda que contando com os pedágios da edição televisiva.

Na recirculaçâo midiática, audiovisualmente discursiva, seriam diluídas as distinções formais entre emissor e receptor. Neste contexto, para além dos enquadramentos da emissora, os vídeos se (des)organizam em torno de questões significativas para o público (ou ao menos parte dele), expondo "outros olhares" na busca de maior diálogo com a sociedade, seja para a solução de problemas diários ou anunciação de toda a sorte de temáticas que, recolhidas em nichos específicos, dificilmente seriam "apresentadas" na grande mídia sem soar como algo "caricato" ou como "souvenir de alteridade". Primo (2008) vai além das apropriações do conceito de circulação e propõe a existência de um "composto informacional midiático" Basicamente, o composto abarca todo o conteúdo informativo mediado por algum suporte que ultrapasse a conversa presencial.

Para o cidadão que consome as informações, importam aquelas que o atualizam sobre assuntos de seu interesse, tanto no contexto local quanto global, de hard news à notícias mais frivolas (celebridades, novelas, etc). Nesse sentido, a formação do composto informacional midiático pode não levar em conta se quem publica o conteúdo noticioso é um jornalista ou uma...

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