Regular o trabalho, evitar a opressão: o Direito português entre a metrópole e as províncias ultramarinas na segunda metade do século XVIII

AutorMargarida Seixas
Páginas251-266
Regular o trabalho, evitar a opressão: o Direito português entre a metrópole e as províncias... 251
RJUAM, n.º 33, 2016-I, pp. 251-266ISSN: 1575-720-X
REGULAR O TRABALHO, EVITAR A OPRESSÃO: O DIREITO
PORTUGUÊS ENTRE A METRÓPOLE E AS PROVÍNCIAS
ULTRAMARINAS NA SEGUNDA METADE DO SÉCULO *
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Resumo: O texto apresenta a regulação inovadora do trabalho no Direito português, na segunda
metade do seculo , no contexto operário europeu e no contexto agrícola colonial. Visa dar a
conhecer –em Portugal e nos territórios ultramarinos– a substituição da escravatura pelo trabalho
forçado e os novos caminhos do trabalho livre, «fugindo» dos esquemas puramente civilistas e
preparando a construção de um novo ramo, o Direito do Trabalho. A compreensão histórica destes
fenómenos levanta questões pertinentes, que podem auxiliar na dilucidação de conceitos jurídicos
como os de «subordinação jurídica», «obediência», «poder de direcção» ou «poder disciplinar».
O novo Direito que começava a nascer convocava «novos» princípios e conceitos que merecem
refl exão crítica, capaz de questionar a sua confi guração contratual e a proximidade com formas
de sujeição do Direito antigo. Contudo, a nova regulação, integrando e legitimando essa subordi-
nação, pretendia também limitá-la e garantir a liberdade daquele que contratava obedecer.
Palavras-chave: Direito do Trabalho; Portugal; Colónias portuguesas; Século .
Abstract:This paper describes the innovative way in which labour was regulated in Portuguese
law in the second half of the 19th century in the context of the European labour movement and
colonial agriculture. It focuses on the replacement of slavery by forced labour in Portugal and
the overseas territories, and the steps that were taken towards a conception of free labour, outside
purely civilist schemas, and the preparations for the construction of a new branch, Labour law.
The historical understanding of these phenomena raises some pertinent questions, which can help
clarify certain legal concepts such as ‘legal subordination’, ‘obedience’, ‘management power’ and
‘disciplinary power’. The new law that was emerging invoked ‘new’ principles and concepts that
require critical refl ection, given their contractual confi guration and proximity to forms of sub-
jection from the previous law. However, the new regulation, which included and legitimized this
subordination, also aimed to limit it and ensure the freedom of those that were contracted to obey
Key words: Labour law; Portugal; Portuguese colonies;19 century.
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S: I. TRABALHO METROPOLITANO E TRABALHO COLONIAL NO DIREITO
PORTUGUÊS: NECESSIDADE DE COTEJO; II. A LOCATIO-CONDUCTIO E A PRES-
* Fecha de recepción: 15 de octubre de 2015.
Fecha de aceptación: 12 de abril de 2016.
** Professora auxiliar, doutorada em Direito, especialidade de Ciências Histórico-Jurídicas, Faculdade de
Direito da Universidade de Lisboa. margaridaseixas@fd.ul.pt.
.
MARGARIDA SEIXAS
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RJUAM, n.º 33, 2016-I, pp. 251-266 ISSN: 1575-720-X
TAÇÃO DE SERVIÇOS: O MODELO PORTUGUÊS; 1. Locatio-conductio e o paradigma
contratual oitocentista; 2. Prestação de serviços no Código Civil Português (1867); III. A
REGULAÇÃO DO TRABALHO COLONIAL NAS PROVÍNCIAS ULTRAMARINAS; IV.
INDUSTRIALIZAÇÃO E LEGISLAÇÃO LABORAL PORTUGUESA; V. CONCLUSÃO;
VI. BIBLIOGRAFIA.
I. TRABALHO METROPOLITANO E TRABALHO COLONIAL NO
DIREITO PORTUGUÊS: NECESSIDADE DE COTEJO
Este texto pretende apresentar alguns dos resultados da minha investigação sobre a
regulação jurídica do trabalho no Direito português do século , em especial na segun-
da metade. A ligação entre o Direito da metrópole (ou antes, Direito para a metrópole) e
o Direito Colonial (Direito para as colónias) não é de mera comparação. No primeiro, a
legislação oitocentista quis acabar com os laços corporativos e com outros tipos de sujei-
ção; no segundo, a intervenção legislativa pretendia acabar com os laços de escravidão e
trabalho forçado.
No território colonial oitocentista, o trabalho escravo deveria, a prazo, ser substituído
pelo trabalho livre –era esse o percurso legislativo que foi transformando, em especial na
década de 1850, os escravos em homens livres, de duas formas diferentes: ora impondo uma
obrigação de trabalho por períodos relativamente longos, ora libertando-os por completo.
Dessas medidas, várias estabeleciam a libertação dos escravos mas prevendo uma obrigação
de trabalho por um prazo dilatado, em especial para os libertos do Estado, das Câmaras, das
Misericórdias e da Igreja, os nativos importados após 1854; os fi lhos de escrava a partir de
1856, os libertos por efeito do Decreto de 25 de Fevereiro de 18691.
Porém, mesmo a liberdade «jurídica», estabelecida por algumas medidas ou obtida
no fi nal do prazo de trabalho forçado, não equivalia a uma liberdade «de facto». Tal pode
largamente ser demonstrado a propósito das proibições de trabalho forçado (em especial a
propósito do serviço de carregadores) e das resistências a essas mesmas proibições. Ficcio-
nava-se frequentemente a existência de um trabalho livre prestado por libertos não sujeitos
à obrigação legal de trabalhar.
O modelo da prestação de serviços do Código Civil português de 1867 (em grande
medida decalcado da locatio conductio) foi transposto para as Províncias Ultramarinas para
regular o trabalho livre mas com alterações signifi cativas para garantir a protecção da parte
mais fraca pela legislação de 1875 e 1878 –essa protecção havia de chegar, um pouco mais
tarde, também ao trabalho operário da metrópole, com os diplomas que são geralmente
identifi cados como a primeira legislação laboral portuguesa (de 1889 e 1891).
1 Para maior desenvolvimento vid. SEIXAS, M., Pessoa e Trabalho no Direito Português (1750-1878):
escravo, liberto e serviçal, Lisboa (AAFDL; Lisbon Law Review), 2016.

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