Registo de marca e secondary meaning - o caso o Licor de Portugal: comentário às Decisões do Tribunal da Propriedade Intelectual, de 3 de junho de 2015 - Proc. N.º 108/14.5YHLSB, e da Relação de Lisboa, de 9 de dezembro de 2015

AutorJoão Paulo F. Remédio Marques
Cargo del AutorProf. Dr. Iuris. Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra
Páginas485-501

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I Introdução. Resumo do litígio. Os factos e as decisões em comentário

Não raras vezes, a jurisprudência em matéria de direito de marca é confrontada com o pedido de registo de sinais desprovidos geneticamente de eficácia distintiva, mas cujos requerentes alegam a aquisição superveniente dessa mesma distintividade. Os tribunais portugueses não ficaram imunes a este fenómeno. Na realidade, o Tribunal da Propriedade Intelectual (tribunal de 1.a instância) e o Tribunal da Relação de Lisboa -este último em recurso de apelação- foram confrontados, em 2015, com o pedido de registo da marca "O LICOR DE PORTUGAL".

Eis o sucedido. O requerente solicitou o registo da marca nacional (portuguesa) n.º 509685, cuja composição gráfica e fonética é a seguinte: "O LICOR DE PORTUGAL" destinado a assinalar "licor", respeitante à classe n.º 33 1. Provou-se, ademais, que esta empresa tem feito investimentos, desde há muito tempo, na publicitação e promoção da marca "LICOR BEIRÃO" em associação com a expressão "O LICOR DE PORTUGAL"; que, segundo uma sondagem junta ao processo (estudo de marketing da empresa Marktest), 52% dos inquiridos conhece ou já ouviu falar da frase publicitária "O LICOR DE PORTUGAL"; e que 80% dessas pessoas associa espontaneamente esse lema ou slogan ao produto "LICOR BEIRÃO". O Instituto Nacional da Propriedade Intelectual (INPI) recusou o registo desta marca com fundamento na falta de capacidade distintiva. A decisão do tribunal de 1.a instância confirmou a recusa do registo da referida marca ("O LICOR DE PORTUGAL"). O Tribunal da

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Relação de Lisboa manteve a decisão do Tribunal da Propriedade Intelectual e decidiu que a expressão "O LICOR DE PORTUGAL" não sofreu qualquer mutação no sentido de alcançar a sua própria capacidade distintiva2. Este tribunal de apelação entendeu, com efeito, que os investimentos realizados na promoção se reportaram à marca "LICOR BEIRÃO" (titulada, desde os anos quarenta do século passado pela requerente deste outro registo). E que aquela frase ("O LICOR DE PORTUGAL") é somente uma expressão publicitária funcionando como mero lema ou slogan utilizado em associação com a marca forte registada há muito tempo e composta pela frase "LICOR BEIRÃO". Vale dizer: no entendimento destas duas decisões judiciais somente poderá ser equacionada a atribuição de secondary meaning constitutivo de eficácia distintiva de um sinal originariamente dela destituída, se e quando a frase que constitui a marca tenha sido utilizada pelo requerente do registo para assinalar, a título principal (com destaque), um produto concreto da classe 33.a, que não "acessoriamente como uma frase de suporte publicitário à sua marca "LICOR BEIRÃO" 3.

II O secondary meaning e o registo como marca de sinais genéricos e/ou descritivos

Face a um sinal que seja susceptível de representação gráfica e que desfrute de aptidão distintiva, faz-se necessário perscrutar se o mesmo é lícito (licitude enquanto requisito "residual" de proteção) e se ostenta carácter distintivo concreto relativamente aos produtos (ou serviços) que visa assinalar.

Isso pode não acontecer se o sinal for genérico, descritivo ou usual. É sabido que, à semelhança de outras legislações, o 223.º, n.º 1, alínea c), e o n.º 2, do Código da Propriedade Industrial português (doravante CPI) proíbem a constituição (e o registo) das marcas constituídas exclusivamente por "indicações que possam servir no comércio para designar (...) a proveniencia geográfica (...) do produto"4, determinando-se que tais elementos, quando "entrem na composição de uma marca, não serão considerados de uso exclusivo do requerente". Os impedimentos absolutos de registo previstos no CPI traduzem a ideia, segundo a qual não pode ser concedido o registo como marca a sinais desprovidos de capacidade distintiva para o produto ou serviço que se pretende assinalar.

Uma breve análise da jurisprudência do TJUE permite concluir que a capacidade distintiva deve ser sindicada com base numa análise concreta à luz de dois planos: por um lado, às características do concreto sinal (natureza, significado) e, por outro, aos produtos ou serviços para os quais é solicitado o registo, de harmonia com a percepção que o consumidor médio (normalmente informado e razoavelmente atento) desses produtos ou serviços tem do conjunto, bem como de todos os factos e circunstâncias pertinentes5. Para apreciar o carácter

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distintivo não se atende, em regra, ao ponto de vista dos restantes operadores económicos (concorrentes ou não concorrentes)6. Os casos mais comuns de sinais desprovidos de capacidade distintiva são, como se sabe, os sinais exclusivamente descritivos7, usuais (incluindo os sinais genéricos)8 e as formas técnicas, funcionais ou esteticamente necessárias. Porém, estes impedimentos de registo não se aplicam se o sinal tiver adquirido carácter distintivo, na decorrência do uso comercial que dele tiver sido feito9. Eis pois o secondary meaning "convalidante" da possibilidade de registo por efeito de esse mesmo sinal ter adquirido uma eficácia distintiva superveniente10.

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Este fenómeno traduz a aquisição superveniente de capacidade distintiva relativamente a um sinal que dela é originariamente desprovido. Vale dizer: este fenómeno ocorre quando um sinal (ou uma expressão) originariamente descritivo, genérico ou de uso comum11 adquire, com o fluir do tempo e em conse-quência do uso comercial exclusivo e contínuo de que é objecto, capacidade distintiva, assumindo nas mentes dos consumidores, por força de uma mutação semântico-significativa, um outro significado assim gerado nessas mentes, no sentido em que se converte num sinal identificador dos produtos ou serviços

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de uma determinada empresa. Ocorre, com o fluir do tempo e a utilização exclusiva de que o sinal é objecto, uma espécie de "purga", "convalidação" ou "reabilitação" do sinal originariamente desprovido de capacidade distintiva12. E é perfeitamente justo recompensar o investimento efectuado pelas empresas com a possibilidade de demonstração de uma capacidade distintiva superveniente respeitante a um sinal (gráfico/fonético), se e quando se consegue mudar a forma como os consumidores usam a linguagem referida aos produtos e ao serviços que aquelas empresas colocam no mercado13.

A jurisprudência do TJCE já se pronunciou sobre esta tensão entre os nomes geográficos que compõem (se bem que em exclusivo) as marcas à luz da doutrina do secondary meaning14 No acórdão de 04.05.1999, no caso Windsurfing Chiem-see Produktions, processos apensos C-108/97 e C-109/97, este Tribunal estabeleceu que o carácter distintivo de uma marca obtida através do uso que dela é feito significa que esta seja adequada para identificar o produto para o qual é pedido o registo como proveniente de uma empresa determinada e, por conseguinte, a distinguir esse produto dos das outras empresas. O que importa para o público consumidor interessado, no final de tudo isto, é a receptividade do sinal, que não o seu valor, a qualidade dos produtos ou o volume de negócios da empresa15; interessa também a opinião dos consumidores e a sua mudança de atitude (ao longo do

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tempo) face ao sinal16; outrossim, a quota do volume publicitário no mercado dos produtos em causa (id est, os investimentos em publicidade e promoção) foi considerada um factor relevante no acórdão do TJCE, de 22.06.2006, proc. C-25/05 P, no caso August Storck Kg c. Instituto de Harmonização do Mercado Interno17.

III Demonstração da aquisição superveniente de capacidade distintiva

Pode observar-se que, quanto mais descritivo e/ou genérico for o sinal, maior densidade probatória se fará mister exigir em termos de convencimento do juiz. No caso sub iudice, o "primeiro" significado da expressão em causa não revela uma acentuada natureza descritiva e genérica, uma vez que é antecedida pelo artigo definido "O". É verdade que para a convalidação destes sinais (genéricos/descritivos) não interessa provar a sua notoriedade; esta eventual notoriedade é, em regra, irrelevante. Ao invés, deve o juiz ficar convencido de que o sinal foi objecto de uma mutação de significado junto dos consumidores interessados e respectiva percepção: de genérico ou descritivo, o sinal passou a revestir um significado específico plasmado na identificação do produto (ou serviço) associada a uma específica origem empresarial. A utilização do sinal (originariamente desprovido de eficácia distintiva) deve ser feita a título de marca; deve ser um uso efectivo, este, dirigido à clientela constituída pelos consumidores normalmente atentos dos produtos (ou serviços) para que se visa registar tal sinal como marca; esse uso ocorrer durante um período temporal mais ou menos prolongado; tratar-se de um uso incidente na área territorial abrangida pelo registo (caso este venha a ser concedido); deve ser um uso exclusivo imputável ao requerente da proteção relativamente à classe de produtos para que pede a proteção como marca; e esse sinal deve ser percepcionado como desempenhando função identificadora da proveniencia de produtos (ou serviços) por parte de um conjunto significativo de potenciais ou actuais consumidores (pelo menos, mais de 50%) dos produtos (ou serviços) para que se pede proteção 18. Ora, é sabido que, no quadro dessa apreciação, podem ser tomados em consideração, nomeadamente: (a) a quota de mercado detida pela marca; (b) a intensidade, a área geográfica e a duração do uso dessa marca; (c) a importância dos investimentos feitos pela...

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