O regime do contrato de gestação de substituição no direito português à luz do acórdão do tribunal constitucional N.º 225/2018
Autor | Maria Raquel Guimarães |
Páginas | 107-132 |
O regime do contrat o de gestaçã o de substituiç ão no direit o português
à luz do Acórdão do Tribuna l Constitucional n.º 225/2018
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Dez anos volvidos sobre a versão inicial da lei, j á em Junho de 2016, o legislador
veio alterar a orientação pri meiramente adoptada , alargando as técnicas de
procriação medicamente assistida a “todas as mulheres independentemente do
diagnóstico de infertilidade”3, não obstante continuar a afirmar — em simultâneo,
no mesmo normativo — o seu carácter de método subsidiário e não alternativo de
procriação e a manter a regra de que estas técnica s só podem utiliza r-se “mediante
diagnóstico de infertilidade” ou em caso de doença, tal como acontecia na versão
original da lei4. Por outro lado, as técnicas de procriação medicamente assistida
passa ra m a ser acessíveis a todas as mulheres, discriminando a lei como
beneficiá rios, de uma forma algo desconexa e com sobreposições, os “casais de
mulheres”, casadas ou vivendo em união de facto, bem como “todas as mulheres
independentemente do seu estado civil e da respectiva orientação sexual”, para além
dos “casais de sexo diferente”5, que anteri ormente tinha m o exclusivo da PMA.
Relativamente à “maternidade subrogada” ou “gestação de substituição”, o
legislador nacional veio admiti-la dois meses depois, em Agost o de 2016, num
contexto negocial, enquanto objecto de um negócio jurídico bila teral,
necessari amente gratuito, cuja celebração — acrescenta a lei de forma algo
prosaica — “é feita através de contrato escrito”6. Este contrato de gestação de
substituição surge em Portugal como algo radicalmente novo no mundo negocia l,
atendendo à especif icida de do seu objecto, às particularidades das prestações
impostas à gestante e a té à delimitaçã o dos sujeitos com legitimidade para
contratar7.
ZAROT, “La g estación por sustitución en España: un debate abiert o”, e Encarna SERNA MEROÑO, “Reflexiones en
torno a la maternidad subrogada”, in Autonomia e heteronomia no direito da família e no direito das sucessões
(coord. Helena MOTA / Maria Raquel GUIMARÃES), Coimbra, FDUP/CIJE/Livraria Almedina, 2016, pp. 761-785 e
808-814, respectivamente, e Alfredo BATUECAS CALETRÍO, “L’iscrizione della nascita nel registro civile spagnolo
dei nati da ma ternità surr ogata all’estero” , in Rivista di Diritto Civile, LXI, n.º 5 Settembre-Ottobre, 2015, p.
1153 ss. Para uma súmula da posição adoptada pelos diferentes países sobre a validade e requisitos da gesta-
ção de subst ituição , bem como dos argume ntos contra e a favor da sua admissibilida de, v. este último Autor,
cit., pp. 1154 -1157. Sobr e as posições assumi das pelo Tribuna l de Justiça da União E uropeia sobre o tema, v.
Stéphan ie Hennette VAUCHEZ, “D eux poids, deux mesur es: GPA, congé mat ernité de l a mère commandit aire et
procréation en droit de l’ Union européenne”, in La Revue des droits de l’homme, Actualités Droits-Libertés,
2014, pp. 1-16.
3 V. arti go 4.º, n.º 3, da Lei n.º 32/2006, de 26 de Julho, n a redacçã o que lhe foi dada pela Lei n.º 17/2016,
de 20 de Junho.
4 De facto, o n.º 3 do artigo 4.º referido foi introduzido em Junho de 2016 mas mantiveram-se os n.ºs 1 e
2 do mesmo artigo, que afirmam o seu contrário, criando dificuldades sérias de interpretação do dispositivo.
5 V. o artig o 6.º, n.º 1, da Lei n.º 32/2006.
6 V. o artigo 8.º da Lei n.º 32/2006, de 26 de Julho, na redacçã o que lhe foi dada pela Lei n.º 25/2016, de
22 de Agosto.
7 Este conjunto de alt erações introduzidas pelo legisla dor em 2016 operou o que foi considerada “ uma
revolução” na conf iguraçã o jurídica da relaçã o de filiação no direi to português: Rute Teixeira PEDRO, “Uma
revolução na conceção jurídica da parentalida de? Breves reflexões sobre o novo regime jurídico da procriação
medicamente assistida”, in Actas do Seminário Debatendo a procriação medicamente assistida, Porto,
FDUP/CIJE, 2017, pp. 150-151.
Maria Raquel Guimar ães
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Porém, a solução do legislador de “importar” a gestação de substituição para o
domínio contratua l, regulando-a como um negócio jurídico bilateral gra tuito, ainda
que com especificidades que naturalmente condicionam o regime jurídico aplicável,
levantou um conjunto de problema s novos sem propria mente proporcionar soluções
adequa das e eficientes pa ra a s questões que o proc edimento coloca, deixando em
abert o um sem-número de interrogações que não podem ficar à mercê do jogo da
autonomia privada. São, em muitos casos, evidentes os limites das normas
contratuais e a sua desadequação neste campo, nomeadamente a ineficiência das
regras da nulidade do negócio para todas as situa ções que a lei comina com tal
consequência 8.
Os problemas coloca dos por este novo reg ime levaram à tomada de posição do
Tribunal Constitucional português, atra vés do Acórdão n.º 225/2018, de 24 de Abril
de 2018, suscitada por um pedido de fiscalização abstracta sucessiva de diversa s
normas da Lei n.º 32/2006, de 26 de Julho. O Tribunal Constitucional decla rou a
inconstit uciona lida de das normas que constituem o cerne do regime jurídico da
gestação de substituição, ainda que admitindo o contrato qua tale, enquanto
contra to gra tuito e com ca rácter ex cepcional. É nosso objectivo neste text o proceder
à análise do regime jurídico do contrato de gestação de substituição, tal como
consagra do no artigo 8.º da LPMA, e, ao mesmo tempo, apontar a s posições que
foram seguida s pelo nosso Tribuna l Consti tucional e que l evara m à decl ara çã o da
incon stituci onalid ade das no rmas em quest ão.
2. CARACTERIZAÇÃO DO CONTRATO DE GESTAÇÃO DE SUBSTITU IÇÃO NO DI-
REITO PORTU GUÊS
2.1. O tipo l egal gestação de substituição: contrato obrigacional, gratuito, bila-
tera l imperfeit o e formal
Em face do disposto no artigo 8.º da Lei n.º 32/2006, de 26 de Julho, Lei da Pro-
criação Medicamente Assistida (LPMA) — na reda cção que lhe foi da da pela Lei n.º
25/2016, de 22 de Agosto —, podemos dizer que o “c ontra to de g esta çã o de
substituição” é hoje, no direito português, um contrato nominado, definido pelo
legislador como “qualquer situação em que a mulher se disponha a suportar uma
8 Assim também, no direito italiano, Alessandra CORDIANO, “La tutela dell’interesse del nato da maternità
surrogata fra (in)disponibilità del corpo e aspirazioni genitoriali”, in Autonomia e heteronomia no direito da
família悌e no direito das sucessões, cit., p. 744.
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