A qualidade de sócio/acionista em sede de suprimentos: os indícios materiais

AutorPedro Ferreira Malaquias e Manuel Barbosa Moura
Páginas136-142

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Contrato de suprimento
Enquadramento

O contrato de suprimento é hoje urna figura amiúde debatida na doutrina e na jurisprudencia, tratándose de contrato nominado e típico cujo respetivo qua-dro normativo se desdobra além do Código das Sociedades Comerciáis (CSC) — assumindo crescente relevancia, por exemplo, no Direito da Insolvencia. No entanto, é naquele diploma que encontramos a sua definicáo legal: «Considerase contrato de suprimento o contrato pelo qual o socio empresta d sodedade dinheiro ou outra coisafungíveljicando aquela obñgada a restituir outro tanto do mesmo género e qualidade, ou pelo qual o socio convendona com a sodedade o difeñ-mento do vencimento de créditos seus sobre ela, desde que, em qualquer dos casos, o crédito fique tendo cardc-ter de permanencia» (cf. artigo 243.°, n.° 1, do CSC). Este contrato, que hoje encontra assento legal no regime das sociedades por quotas, representa, na verdade, urna das mais antigás práticas de financia-mento societario, sendo relativamente pacífico na doutrina o entendimento de que estamos perante urna especie dentro do contrato de mutuo - contrato de que deriva urna multiplicidade de outras formas de «empréstimos». Com efeito, esta especialidade radica essencialmente na própria estrutura subjetiva genética do contrato de suprimento. Assim, e sem prejuízo de outros elementos (designadamente, o «cardcter de permanencia»), a qualificacáo de determinado mutuo como se tratando de contrato de suprimento resultará impreterivelmente da específica qualidade das partes, ou seja, como esclarece o pre-ceito citado, considerar-se-ao suprimentos os mutuos em que «o sódo empresta d sodedade». A qualidade das partes é, por isso, um elemento essendal típico do próprio contrato. Apesar da tipificacáo no seio do regime das sociedades por quotas, atualmen-te é também amplamente defendido que se trata de instituto cuja ratio nao só nao excluí como justifica a aplicacáo analógica do regime no contexto do finan-ciamento das sociedades anónimas. Neste sentido, consideraremos indistintamente o mutuante como se tratando de socio ou acionista.

Os sujeitos do contrato de suprimento na base do regime

Deste elemento essencial típico nao se pode disso-ciar a funcáo do contrato: o financiamento societario. Este propósito, todavía, é prosseguido através de um meio em que se descobre na pessoa do mutuante urna bipolaridade impar face as restantes prestacóes de capital típicas ao alcance dos socios/ acionistas (nomeadamente: entradas de capital, prestacóes suplementares e prestacóes acessórias). De facto, quando um sócio/acionista efetua suprimentos a sociedade está a dotá-la de meios patri-moniais para que esta exerca a sua atividade comercial, o que significa que, em rigor, aquele suprimento está na verdade a desempenhar a funcáo de capital próprio da sociedade porquanto provém de um dos seus titulares e visa alimentar o acervo patrimonial da empresa — ou seja, visa suprir urna necessidade de capital na prossecucáo do objeto social. Contudo, ao faze-lo por meio de um

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empréstimo, o sócio/acionista está simultáneamente a rejeitar a afetacáo do empréstimo ao regime do capital social visto que, como se infere pela tautología inerente, o sócio/acionista espera a restituicáo daqueles meios patrimoniais segundo determinadas condicóes (por si acordadas com a sociedade). Assim, o sócio/acionista pretende que lhe seja reconhecido um crédito sobre a sociedade equivalente á quantia ou objeto mutuado (eventualmente acrescido dos respetivos juros) o que significará, inevitavelmente, que será também um credor social. Como cedo se apontou na doutrina nacional: «[o] socio quer, por um lado, ser empresario e, por outro lado, evitar o risco empresarial; quer ser socio e simultáneamente aparecer perante a sociedade com um credor estranho» (cf. RAÚL VENTURA, Sociedades por Quotas - Comentario ao Código das Sociedades Comerciáis, vol. II, Almedina, 1989, pág. 85).

O regime do contrato de suprimento nasce, pois, da tensáo que resulta entre dois principios basilares do CSC: por um lado, a autonomía da vontade das sociedades comerciáis e dos seus socios/acionistas, que impóe que se reconheca aos últimos um espaco de liberdade no financiamento das sociedades e que significa que estes poderáo eleger o mais adequado meio de financiamento de acordó com a sua vontade; e, por outro lado, a protecáo dos credores sociais, que neste campo imporá urna tutela destes face aos sócios/acionistas que decidem financiar a sociedade recorrendo a suprimentos através da diferenciacáo entre ambos. E que, como é fácil de ver, difícilmente um sócio/acionista concorrerá em situacáo de igualdade na restituicáo dos seus créditos quando comparado com um comum credor social. Em regra, um sócio/acionista gozará de um leque de direitos sociais que lhe permitirá um mais preciso e permanente estado de informacáo sobre a situacáo financeira da sociedade - podendo inclusive gozar de poderes de direcáo sobre os negocios da sociedade —, desta forma sendo capaz de exigir os seus créditos em situacáo privilegiada face aos demais credores sociais. Do equilibrio entre entes dois vetores nasce o regime dos suprimentos, procurando flexibilizar as opcóes de financiamento das sociedades comerciáis sem que tal coloque em xeque a protecáo dos credores sociais.

Da qualidade de sócio/acionista: delimitado do tema

Muitas outras questóes de indelével interesse sur-gem em torno do contrato de suprimento, porém, trataremos de abordar apenas de forma breve algu-mas questóes relacionadas com o elemento contra-tual ora em análise - no que respeita ao mutuante. Cumpre desde já frisar que estes problemas partil-ham entre si um fundamento comum: a desade-quacáo do criterio formal da detencáo de participacáo social e consequente necessidade de reforco da protecáo dos credores sociais (e, inclusive, da própria sociedade) face a potenciáis abusos da res-ponsabilidade limitada dos sócios/acionistas. Com efeito, nestes desvíos ao criterio formal da participacáo social estamos perante situacóes em que resulta gorada a qualificacáo do mutuante por referencia á sua qualidade formal de...

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