A proteção jurídica da cor única como marca no âmbito da indústria da moda - breves notas a propósito dos casos da «sola lacada a cor vermelha»

AutorMaria Miguel Carvalho
Páginas137-152

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I Introdução

De acordo com estudos divulgados no domínio da «psicologia das cores» 1, 93% dos consumidores consideram que a aparência visual dos produtos ou serviços que adquirem ou subscrevem determina essa decisão, considerando 84,7% que a cor é mesmo o aspeto mais relevante, sendo que esta potencia o reconhecimento de uma marca pelos consumidores em 80%.

Estes dados evidenciam a necessidade de proteger juridicamente estes (e outros) «novos» sinais 2 que assumem particular relevância na indústria da moda3.

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De facto, neste setor em particular a importância da cor é fundamental, considerando-se que embeleza o produto, tornando-o mais atrativo. De resto, existem mesmo profissionais que preveem as tendências relativamente às cores em cada coleção («colour forecasting experts»).

Além disso, constatamos que muitos produtos e serviços de variados segmentos, mas de forma especialmente visível nos de luxo 4, estão associados a cores que podem permitir - pelo seu uso reiterado e prolongado - que o consumidor identifique o designer da peça de vestuário, do calçado, dos acessórios, etc. (pense-se, por exemplo, na cor de laranja da Hermès 5) e que, em regra, são escolhidas, precisamente, em função de determinadas mensagens apelativas que se pretende, subtilmente, veicular.

Todavia, também aqui se tem verificado o crescente fenómeno da «pirataria» - incluindo, para além da contrafação, as chamadas «imitação de tendências» (em que há uma «inspiração», mas não propriamente uma cópia), e a «pirataria de estilo» («style piracy» ou «knockoffs», em que um produto é copiado [embora com a indicação exata de quem o produziu] e disponibilizado ao público com um preço muito inferior) 6 - atualmente intensificada, não apenas pela rapidez com que os produtos são «duplicados», mas sobretudo pela sua distribuição em grande escala e a baixo custo 7, causando prejuízos consideráveis aos designers 8.

A consciência relativa aos efeitos da cor nos consumidores e dos problemas que têm, na prática, surgido motivam, assim, cada vez mais, a exigência de proteção jurídica através da propriedade intelectual (em sentido amplo) 9.

Por razões de economia, optámos por centrar o nosso estudo na eventual tutela da cor única como marca na indústria da moda, a propósito de um sinal que está registado como tal em vários ordenamentos jurídicos (mas que viu o registo recusado noutros tantos) 10 e que tem sido objeto de acesa discussão, dadas as diferenças

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registadas nas decisões judiciais em vários ordenamentos jurídicos. Referimo-nos aos casos que respeitam à famosa sola lacada a vermelho de Christian Louboutin 11.

Christian Louboutin é um designer de sapatos que vende mais de 500 mil pares por ano (cujos preços variam entre várias centenas e milhares de euros por par), contando com clientes muito famosos e que se tornou sinónimo de elevada qualidade, bom gosto e sofisticação.

Os sapatos de Louboutin são instantaneamente reconhecidos pela sola lacada a vermelho, introduzida, em 1992 12, para, de acordo com o criador, chamar imediatamente a atenção, atraindo o olhar. No entanto, nos últimos anos, foram várias as ações judiciais que intentou para defender as suas marcas entretanto registadas em vários ordenamentos jurídicos 13.

Invocando, fundamentalmente, a violação do direito de marca e concorrência desleal, recorreu aos tribunais: em França contra a Zara, no Benelux contra a

Van Haren Schoenen B.V. E contra a Van Dalen Footwear, B.V. - cadeias de lojas que comercializavam um modelo de sapato com sola vermelha, com um preço substancialmente inferior aos dos sapatos de Louboutin - e, nos EUA, contra a Yves Saint Laurent, Am., Inc., - também esta uma empresa de alta-costura -, que pretendia comercializar sapatos integralmente monocolores (e, por isso, o modelo vermelho seria totalmente vermelho).

No primeiro caso referido, o Tribunal de Grande Instance de Paris (3.ème Chambre, 1.ère Section), em 4 de novembro de 2008, considerou que a marca

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de Louboutin era válida e que não existia risco de confusão, mas condenou a Zara por concorrência desleal e concorrência parasitária. Todavia, esta decisão acabaria por ser alterada pela Cour d’Appel de Paris, em 22 de junho de 2011, e esta, por sua vez, confirmada, em 30 de Maio de 2012, pela Cour de Cassation (Chambre Commerciale), no sentido de declarar nulo o registo da marca 14, 15.

No segundo caso referido, em 18 de abril de 2013, o tribunal de Haia decidiu que a marca registada por Louboutin era válida e considerou que os seus direitos haviam sido violados sobretudo pelo risco de confusão pós-venda 16.

Não obstante, no caso «Van Dalen Footwear B.V.», em 20 de março de 2014, o Rechtbank Van Koophandel te Brussels declarou a nulidade do registo 17.

Finalmente, no último caso, em 2011, o United States District Court for the Southern District of New York considerou que a cor única nunca pode constituir uma marca na indústria da moda. No entanto, esta decisão - muito criticada - acabou por ser modificada em sede de recurso pelo United States Court of Appeals for the Second Circuit, em 5 de setembro de 2012, que declarou que, atendendo ao secondary meaning provado no processo, a marca era válida, limitando, todavia, os direitos conferidos à marca ao uso de sinais idênticos ou semelhantes àqueles em que a sola lacada a vermelho contraste com a cor do resto do sapato.

Em todos estes casos foi muito discutida a admissibilidade do registo como marca da cor única sobretudo por causa da importância -a que já aludimos- que a cor desempenha, de forma muito evidente, na indústria da moda. Com efeito, atendendo ao interesse em incentivar a criatividade, deve ser considerada cuidadosamente a possibilidade de introduzir direitos de exclusividade, mas sem perder de vista que estes irão restringir a liberdade dos restantes designers 18.

Atendendo à insegurança jurídica que advém de decisões tão díspares procuraremos refletir brevemente sobre a admissibilidade da tutela jurídica da cor única como marca no âmbito de produtos relativos à indústria da moda, mas, por razões de economia, não abordaremos a hipótese de lhe ser conferida proteção com base noutros direitos de propriedade industrial e/ou intelectual 19, 20 e cingir-nos-emos ao direito europeu de marcas 21.

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II A discussão acerca da admissibilidade do registo como marca da cor única no âmbito da indústria da moda 22
  1. O interesse geral em não se restringir indevidamente a disponibilidade das cores para os restantes operadores no mercado e a possibilidade do sinal

    As marcas, como é sabido, são sinais que permitem que os consumidores distingam os produtos ou serviços que aquelas assinalam por referência à sua origem empresarial.

    Como refere Perot-Morel, «a priori, tudo o que é percetível pelos sentidos pode constituir uma indicação para o consumidor e pode, consequentemente, cumprir a função de uma marca: um som, um perfume, um sabor e talvez mesmo uma impressão táctil, podem perfeitamente simbolizar e caracterizar um produto ou um serviço» 23, o mesmo sucedendo com a cor 24.

    Todavia, nem todos os sinais que possam constituir uma marca podem ser registados como tal. Desde logo, porque a eventual concessão de tutela jurídica, através do registo, a este tipo de sinais precisa de ter em conta a sua própria fundamentação 25, sem deixar de considerar, como já referimos, os interesses dos demais intervenientes no mercado.

    Com efeito, a admissibilidade do registo como marca da cor 26 per se tem deparado com vários obstáculos sendo de destacar, antes de mais, o que respeita à valoração do interesse geral em não se restringir indevidamente a disponibilidade das cores 27 para os restantes operadores no mercado («depletion theory»).

    Nos EUA, foi sobretudo a «depletion theory» - a constatação de que conferir direitos exclusivos sobre as cores, existindo estas em número limitado, conduziria à proibição de os restantes agentes económicos as usarem no mercado para distinguir os seus produtos ou serviços - que conduziu os tribunais a recorrer à

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    mere color rule

    (um sinal constituído por uma cor por si só não poderia constituir uma marca) para obstar ao registo deste tipo de marcas 28.

    Contudo, este posicionamento viria a ser alterado e, em 1985, foi registada a primeira marca de cor nos EUA 29.

    Referimo-nos à cor rosa da fibra de vidro de Owen Corning Co. Que, inicialmente, havia sido recusada pelo examinador do Trademark Trial and Appeal Board [TTAB]. Todavia, atendendo ao longo tempo de utilização da marca (29 anos), o Court of Appeals for the Federal Circuit, com 2 votos a favor e 1 contra, acabou por conceder o registo, entendendo existir uma exceção à «mere color rule» quando uma cor específica não é usada, nem exista uma necessidade de efetiva concorrência 30. E, dez anos mais tarde, após várias decisões judiciais contrárias 31, confirmou-se esta orientação, no caso «Qualitex», em que foi admitido o registo da marca constituída pela cor verde-ouro 32.

    No que respeita ao Direito Europeu de Marcas importa destacar que a cor não está expressamente referida no art. 2.º da DM 33. Todavia, o seu elenco é meramente exemplificativo. Além disso, e não obstante as reservas 34 relativas ao valor jurídico da declaração conjunta do Conselho da União Europeia e da Comissão (emitida aquando da adoção da diretiva e constante da ata do Conselho) 35, esta refere a opinião de «que o artigo 2.º não exclui a possibilidade (...) de registar como marca uma combinação de cores ou uma única cor (...) desde que elas sejam adequadas a distinguir os produtos ou serviços de uma empresa dos de outras empresas» 36, 37. E o Tribunal de Justiça teve já ocasião

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    de se pronunciar sobre a possibilidade de uma cor única ser registada como marca.

    A primeira vez que o fez foi no acórdão proferido no âmbito...

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