Ainda sobre o procedimento cautelar de suspensão de deliberações sociais. O conceito de deliberação não executada para efeitos do artigo 396.º do Código de Processo Civil

AutorJoão Maria Pimentel - David Sequeira Dinis
CargoAdvogados do Departamento de Contencioso do URÍA MENÉNDEZ PROENÇA DE CARVALHD.
Páginas21-29

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1. Duas abordagens possíveis a respeito do tema

Uma análise desatenta do regime do procedimento cautelar de suspensão de deliberações sociais, regulado nos artigos 396.º do Código de Processo Civil e seguintes, poderia levar a concluir que os requisitos para ser decretada esta específica providência são, todos eles, substancialmente diferentes daqueles de que depende a procedência do procedimento cautelar comum, previstos nos artigos 381.º e seguintes do mesmo Código.

Concretamente, resulta daquele regime particular de suspensão deliberativa uma condição ou requisito negativo, que corresponde à necessidade de a deliberação social objecto da providência a decretar não ter sido ainda executada.

Com efeito, embora este requisito não esteja expressamente enunciado no texto legal, o mesmo decorre, desde logo, da própria essência e denominação da providência cautelar em questão: só se pode suspender algo que seja susceptível de ser ou, pelo menos ainda estar a ser, executado. E se dúvidas ainda houvesse, as mesmas ter-se-iam por dissipadas à luz dos artigos 396.º, n.º 1 e 397.º, n.º 3 do Código que expressamente se referem à execução da deliberação impugnada.

Compreende-se bem o este requisito legal tanto de uma perspectiva lógica como de uma perspectiva de economia processual. Por um lado, só tem sentido falar em suspender determinado quid se o mesmo existe e ainda não se consumou ou consumiu. Por outro lado, não se vislumbra a utilidade que justifique o recurso à máquina da justiça para pedir a suspensão de determinado quid se este já não existe, se já se consumou ou consumiu, de tal forma que nada exista a suspender.

É, pois, pacífico que a não execução, pelo menos total, da deliberação social é condição de procedên-

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cia do procedimento cautelar destinado à respectiva suspensão1.

Porém, não será necessária uma reflexão demasiado profunda para se concluir que este requisito negativo específico não é mais do que a concretização ou explicitação do periculum in mora, a que aludem os artigos 381.º, n.º 1 e 387.º, n.º 1 do Código de Processo Civil, como requisito essencial do procedimento cautelar comum. Na verdade, o facto de determinada deliberação não estar (integralmente) executada, aliado à possibilidade de essa execução causar dano apreciável ao Requerente, a demonstrar-se, é, nem mais nem menos, que a situação de perigo eminente que justifica a intervenção cautelar do Tribunal.

Ora, a prova que assim é resulta bem patente do confronto do regime do procedimento cautelar de suspensão com o regime do procedimento cautelar comum, quando utilizado para suspender, por exemplo, deliberações do conselho de administração2.

Com efeito, pese embora não exista previsão expressa semelhante à do artigo 396.º, n.º 1 do Código de Processo Civil para o procedimento cautelar comum, a verdade é que, mesmo quando se recorra ao regime comum, uma deliberação já consumada não poderá ser suspensa por inexistirem fundamentos que justifiquem o recurso à tutela cautelar, maxime, por não existir periculum in mora.

Assim sendo, cumpre concluir que o requisito do periculum in mora proscreve -em geral- a suspensão de deliberações já executadas. Portanto, se o artigo 396.º, n.º 1 do Código de Processo Civil nada dissesse, ainda assim se deveria entender que as deliberações consumadas não poderiam ser suspensas.

Em suma, o requisito legal segundo o qual só são susceptíveis de serem suspensas as deliberações sociais ainda não integralmente executadas, sendo específico deste procedimento cautelar, não é mais que expressão concreta da ideia de periculum in mora que percorre o regime dos procedimentos cautelares3 y 4.

Não obstante, essa especificidade impõe ao intérprete e ao aplicador do artigo 396.º do Código de Processo Civil que descubra e determine quando é que uma deliberação se tem por integralmente executada e, como tal, insusceptível de ser suspensa, já que a solução oferecida pelo texto legal não se afigura, a este respeito, totalmente esclarecedora.

Designadamente, será que a deliberação de eleição dos corpos sociais se esgota com a aceitação dessa eleição pelos administradores? Ou vigora, e como tal é susceptível de ainda ser suspensa, enquanto aqueles se mantiverem no cargo para o qual foram eleitos?

Será que a deliberação de aprovação de contas e de aplicação de resultados se esgota nela mesma? Ou perdurará, por exemplo, enquanto perdurar a alocação de recursos para reservas ou para distribuição de dividendos deliberada pelos sócios?

Será que a deliberação de aumento de capital se esgota com a prática dos actos materiais de que depende a sua eficácia? Ou vigora enquanto se protraem os seus efeitos?

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Na resposta a estas interrogações e na procura de um caminho para o trabalho do intérprete é frequente recorrer-se aos conceitos de deliberação de execução instantânea (ou imediata) e de deliberação de execução continuada (ou prolongada) e à regra de que apenas as deliberações deste segundo tipo, enquanto não estiverem integralmente executadas, poderiam ser objecto de providência cautelar no sentido da respectiva suspensão.

Porém, a doutrina e a jurisprudência encontram-se divididas sobre o conteúdo dos referidos conceitos, porquanto não têm encontrado um critério uniforme que permita delimitar, com rigor, quando é que uma deliberação se pode ainda considerar de execução continuada e, como tal, susceptível de ser suspensa.

Actualmente digladiam-se duas teses opostas -uma dita formalista e outra dita substancialista- a propósito da questão de saber quando é uma determinada deliberação se encontra totalmente executada5.

Uma corrente doutrinal e jurisprudencial -que designamos de formalista- sustenta que a deliberação social se consuma, e como tal não poderá ser mais suspensa, com a prática dos actos materiais ou jurídicos de que depende a sua perfeição. O grande paladino desta tese -com influência assinalável, ainda hoje, na jurisprudência- foi o Conselheiro JACINTO RODRIGUES BASTOS, que se pronunciou sobre a questão em análise na anotação que fez do Código de Processo Civil.

Nessa obra, o referido Autor questiona-se sobre se «poderá ser judicialmente suspensa a execução de deliberações que foram, entretanto, executadas» para logo concluir que «a resposta não pode ser, até por imperativo lógico, senão a de que o procedimento destinado a obter a suspensão fica sem objecto desde que se mostre que a deliberação já foi totalmente executada» (cfr. «Notas ao Código de Processo Civil, 2.ª Edição, Vol. II, 1971, pág. 249).

Mais adiante, equaciona aquele Autor «quando deve considerar-se executada uma determinada deliberação», afirmando, em resposta, que «se se entender que a execução perdura enquanto se mantém o estado criado pela resolução tomada, todas as deliberações se têm de haver como de execução permanente, passando a suspender-se, não o acto deliberado ou a resolução tomada, mas sim actos que são já o resultado, mais ou menos remoto, da deliberação cuja validade se discute na acção principal. Não supomos que tenha sido esse o pensamento que informou a norma legal» (cfr. «Notas ao Código de Processo Civil, 2.ª Edição», Vol. II, 1971, pág. 251).

Em suma, de acordo com esta posição, diremos mais restritiva, a suspensão prevista no artigo 396.º do Código de Processo Civil restringe-se aos seguintes casos:

- ou aqueles em que se delibera praticar certo acto -fazer uma aquisição ou uma venda, iniciar uma nova actividade comercial ou industrial, efectuar uma determinada prestação, etc.-, e enquanto não são praticados os actos que traduzam em realidade o querer manifestado pela sociedade;

- ou aqueles em que se delibera praticar um certo acto, mas cuja eficácia a lei faz depender de certos procedimentos ou formalismos -por exemplo, a eleição de novos órgãos sociais e a necessidade de proceder ao respectivo registo- e enquanto os mesmos não forem executados.

Para esta corrente, seriam estes os casos de deliberação de execução continuada susceptível de poder ser objecto de providência cautelar de suspensão. Porém, praticados os actos -materiais ou jurídicos- consubstanciadores ou formalizantes dessa deliberação, pode a mesma ser revogada, mas já não suspensa a sua execução.

Outra corrente doutrinal e jurisprudencial -que designamos de substancialista-, defende que todas as deliberações geradoras de efeitos nocivos, directos, indirectos, laterais ou secundários são susceptíveis de serem suspensas em sede de procedimento cautelar enquanto esses efeitos perdurarem.

Para esta corrente haverá que distinguir entre as designadas «deliberações de execução instantânea», sem efeitos reflexos, daquelas outras de «execução continuada» ou «permanente», que apesar de executadas num ou vários actos materiais ou jurídicos, continuem a produzir efeitos. Como se antecipa, somente as primeiras não serão susceptíveis de serem suspensas pelo Tribunal.

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Actualmente, existem diversos Autores que, no essencial, propugnam esta tese.

Designadamente, para PINTO FURTADO «enquanto estejam a transpor-se para a prática os efeitos da deliberação contestada, que sejam apreciavelmente danosos e se verifiquem, no caso, os restantes requisitos legais do procedimento preventivo, será sempre de decretar a suspensão cautelar da materialização desses factos, com vista a assegurar uma tutela jurisdicional efectiva dos direitos e interesses...

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