Portugal: Documentos Electrónicos e Assinatura Digital: As Novas Leis Portuguesas

AutorMiguel Pupo Correia
CargoProfessor de Direito Comercial - Universidade Lusíada - Lisboa. Advogado.
  1. O influxo das telecomunicações na transformação do mundo do Direito ganhou uma dinâmica imparável sobretudo a partir dos anos 80 deste século, com a introdução de tecnologia informática nos equipamentos e serviços de telecomunicações, criadora de progressiva diversificação e redução de custos e preços dos respectivos meios e serviços.

    E tal evolução acentuou-se drasticamente a partir de meados dos anos 90, graças ao explosivo crescimento da acessibilidade à Internet, que significou a transição de uma concepção “fechada “ das telecomunicações para uma concepção “aberta”, caracterizada pela generalização da acessibilidade aos respectivos serviços ou aplicações, até ao nível dos próprios utilizadores domésticos.

    Acrescenta-se a este factor de profunda mudança a acelerada convergência tecnológica entre as telecomunicações, os media de comunicação áudio e audiovisual e as tecnologias de informação, potenciando o aparecimento de novas e mais generalizadas facilidades postas à disposição dos utilizadores.

    Esta nova realidade, geradora de redefinição das estratégias dos Estados e das empresas, de desafios e oportunidades económicas e culturais, de qualidade de vida, é, porém, também fonte de um bom número de temas críticos, entre os quais algumas questões significativas na óptica dos seus reflexos sobre o Direito.

    Dessas problemáticas, uma das principais diz respeito à contratação electrónica: ou seja, à utilização dos meios de telemática ou tele-informática no âmbito das transacções comerciais, como via para a transmissão das declarações de vontade que consubstanciam a celebração de contratos comerciais e materializam a execução das prestações por eles geradas.

    Realmente, embora a pessoa comum associe a ideia de contrato a um documento escrito e assinado por duas ou mais partes, a verdade é que só numa pequena minoria de casos a celebração de contratos dá origem a instrumentos escritos e subscritos pelos contraentes. Ao invés, nas transacções comerciais entre empresas ou entre estas e os consumidores, para além da imensa maioria de casos em que a transacção é puramente verbal, mesmo os contratos escritos são geralmente celebrados, na prática habitual, pela troca de algumas mensagens distintas física e temporalmente, que materializam as declarações de vontade pelas quais as partes reciprocamente se obrigam: consulta, oferta, aceitação, factura, pagamento, recibo.

    Ora, como a nossa cultura negocial e jurídica se achava tradicionalmente construída em torno do uso de suportes escritos em papel para tais mensagens, toda essa base cultural ficou posta em questão quando elas passaram a ser trocadas por via telemática. É certo que, à primeira vista, as mensagens trocadas entre participantes em transacções por meios electrónicos não divergem essencialmente dos documentos escritos em papel que tradicionalmente serviam para transmitir as comunicações de vontade negociais. O suporte é diferente, mas o conteúdo é idêntico. Por isso, põem-se em relação a esses documentos electrónicos problemas semelhantes aos que o Direito enfrentou quanto aos documentos em papel. É que a eficácia jurídica dos documentos depende da confiança que possam merecer como reproduções fidedignas de factos ou objectos, em especial de manifestações de vontade contratual de determinadas pessoas.

    Ora, sucede que a comunicação telemática é muito célere, mas é impessoal quando não implica a transmissão de voz e/ou imagem dos participantes: num contexto de transmissão telemática de mensagens escritas, é crítica a possibilidade de o destinatário verificar a identidade do remetente, o que coloca em causa a aplicação de todas as regras legais e sociais que dependem da identificação de uma pessoa em comunicação com outra.

    O risco de alguém se fazer passar por outrem na emissão de mensagens telemáticas faz emergir a ponta de um “iceberg” que comporta múltiplos aspectos, o principal dos quais reside na necessidade de confiança dos parceiros em transacções de comércio electrónico, ou em procedimentos administrativos conduzidos por via telemática, quanto à identidade real da outra parte com quem visam relacionar-se. No caso do jovem mercado que a Internet abriu, embora já se manifeste a dinâmica irresistível da sua expansão, existem fundados motivos para receio de fraudes, das quais boa parte poderão basear-se na simulação de identidades pessoais por terceiros de má fé. Daí que se torne imperioso adoptar mecanismos que confiram às transacções telemáticas o grau necessário de segurança, já que esta sempre foi o fundamento essencial do desenvolvimento das relações económicas.

    Nesta perspectiva, suscitam-se em relação aos documentos electrónicos os clássicos três tipos de problemas em tema de segurança:

    1. autenticidade, ou seja, a correspondência entre o autor aparente e o autor real do documento, que se comprova normalmente através de uma assinatura;

    2. integridade, isto é, a preservação dos documentos electrónicos contra alterações que lhes modifiquem o conteúdo;

    3. enfim, a confidencialidade dos documentos, ou seja, a sua preservação contra o acesso por pessoas não autorizadas, com recurso a técnicas de criptografia.

  2. É por isso que, no panorama do mais recente direito comparado, avulta a tomada por parte de várias organizações internacionais (União Europeia, UNCITRAL, OCDE, CCI) e em múltiplos países (já existem leis nos EUA, Alemanha, Itália, Espanha, Argentina, Colômbia, entre outros; e são conhecidos projectos legislativos em muitos mais) de várias iniciativas com vista à formulação de textos legislativos no sentido de criar condições de base favoráveis ao desenvolvimento em segurança do Comércio Electrónico. E reconhece-se que, entre essas condições, os alicerces fundamentais consistem na definição dos requisitos para que os documentos electrónicos possam ser considerados como meio seguro de formalização e de prova dos contratos e outros actos jurídicos que através deles sejam formalizados.

    Daí, também, a importância do requisito da assinatura dos documentos electrónicos, sendo certo que a maior parte das experiências legislativas já empreendidas ou em projecto adoptam como processo técnico a assinatura digital, a tecnologia mais actualizada e experimentada.

    Portugal acaba de se integrar no grupo de países que publicaram leis nesse sentido, através da publicação do Decreto-Lei nº 290-D/99, de 2 de Agosto, cujo projecto foi elaborado no quadro da “Iniciativa Nacional para o Comércio Electrónico”, aprovada pela Resolução do Conselho de Ministros nº 114/98, a par de outro importante diploma sobre facturas electrónicas: Decreto-Lei nº 375/99, de 18.9.

    Desde já se faz notar que o Decreto-Lei nº 290-D/99 foi publicado antes da aprovação – ocorrida em 30.11.1999 – e da publicação – ainda não ocorrida na data desta apresentação – da Directiva sobre um quadro comunitário para as assinaturas electrónicas, pelo que não constitui formalmente um diploma de transposição daquela Directiva para a ordem jurídica interna portuguesa. Contudo, as versões preparatórias da Directiva foram tidas em conta na elaboração deste Decreto-Lei e, nessa medida, este antecipa em larga medida a consagração no direito interno nacional da generalidade das soluções da Directiva.

    O regime instituído pelo Decreto-Lei nº 290-D/99 não se limita, porém, a conferir validade jurídica à assinatura digital, abrangendo outros aspectos de grande importância para o desenvolvimento dos aspectos económicos e político-administrativos da Sociedade de Informação. Tentarei, em seguida, dar uma ideia sumária das principais disposições desse diploma.

  3. O primeiro tema a que o Decreto-Lei nº 290-D/99 dedica atenção é, precisamente, o da definição de regras bases sobre os documentos electrónicos.

    3.1.Desde logo, o art. 2º, al. a), define documento electrónico como «o documento elaborado mediante processamento electrónico de dados».

    Note-se que não se define aqui o que seja documento, fazendo-se, assim, uma remissão implícita para a definição constante do art. 362º do Cód. Civil, que é tecnologicamente neutra, conforme entendimento corrente da doutrina jurídica.

    O documento electrónico é basicamente o documento formado mediante o uso de um computador, realidade que é acessível à experiência comum de uma pessoa média dos nossos dias. Esta categoria dos documentos não é completamente homogénea, podendo classificar-se, de acordo com os seguintes critérios:

    1. Com base no modo de introdução na memória do computador, temos: documentos originários, que são introduzidos na memória do computador através da reprodução mecânica de um facto externo, em particular de um precedente documento escrito; e documentos derivados, cuja introdução na memória do computador se faz através de equipamentos memorizadores a ele conexos: leitores ópticos, voice recognizers, ou sensores .

    2. Consoante o modo como os documentos são produzidos pelo computador, podem distinguir-se: documentos electrónicos em sentido estrito, que são memorizados em forma digital na memória do computador, ou em fitas magnéticas, ou em discos magnéticos ou ópticos, e são destinados apenas a ser lidos pelo computador, pelo que não podem ser lidos ou apercebidos pelo homem a não ser através de equipamentos tradutores que tornem perceptíveis e compreensíveis os sinais digitais pelos quais são constituídos; e documentos electrónicos em sentido amplo, ou simplesmente documentos informáticos, que são todos os gerados pelo computador através dos seus equipamentos periféricos - impressora, “plotter”, braço dum robot, etc. -, de modo a serem lidos ou interpretados pelo homem sem necessidade de utilização de equipamentos tradutores.

    3.2.O artigo 3º do Decreto-Lei nº 290-D/99 visa essencialmente resolver as questões fundamentais de direito probatório material respeitantes ao valor dos documentos electrónicos como meios de prova dos factos por eles revelados ou indiciados, introduzindo assim certas limitações no princípio geral da livre apreciação desses documentos...

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