Portos e aeroportos
Autor | Ana Raquel Gonçalves Moniz |
Cargo del Autor | Professora Auxiliar da Faculdade de Direito. Universidade de Coimbra |
Páginas | 393-423 |
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A existência e a construção de infraestruturas públicas de transporte representam um significativo fator de desenvolvimento e de promoção do Estado, contribuindo para o fomento do investimento estrangeiro e representando um ativo público dirigido a promover a produtividade, bem como a estabilidade e o crescimento sociais e económicos1. Não será, pois, de estranhar o empenho que os poderes públicos colocam no fomento das infraestruturas, quer aquelas que se revelam mais clássicas (como os portos), quer nas infraestruturas mais recentes (como sucede com os aeroportos).
O estudo dos regimes jurídicos das infraestruturas causa reveste a particularidade de traduzir algumas das modernas tendências de evolução do Direito Público:
a) Europeização: As profundas alterações que a Administração Pública está a sofrer não se circunscrevem a uma abertura para os lados (à Sociedade), mas determinam uma expansão para cima (à internacionalização e europeização)2. Neste contexto, alude-se hoje uma decisão constitucional no sentido de uma «estadualidade aberta» (offene Staatlichkeit)3.
Estamos numa arena em que o governo dos fiuxos financeiros, a alocação de recursos, a intercambialidade de mercadorias e serviços, e a tutela do
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ambiente demonstram, com clareza, que a disciplina dos ativos infraestruturais ultrapassa, em muito, as fronteiras estaduais, com todas as consequências que tal opera sob o prisma da soberania e da «autossuficiência»4.
Por um lado, a europeização aponta no sentido do reforço, no plano dos normativos aplicáveis, das preocupações atinentes à garantia da prestação dos serviços de interesse económico geral e da concorrência entre os operadores económicos cujas atividades pressuponham o acesso às infraestruturas. Por outro lado, assiste-se à emergência de redes transeuropeias e, como tal, à articulação das infraestruturas de um Estado-Membro com as infraestruturas dos restantes5. A preocupação com o desenvolvimento e modernização das infraestruturas de transportes (redes de estradas, de vias férreas e de vias navegáveis internas, de autoestradas marítimas, de portos de navegação marítima e interior, de aeroportos) a nível europeu culminou no programa da Rede Transeuropeia de Transportes (RTE-T)6, cuja responsabilidade cabe hoje Agência de Execução para a Inovação e as Redes (INEA)7; foi no âmbito deste programa que emergiram, entre nós, um conjunto de projetos inovadores, no horizonte quer das infraestruturas portuárias [como sucedeu com o PORTMOS - Integration of the Portuguese Ports and Maritime System in the Motorways of the Sea (2004-PT-91204-S), e com o (atualmente em curso) desenvolvimento das tecnologias que permitam o funcionamento da Janela Única Marítima (2012-EU-21019-S)], quer das infraestruturas aeroportuárias [como aconteceu com o projeto de expansão do aeroporto da Ilha de São Miguel, nos Açores (2008-PT-92100-P) e do aeroporto de Faro (2008-PT-92100-P)].
b) Aproximação entre Política e Administração - A gestão e exploração de infraestruturas de transporte, em geral, situa-se na confiuência de várias políticas públicas; no caso específico que abordamos (portos e aeroportos), é inegável
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a articulação entre as políticas de transporte, ambiente, oceanos e espaço aéreo. Se, por via de regra, a definição de políticas públicas condiciona, a montante, as opções administrativas, a verdade é que, no nosso horizonte problemático, existe uma forte imbricação entre as duas tarefas. Eis o que se passa, v. g., no âmbito das infraestruturas portuárias, em que não só a decisão sobre o modelo de gestão foi efetuada por ato legislativo, como também deste diploma constou a própria devolução da exploração das concretas infraestruturas às administrações portuárias (como veremos mais adiante, sociedades anónimas de capitais exclusivamente públicos).
c) Simplificação procedimental - Ao desenho dos atuais procedimentos administrativos presidem hoje os princípios da celeridade, descomplexificação e eficiência, com o propósito de que tais formalidades não representem entraves (desnecessários) ao acesso e ao posterior exercício das atividades económicas por parte dos operadores. A instituição da Janela Única Portuária (JUP) constitui um exemplo significativo da aceleração e da simplificação procedimental8. Assumindo uma importância ainda mais decisiva9a partir da Diretiva n.º 2010/65/UE10e da necessidade de criação de um espaço europeu de transporte marítimo sem barreiras, mediante a implementação de sistemas de transmissão eletrónica de informações e de intercâmbio de dados (sistemas e-maritime), a JUP agiliza a interação entre as diversas infraestruturas portuárias nacionais (assegurando a interoperabilidade dos sistemas de informação dos vários portos e das diversas autoridades - portuárias, aduaneiras, sanitárias, veterinárias e de fronteiras - que neles operam) e posiciona-se no contexto da concretização da Janela Única Marítima a nível europeu.
d) Rentabilização do património público e liberalização do acesso às atividades baseadas no domínio público - A subordinação das infraestruturas de transporte ao regime jurídico-administrativo do domínio público constitui uma tradição do direito europeu de matriz romano-francesa. Todavia, se o propósito inicial do estatuto da dominialidade consistia na proteção e conservação dos bens, atualmente, o regime encontra-se desenhado para promover a rentabilização do património e, dando resposta às exigências concorrenciais europeias, para impulsionar a liberalização das atividades económicas que têm na sua base tais bens. Recorde-se, a este propósito, que a tradicional exigência de
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uma intervenção administrativa sempre que em causa esteja uma atividade relacionada com o domínio público tem conduzido alguma doutrina a considerar que aquele instituto se está paulatinamente a transformar num «título de intervenção» ou num objeto de uma «utilização tática»11através do qual se assegura a participação da Administração e o respetivo controlo maxime em atividades liberalizadas, redundando numa verdadeira «coisificação de atividades»12. Tal sucederia, desde logo, em relação às infraestruturas dominiais que constituem o suporte de múltiplas atividades económicas. Importa, contudo, acentuar que, embora através da dominialização de um certo tipo de bens se intenda, como defende alguma doutrina, prosseguir a atribuição à Administração de poderes de regulação sobre determinadas atividades, não pode olvidar-se que a invocação do estatuto da dominialidade relativamente a certo bem não impede a aplicação dos normativos europeus sobre a concorrência. Uma gestão racional dos bens dominiais exige que o legislador desenvolva os regimes no sentido de estimular o investimento privado sobre aqueles, não só modernizando os instrumentos normativos atinentes à exploração por particulares e à utilização privativa de parcelas do domínio público, de molde a tutelar também a posição do utilizador (como veremos suceder no âmbito do domínio público aeroportuário), mas igualmente atualizando, no sentido da abertura e da participação, a disciplina das atividades a desenvolver sobre as infraestruturas (pense-se, v.g., nas transformações sofridas pelo regime da atividade de assistência em escala no aeroportos ou pela disciplina das operações portuárias).
Independentemente do regime específico a que se encontram sujeitos, os portos e aeroportos assumem-se, em primeira linha, como infraestruturas de
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transporte. Tal implica que estejam em causa bens de natureza complexa (ainda que submetidos, como veremos, a uma disciplina unitária), em que a identificação dos respetivos componentes pressupõe a adoção de uma perspetiva funcional ou funcionalizada. Impõe-se, pois, que os mesmos sejam contextualizados no âmbito geral do conceito de infraestrutura, para, em seguida, apreciar, na especialidade, em que consistem as infraestruturas portuárias e aeroportuárias.
Em sentido amplo, a doutrina refere-se à existência de infraestruturas económicas e infraestruturas sociais13, correspondendo as primeiras a projetos relacionados com redes de telecomunicações, rodoviárias, ferroviárias, portuárias ou aeroportuárias, e referindo-se as segundas a instalações destinadas a educação, saúde, turismo, recreio, estabelecimentos prisionais, etc.. Como acentuámos, o relevo político-económico das infraestruturas reside na circunstância de estas se conceberem como suporte físico artificial das atividades suscetíveis de, através dela, se desenvolverem14, servindo, na maioria dos casos, de base para a prestação de serviços públicos15. Em geral, as infraestruturas têm longevidade, mas pressupõem a realização de grandes investimentos, sendo constantemente permeáveis a inovações tecnológicas, bem como a riscos técnicos, económicos e políticos; o que determina, em regra, que a sua construção e também a exploração estejam entregues a entidades privadas, ainda que subordinadas a uma mais ou menos intensa regulação pública16. Em sistemas jurídicos de índole romano-francesa, um dos principais mecanismos para garantir a regulação pública (lato sensu) das redes que analisamos (infraestruturas económicas de transporte) consiste na natureza pública ou dominial das infraestruturas...
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