Direito humano e patrimônio da humanidade: a evolução no tratamento jurídico da água

AutorThaís Dalla Corte/Rogério Silva Portanova
CargoEstudiante de master en Derecho - Universidade Federal de Santa Catarina Dalla&Corte Advocacia/Professor Permanente del Programa de Posgrado en Derecho Universidade Federal de Santa Catarina
Páginas1-42

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I Introdução

A água é um dos elementos naturais mais abundantes da superfície terrestre. É por sua causa que a Terra é reconhecida como o Planeta Azul. Esse recurso possui uma complexa categorização (potável, salobra, doce, destilada, mineral, salgada, contaminada, entre outras), sendo que a água doce potável é essencial para a dinâmica da vida. Contudo, somente um pequeno percentual dos recursos hídricos existentes no mundo pode ser enquadrado nessa classe. Ademais, o seu maior volume é subterrâneo, o que dificulta a sua extração e, consequentemente, o acesso, em diversas áreas. É nesse contexto que, contemporaneamente, passou-se ao estudo dos rios voadores, a fim de avaliar sua influência no regime quantitativo de águas, visando à sua integração ao cômputo dos recursos superficiais e subterrâneos.

A água doce potável, em sua forma natural, está, cada vez mais, escassa. Suas reservas (superficiais e subterrâneas) estão diminuindo em decorrência da policrise1– com destaque para as crises de percepção, ecológica, hídrica e civilizatória – bem como em razão da sociedade de risco. Convém salientar que existem processos, como a dessanilização e as pílulas purificadoras, que permitem a retirada de sal e de minerais dos recursos hídricos, tornando-os próprios para consumo, aumentando, dessa forma, a sua disponibilidade. Entretanto, esses procedimentos ainda são pouco utilizados, tendo em vista seu alto custo (o que, inclusive, tem sido apontado como uma das motivações dos conflitos internacionais, inter-regionais e locais de águas, bem como da hidropirataria).

Faz-se relevante destacar que além de suas características, físicas, químicas e biológicas, a água possui, desde os primórdios da humanidade, atributo simbólico, relacionado à religião e à ética em várias culturas, o que influenciava na sua titularidade e no controle de sua utilização. Entretanto, em razão dos progressos científicos e do

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desenvolvimento industrial, o tratamento despendido à sua dominialidade e administração se alterou, refletindo os interesses políticos e econômicos predominantes em cada época. Logo, nem todas as nações adotaram (e adotam) o mesmo tratamento jurídico às águas, considerando a sua soberania sobre os recursos naturais. Contudo, evidencia-se que alguns países estão tentando resgatar o uso da água em harmonia com a natureza, como são os casos do Equador e da Bolívia, a partir do desenvolvimento de uma cosmovisão ecocêntrica.

No Brasil, o regime jurídico das águas evoluiu, apesar de não ser pacífico o seu reconhecimento como um direito fundamental. Inicialmente, na sua regulamentação, podiam ser encontrados elementos condizentes à esfera privada (Código Civil de 1916 e Código de Águas de 1934). Posteriormente, diante do crescimento industrial (que demandava maiores quantidades do recurso) e do desenvolvimento da consciência ambiental (principalmente em âmbito internacional), a água passou a ser regulada como bem de caráter público (Constituição Federal de 1988 e Política Nacional de Recursos Hídricos de 1999). Em razão da sua importância no sistema produtivo (como componente de bens e serviços (água virtual), bem como em razão de seu potencial energético), passou-se a reconhecer a água, inclusive, como recurso dotado de valor econômico (Constituição Federal de 1988 e Política Nacional de Recursos Hídricos de 1999).

Assim, a partir do reconhecimento de seu valor econômico, passou-se à discussão da mercantilização das águas. Esse debate ganhou força no século XXI, quando se aventou sobre a possibilidade de sua equiparação a uma commodity. O tema ainda é controverso; contudo, a mesma passou a ser chamada, entre outras razões, de ouro azul2. Destaca-se que o mercado das águas não se refere, exclusivamente, à exploração da água mineral (envasada), mas, também, à água tratada no que tange ao seu modelo de gerenciamento (abastecimento, saneamento, irrigação, geração de energia, entre outros). Dessa forma, evidencia-se uma mundialização do direito das águas3, grande parte, em razão, de seu caráter transfronteiriço.

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Entretanto, os sistemas de gerenciamento não se fundamentam numa gestão universal das águas (possibilitada pela governança ambiental ou pelo modelo político-filosófico do direito planetário), realizando-a pelas vias fragmentadas das regiões hidrográficas (sendo sua unidade a bacia hidrográfica). Há casos em que se verificam esforços para o desenvolvimento e execução de políticas integradas de administração das águas, como são os casos do Mercosul (Tratado sobre o Aquífero Guarani - 2011) e da União Europeia (Directiva Marco del Agua - 2001). Porém, tais iniciativas ainda são excepcionais, tendo em vista, mormente, os interesses econômicos e políticos que lhe circundam.

Nesse sentido convém salientar que, apenas recentemente, influenciada pela Guerra del Agua ocorrida na Bolívia (2000-2002), a água passou a ser considerada – de forma expressa – um direito humano, através da Resolução n.º 64/292, de 28 de julho de 2010, editada pela Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas. Diante disso, discute-se a força vinculativa desse instrumento para os Estados e a implicação de sua internalização pelo ordenamento jurídico dos países signatários. Ainda, discussões mais ampliativas, abordam o direito à água como um novo direito: patrimônio comum da humanidade. Ressalta-se que essa definição naturalística (e centrada na deep ecology) da relação entre o homem e a água já pode ser encontrada, modernamente, no constitucionalismo latino-americano, casos das Constituições do Equador (2008) e da Bolívia (2009).

Diante do exposto, esta pesquisa, no ramo das Ciências Jurídicas e Sociais, insere-se nas áreas do Direito Constitucional, do Direito Internacional, do Direito Ambiental e do Direito das Águas (ou Direito Hídrico)4. No mesmo sentido, convém destacar que o presente estudo adota uma visão sistêmica5, ecológica6e interdisciplinar sobre o regime

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jurídico das águas, pois articula elementos do Direito e de outras ciências como, por exemplo, a biologia, a sociologia, a história – entre outros – com o escopo de que, além e por intermédio delas, se obtenha uma melhor compreensão do assunto.

Também, visando à apreensão profunda do tema em voga, em relação ao método de abordagem, adota-se o indutivo. Dessa forma, a problemática deste artigo foca-se no seguinte questionamento: Houve evolução, em âmbito nacional e internacional, na tutela jurídica das águas, mormente nos últimos anos? Assim, partindo-se de um levantamento particular para se chegar a conclusões gerais, objetiva-se analisar a evolução do tratamento jurídico despendido às águas, a fim de avaliar o seu posicionamento como um novo direito humano e patrimonial, com destaque à cosmovisão ecocêntrica instrumentalizada pelo constitucionalismo latino-americano, com destaque para as Constituições do Equador (2008) e da Bolívia (2009).

II Discussão
1. Panorama da água: Aspectos socioambientais e a crise hídrica

A água é um dos recursos naturais mais abundantes da Terra, o que lhe faz ser reconhecida como Planeta Azul (ou Planeta Água). Caracteriza-se por ser um bem renovável, porém em escassez. A data e a forma pela qual a mesma surgiu no mundo são controvertidas7; contudo, estima-se que, desde o seu surgimento até os dias atuais, sua quantidade é estável. Assim, o volume aproximado de água encontrado na Terra é de, em média, 1.386.000.000 km³. Entretanto, essa disponibilidade não atende toda a população, sendo que, segundo dados da Organização das Nações Unidas (ONU), mais de um bilhão de pessoas8, hodiernamente, não têm acesso à água potável. Além de

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possuir uma distribuição irregular em seu território, a maior quantidade de recursos hídricos9, apesar da ampla classificação de seus tipos10, é salgada (97,5%). Logo, apenas os outros 2,5% restantes são água doce, sendo a sua maior extensão subterrânea11.

Nesse sentido, no que se refere, ainda, à quantificação das águas, convém ressaltar os denominados rios voadores – cursos de água atmosféricos que transportam (propelidos pelo vento) umidade e vapor de água da bacia Amazônica para outras regiões do Brasil (e, inclusive, para outros países próximos, devido à sua correlação com a Cordilheira dos Andes12) –, os quais incidem, de forma indireta (através da mensuração do regime de chuvas e das alterações climáticas), nos dados de avaliação de disponibilidade dos recursos hídricos. Apesar de serem considerados bombas d’água (já que transferem cerca de “20 trilhões de litros de água do solo para a atmosfera”), não existem, ainda, dados científicos suficientes para embasar um modelo integrado das águas superficiais,

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subterrâneas e “atmosféricas”, em especial no que se refere aos índices volumétricos, tendo em vista suas diversas variáveis.

A despeito de sua pouca quantidade, múltiplos são os usos econômicos e sociais dos recursos hídricos doces. Eles dividem-se, amplamente, em agrícolas, industriais e domésticos. A maior parte da água doce retirada dos mananciais no mundo, aproximadamente 70%, é destinada exclusivamente à agricultura. Assim, somente 20% dos recursos hídricos doce são utilizados pelo setor industrial e 10% são para uso doméstico. Contudo, esses valores são uma média mundial. Portanto, os percentuais podem variar. Por exemplo, na América do Sul 68,2% das águas são destinadas à agricultura, 12,6% são utilizadas pelas indústrias e 19,2% são consumidas...

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