A independência do Brasil: rupturas e continuidades

AutorSocorro Ferraz
Páginas177-185

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Fechadas as portas do continente pelos franceses por dentro, e pelos ingleses pela parte de fora

, na expressão do Marquês de Belas1não havia alternativa, pelo menos para D. João VI, naquela conjuntura, a não ser transmigrar para a mais importante colônia portuguesa -o Brasil. Não apenas o Rei se transmudou, mas parte de sua nobreza, isto é, seus pares e, com eles uma expectativa de que, enquanto durasse o cerco dos franceses em Portugal por terra, e por mar o dos ingleses, parte dos negócios do Reino poderia ser salva, a partir do Rio de Janeiro.

O Congresso de Viena, planejado para recompor o mapa territorial e político europeu, modificado pelos interesses da França de Napoleão, acabou por reorganizar conveniências de nações poderosas como a Inglaterra e outras emergentes como a Rússia. Entre muitos dos pontos importantes, que foram discutidos, este congresso evidenciou discordâncias entre os governos do Rio de Janeiro e Londres, que deveriam ser encaminhados «pelos bons ofícios russos», que por terem contribuído para a derrota de Napoleão, agora poderiam participar da partilha e defender interesses de algumas outras nações européias.2O problema mais difícil para Portugal dizia respeito à questão do tráfico. De certo modo os ingleses queriam atingir a economia de sua antiga colônia, os Estados Unidos da América e, para tanto acabar o tráfico negreiro no Atlântico. Esta política atingia em cheio os portugueses, que logo protestaram, acusando a Inglaterra de «falso verniz de filantropia», como se pode observar em um despacho do Marquês Aguiar para Palmela, em 16 de junho de 1814.3Outros problemas, entretanto, não eram tão mais amenos para Portugal. Tentar intervir nas decisões do Congresso de Viena estando a quatro meses de distância entre uma resolução emitida no Congresso e uma resposta da América era quase apostar no escuro. Era preciso ter um corpo diplomático afinado com os interesses do Reino e sem nenhuma influência inglesa ou espanhola. O que não era o caso. A questão da Guiana Francesa, invadida por ordem de D. João VI, como represália a Napoleão, agora, poderia lhe servir como moeda de troca aos espanhóis, porque os interesses dos comercian-

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tes do Rio de Janeiro estavam voltados, neste momento, mais para o Prata do que para o Amazonas. Nota-se que a orientação da política portuguesa mudava o rumo: antes, tão ciosa, em evitar a presença de estrangeiros na região amazônica, depois aceita de forma limitada. Outra vez a distância e a demora para influir, propor, votar, aceitar, protestar, se interpunham entre a Corte, no Rio de Janeiro e o Congresso de Viena. Os interesses franceses e as novas alianças na Europa criaram obstáculos aos planos de D. João VI. A situação do poder territorial dos estados nacionais europeus deveria voltar ao status quo de 1801, segundo o Tratado de Paz de Paris, assinado em 30 de maio de 1814, portanto, a Guiana deveria ser devolvida a França, com prazo estabelecido pelo próprio Tratado.

Portugal tentando evitar o seu isolamento das outras nações, propõe um acordo aproximando-se das posições da Espanha e da própria França: abolir gradualmente o tráfico negreiro e por fim aceitar limites para a movimentação de africanos no Atlântico.

O comércio desta mão de obra dar-se-ia abaixo da linha do Equador e pelos próximos oito a cinco anos. No Congresso de Viena, Portugal, ainda teria que ganhar posições de apoio para o seu grande problema no continente: a restituição de Olivença pelos espanhóis.

A imprensa acompanhava toda esta movimentação política. Na opinião de Hipólito da Costa4do Correio Brasiliense é de que, embora o Brasil no momento necessitasse da mão de obra africana deverá se preparar para receber imigrantes, agricultores e trabalhadores dos países europeus.

Diante desta conjuntura o governo português resolveu enfrentar a nova política de alianças e de correlação de forças, que se desenhava na Europa. A Abertura dos Portos às Nações Amigas, em 1808 e o projeto Reino Unido Brasil e Portugal (1815) foram dois suportes, que tornaram realidade àquela preocupação com os negócios, com a manutenção do Império e com o sistema de alianças, apesar da contrapartida da Inglaterra, determinante na assinatura do Tratado de Navegação e Comércio em 1810.

Independentemente do esforço para manter as forças que sustentavam o Império Português, o bloco do poder começou a dar sinais de desagregação; eles não surgiram tão explicitamente do aparelho do estado, apareceram com mais vigor da sociedade civil. A Revolução de 1817, liderada pelos pernambucanos, mas com importantes apoios do Ceará, da Paraíba e da Bahia, é um bom exemplo dessas fissuras, que aos poucos foram minando o Império. Zília Castro5aponta os ofícios dos governadores do Reino como as melhores denúncias sobre essa desagregação. São correspondências, nas quais se observa uma certa desilusão em relação à política real de comprometimento com as capitanias ou de denúncias de grupos sediciosos preparando a insubordinação. Nota-se que o deslocamento do Rei e do seu aparelho de Estado, ocasionando uma sobrecarga de impostos e de outras obrigações para com o poder, que naquele momento encontrava-se mais próximo, se por um lado criou as condições para que a Colônia fosse elevada à categoria de Reino Unido e que a partir dela o Rei e a burguesia comercial pudessem controlar o comercio com a África e com Ásia, por outro lado, estas condições não atingiram o Reino do Brasil como um todo. Rio de Janeiro e São Paulo foram capitanias favorecidas. Principalmente o Rio de Janeiro.

Para se ter uma idéia dessas rachaduras, em uma Proclamação aos pernambucanos, Caetano Pinto de Miranda Montenegro, em 5 de março de 1817 reafirma a intenção do Rei em unir os Reinos e denuncia os infiéis, conforme poderemos conferir no texto que segue:

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Pernambucanos: tranquillizai vossos ânimos, não deis ouvidos a vozes e rumores encarecidos: algumas palavras inconsideradas proferidas em excesso de alegria, não decidem do caráter dos homens nem os fazem infiéis, e traidores. Sua Majestade acaba de unir em um só todos os seus Reynos: esta feliz união deve diffundir-se do seu real coração com os nossos. Que fundamento pois poderia ter esses partidos em que alguns malvados vos pretendem dividir? Todos somos portugueses, todos somos vas sallos do mesmo Soberano, todos somos concidadãos do mesmo Reyno Unido: nem os homens se distinguem pelo lugar do nascimento, porém pelo amor e fidelidade ao seu Rey, e a sua Pátria, sendo esta a honrosa divisa dos Portugueses pelos seus talentos,virtudes e exatidão com que cumprem seus deveres...6Em resposta às inúmeras proclamações dos governantes leais ao Rei, os revolucionários publicaram também proclamações. O teor de uma delas segue abaixo:

Quem quer que vos sois

Vierâo nos a mão as vossas proclamações dignas de quem as faz, e digna de quem as espalha. E admiramos a graduação das vossas ameaças: em a primeira em 21 de marco vos contentáveis de nos tratar de indignos; nas duas de 29 de março passam a tratar nos de infames, desprezíveis e outros epithetos que de certo maisvos pertencem que a nos. Requereis nosso assassino e prometeis passar tudo a espada se senão instaurarem as Leys do vosso bom Rey, vede quão diferentes somos nós, não vos aborrecemos, não vos odiamos, mas daremos assassino por assassino, fogo por fogo, e guerra por guerra. Não vos tememos, vinde, desembarcareis e experimemtareis o que são homens livres. Em paga das vossas três proclamações vos remetemos outras três, e adverti, que se algum dos nossos Jangadeiros sofrer algum insulto temos em nossas mãos vossos Marechaes, Brigadeiros, e oficiais que pagarão cabeça por cabeça. Casa do Governo provisório em Pernambuco, 15 de abril de 1817.

Assinam: Padre João Ribeiro Pessoa, Domingos José Martins, José Luiz de Mendonça, Ma-noel Correia de Araújo, Manoel José Pereira Caldas, Antonio Carlos Ribeiro de Andrade, Miguel João de Almeida e Castro.7A imprensa terá um papel muito importante, mesmo no estrangeiro, ao...

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