Declaração de independência e constituição americana: uma história própria de federalizar o estado

AutorBruno J.R. Boaventura Mestrando em política social pela Universidade Federal de Mato Grosso
Páginas37-56

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I - Introdução

Em 1607 desembarcam os primeiros emigrantes, fundando em Virgína a primeira colônia inglesa na América. Eram os peregrinos (pilgrims), pertencentes ao puritanismo, possuidores de crenças que se confundiam em vários pontos com as teorias democráticas e republicanas mais absolutas, e exatamente por isso foram obrigados pelo reinado de Carlos I a abandonar a terra natal.

Herbet Schneider explica a interligação das crenças religiosas com as teorias democráticas e republicanas pelo conceito que formaria nacionalmente e historicamente toda cultura do país: a "ilustração". Conceito que conjuga a benevolência com ligação da "religião natural" e à ética humanitarista; a teoria da liberdade com origem na atitude política dos whigs que tem base nos textos clássicos e modernos em que a idéia de república é latente; e a liberdade religiosa como sustentáculo da separação do Estado da Igreja1.

O governo britânico iniciou a colonização através de três diferentes sistemas: a) governador nomeado encarregado de administrar sob o comando das ordens da coroa (Nova York); b) concessão a um homem ou companhia a propriedade de certas porções de terra (Maryland, as Carolinas, Pensilvânia e Nova Jersey); c) concessão a certo número de emigrantes o direito de auto-governarem em tudo que não era contrário às Leis da mãe-pátria (Nova Inglaterra, e depois Massachusetts).

A organização política formou-se a partir da comuna (Município) para o condado, do condado para o Estado e do Estado para a União, e não como inversamente aconteceu na maior parte das nações colonizadas pelos europeus (ex:Brasil), ou seja, a estrutura estatal se organizou da base para o topo e não do topo para a base.

A comuna nomeava seus magistrados, instituía e arrecadava seus tributos, claros exemplos que realmente era um ente político autônomo2. A autonomia no terceiro sistema de colonização era tamanha, que em Nova Inglaterra a representação política foi abolida: era na praça pública, assim como em Atenas, que os cidadãos resolviam as questões do interesse de todos.

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II - A luta pela independência

É no fervor deste novo mundo, a América do Norte, que o protestantismo ganha forças para germinar, e florescer o novo constitucionalismo federativo. A razão do bom frutificar foi a concepção religiosa amadorista de uma seita que se organizava em uma assembléia igualitária e democrática de fieis sem hierarquia religiosa ou social, e com isso atraía o homem comum que gostava dos ritos sem ritualismos, dos pecados sem penitencias, e principalmente da salvação terrena pelo trabalho3.

Nas palavras de Aléxis Tocqueville: "na América, é a religião que leva às luzes; é a observância das leis divinas que conduz o homem à liberdade", existia a combinação maravilhosa do espírito de religião ao espírito de liberdade. Isto era devido, principalmente, a completa separação entre Igreja e Estado.4 Assim a democracia política americana nasceu da democracia social religiosa.

As concepções econômicas que propulsionaram o incentivo ao trabalho capitalista foram: a exploração individual da quase ilimitada extensão de terra desocupada, a doutrina nacionalista de desenvolvimento político, econômico e jurídico, e até mesmo a total ausência das velhas concepções ligadas às relações feudais5.

A história demonstra que a crescente unificação das estratégias de defesa militar, em razão da ocupação francesa ao norte, da espanhola ao sul, e ainda, os conflitos com os grupos indígenas ao centro, foi o início da prospecção de uma identidade nacional. Esta identificação entre os americanos se expandia para todo o território, o que levou Tocqueville a traçar a seguinte sátira: "Do Estado do Maine ao da Geórgia, há cerca de quatro-centos léguas. Existe porém, entre a civilização do Maine e a da Geórgia, menos diferença do que entre a da Normandia e a da Bretanha.6"

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A Inglaterra visando obter mais recursos a partir das colônias inaugura uma política de rigorosa tributação, o que leva esta identidade nacional americana a se unir para a reação. Inclusive a cultura jurídica se enraíza como parte desta identidade, e um dos principais embates se dá quando a coroa inglesa, visando ampliar as competências do Tribunal do Almirantado, contraria a forte legitimidade dos julgamentos por júri popular7.

Esta legitimidade do júri popular era tão forte no povo americano quanto ao voto universal no que tange ao poder de praticar a vontade da maioria. Tocqueville considerou este hábito, sobretudo o júri civil, um meio difusor em todas as classes do respeito pela coisa julgada, da idéia do direito, da prática da equidade, em razão de que em matéria civil, diferentemente da criminal, todos podem ser processados algum dia. Foi dita como uma verdadeira escola gratuita de educação popular, em que as leis são ensinadas de maneira prática e postas ao alcance de sua inteligência pelos esforços dos advogados, das opiniões do juiz e das próprias paixões das partes. 8O Stamp Act de 1766 é o exemplo mais drástico da tentativa frustrada da coroa de aumentar a arrecadação imperial que passava por uma crise. A lei estabelecia a exigência de compra de selo emitido pela coroa para validar todos os documentos jurídicos emitidos na colônia. A revolta que se sucedeu nos americanos não era imposição de uma obrigação pelo parlamento britânico, mas sim que isto fosse feito sem o consentimento do povo americano que reivindicava representação no parlamento9 (princípio da tradição liberal: no taxation without representation).

Já em outro momento, em 1768, as ingerências políticas sobre a auto-governabilidade das colônias torna os ânimos ainda mais acirrados. Carl Becker evidencia um evento bem característico deste momento histórico. É quando a Assembléia de Massachusetts é ordenada pelo representante real à suspender a circulação de cartas que pediam que as outras Assembléias deliberassem sobre ações de defesa de suas liberdades. Agora, o que estava em jogo não era a mera representação política americana na Inglaterra, mas sim a própria preservação da já conquistada autonomia legislativa do governo das colônias10.

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A luta era para estabelecer, como Benjamim Franklin defendeu, que as colônias originalmente foram constituídas como Estados distintos conforme os charters assinados pelo Rei, e que não poderiam mais suportar a usurpação da autoridade de fazer as leis11.

Da sucedânea relutância em não permitir as interferências da coroa é que eclode a Guerra por independência das treze colônias contra o domínio inglês e deixa a marca da necessidade de reestruturação unificada do país. Assim as justificativas para a instituição da Federação Americana tem a seguinte órbita central: as treze colônias unidas em uma só federação teriam mais facilidades de manter a paz, ou até mesmo de mostrar resistência em uma nova guerra contra forças estrangeiras12. As palavras memoráveis de Tocqueville formam uma aula em poucas linhas:

"As treze colônias que sacudiram simultaneamente o jugo da Inglaterra no fim do século passado tinham, como já disse, a mesma religião, a mesma língua, os mesmos costumes, quase as mesmas leis; elas lutavam contra um inimigo comum, logo deviam ter fortes motivos para se unirem intimamente umas às outras e se absorverem numa só e mesma nação." 13A geopolítica econômica, nas palavras de Alexandre Hamilton que depois viria a ser o primeiro Secretário do Tesouro Americano, também ganha um enfoque profundo. As transações comerciais externas seriam facilitadas tanto no controle do acesso e tributação dos produtos estrangeiros por navios ao crescente mercado americano de três milhões de pessoas (importações), e pelo outro lado a União teria mais condição de constituir uma frota de navios com as Índias (exportações)14.

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Filosoficamente, a recente desgraça advinda da opressão da coroa britânica inspirava os Fundadores a se tornarem bravos defensores da capacidade americana de reagir as bravatas arrogantes vindas da Europa, como a de que todos os animais se degeneravam na América, inclusive as pessoas15, ou a de que o povo é feita para os Reis e não os Reis são feitos para o povo16.

Politicamente, a República é ressaltada como o poder de escolha dos representantes advindo de todo o povo igualitariamente considerado17 e não dos tirânicos títulos de nobreza, e os altos funcionários públicos durariam o tempo de seus mandatos ou o tempo de seu bom comportamento (good behaviour)18. A eleição era garantia de obediência e de eficiência em um diferente patamar do que a obtida pela vigilância hierárquica administrativa19.

III - A histórica propriedade americana da força constitucional centrípeta

Em 10 de maio de 1775, o Congresso Continental, reunido na Filadélfia, decidiu que ainda não era o momento para a declaração da independência, mas para prover uma direção central dos assuntos americanos e promover uma cooperação mais acentuada entre as treze colônias, visando uma oposição mais coordenada à dominação britânica, foi elaborado o

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primeiro projeto genuinamente americano sobre governança que delineava os poderes e funções de um governo central, intitulado de "Os artigos da Confederação e da União Perpetua". Ficou ainda instituído o exército continental comandado por George Washington.

Paralelamente à este processo político nacional, aconteciam autonomamente os processos políticos estaduais. No dia 29 de junho de 1776, vinte anos após a publicação do Espírito das leis, o Estado americano da Virginia proclama na convenção de Williamsburg o estabelecimento como forma de organização estatal a divisão nos três poderes concebidos por Montesquieu20. No mesmo ano os Estados de Maryland e Carolina do...

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