A I República portuguesa e a sua Constituiçao política

AutorPaulo Ferreira da Cunha
Páginas239-255

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I Polissemia e objectividade

Há muitos sentidos para a expressão “República”. Nesta polissemia cremos encontrar-se a chave para a solução de muitos problemas teóricos e alguns práticos que rondam o vocábulo. A Constituição de 1911, que legitimará o 5 de Outubro de 1910, e enquadrará juridicamente, pelo menos em pano de fundo, a I República, não será alheia a este problema: assumirá sentidos fortes de República, e não sentidos decerto mais consensuais, mas fracos, pouco denotativos.

A questão da polissemia da expressão associa-se, naturalmente, às paixões que a I República ainda suscita, e certamente continuará a suscitar por muito tempo. E que não é dos mais pequenos obstáculos à compreensão da época e da vivência dos seus textos normativos, a começar pela Constituição de 1911.

Não pode haver historiografia, nem mesmo a jurídica, impermeável a simpatias (e quiçá sobretudo a antipatias), para mais nesta matéria, tão recente e tão exemplar. Assumimo-lo desde já. Mas, se não pode haver estrita assepsia, tem de haver respeito pelas opiniões alheias e objectividade no tratamentos dos factos, ainda que situada. E mesmo que Nietzsche haja dito não haver factos, mas apenas interpretações.

II Sentidos de “república”

Mesmo pondo de parte o sentido de República como praticamente sinónimo de sociedade política, que hoje quase só serve para confundir ou propiciar um falso consenso, é certo que a República (uma certa forma ou acepção dela) pode até conviver com uma cabeça coroada (podendo assim ser-se republicano e monárquico ao mesmo tempo: levando as coisas ao limite2).

Mas vejamos mais de perto. Não é por acaso que os monárquicos absolutistas (que são um dos contrários possíveis da República, e um contrário a ela abissal) consideravam que “ser rei de partidos” é “ser rei de coisa nenhuma”… Porque, para eles, a realeza só é verdadeira quando ilimitada (ou então limitada apenas no foro íntimo da consciência do monarca e das contas que deva a Deus…), não sendo para eles um rei constitucional um verdadeiro rei. Um rei constitucional é, para os absolutistas, um prisioneiro de uma república republicana, se não for ele mesmo um republicano...

Ainda recentemente, há quem, no estrito plano historiográfico, defenda (ou dê voz a) uma tese que não andará muito distante da profunda “republicanização” da monarquia, com o constitucionalismo e o liberalismo3.

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Assim, ao contrário do que temos sido em geral habituados a pensar, há vários sentidos principais do termo República: o corrente, que simplesmente o opõe à Monarquia (sentido fraco), e, desde logo, um mais profundo (primeiro sentido forte), que remete para as classificações aristotélicas, e que se prolonga por uma linha ininterrupta desde uma leitura demofílica de Maquiavel até aos nossos dias. Aliás, Maquiavel não deixa de fazer idêntica bipartição, nos Discorsi, e como pressuposto do próprio Príncipe (que só trataria dos governos não republicanos)4.

E, para Portugal, além da velha primeira monarquia ter sido o que pôde já chamar-se um poder conjugado5, e as tradições de velhas liberdades e municipalismo nos recordarem uma monarquia feita de plurais “repúblicas”, irse-ia mais além. Quem se não recorda que estava nas intenções dos conjurados de 1640, caso o Duque de Bragança não aceitasse a coroa, proclamarem a República? De qualquer sorte, desde pelo menos a revolução de 1820 que, sob o impacto da Revolução Francesa, havia uma forte corrente liberal adepta das instituições republicanas6. Queria-se nada mais nada menos que um trono “cercado de instituições republicanas”. Foi dito na época. E parece que os absolutistas não estariam muito errados ao suspeitarem de republicanismo no liberalismo. Muito pelo contrário.

Os tempos, contudo, provocam olvidos. Não parece haver hoje, em Portugal, consciência republicana generalizada, embora exista o sentimento republicano, plebiscitado diuturnamente em muitas eleições. Mas a nossa República não tem sequer educação republicana.

Aliás, o grande déficit da II República, em que nos encontramos, é o da Educação. Não só no plano da instrução, que a massificar-se não conseguiu manter nem qualidade nem exigência, como no plano do civismo, que não educou as massas. Veja-se, como decisivo exemplo, a crescente taxa de abstenção eleitoral. Mesmo quando questões vitais estão em jogo.

A República é também muito mais que o chapéu civil do primeiro magistrado da Nação. Mas obviamente não é indiferente que, num sentido mais denso e mais forte (num segundo sentido forte, ou fortíssimo, se alia a substância e a forma), este magistrado seja de escolha popular ou de mera sucessão numa família ou numa rede de famílias.

Porque instituir assim essa anti-democracia no vértice (um cargo vitalício e hereditário é realmente anti-democrático – embora se lhe possam louvar alternativas vantagens, reais ou mitificadas), mesmo quando se procure identificar ou aliar monarquia e democracia?

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Sempre os republicanos acharão as razões monárquicas pouco racionais, ou mesmo irracionais, pesando para eles muito mais a liberdade plena de escolher para o vértice do Estado quem o povo assim o decida, com intervalos regulares, e apenas por período determinado. Discute-se, por exemplo, no Brasil, a própria impossibilidade de segundo mandato presidencial, por proposta da prestigiada OAB (Ordem dos Advogados).

Para além dessa pedra de toque democrática (ou não), no topo da pirâmide institucional, há também a legitimidade de exercício, naturalmente. E essa prende-se com a encarnação, pelo primeiro magistrado, de uma ética. Poderia, em tese, chamar-se ética constitucional, ou ética pública (nome que alguns usam), mas que tem uma imagem de marca muito própria, uma conotação que julgamos não dever perder-se, na expressão “ética republicana”. Ora a ética republicana tem uma dimensão mais objectiva que são os valores, e uma vertente mais subjectiva que são as virtudes. Dela falámos em recentíssimo livro: não poderemos alongar-nos aqui, para aí remetendo7.

A junção da democraticidade (electividade e temporalidade dos cargos) da base ao vértice da representação política com a dimensão ética constituem o terceiro e mais forte sentido da república, depois do sentido fraco e formal de mera não-monarquia, e do primeiro sentido forte da forma republicana do governar (mas ainda menos forte, apesar de tudo), que possibilitaria em tese um rei de uma república. Como já se disse, aliás, na América Latina, do rei D. Juan Carlos, e razão pela qual foi possível que o quadro Guernica, de Picasso, voltasse a uma Espanha com rei: democrática, mas não republicana, ou, numa versão condescendente (que valeu ao quadro): republicana (em sentido fraco), porque democrática. Numa linha confluente, decerto, Peter Haeberle considerará que em toda a Europa (mesmo na monárquica) apenas não é completo o triunfo do princípio republicano no Liechtenstein.

O que é verdadeiramente próprio da República, para além da sua forma legitimar por título electivo e temporário o mais alto Magistrado de um Estado, é, realmente, a virtude pública, republicana (não a privada: já Montesquieu o tinha esclarecido liminarmente no seu Do Espírito das Leis). É pela virtude que essencialmente se auto-define a República8. E se hoje – não sem alguma confusão, reconheça-se – a tradução da virtude é feita normalmente através de valores9, cremos que o nosso século XXI, tão atravessado mundialmente por escândalos entre governantes e próximos do poder, é o momento de recordar que não bastam estes, mas que além da Mulher de César é importante que César (os diversos césares de uma república) sejam realmente honestos. E o pareçam com cristalinidade.

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Aos valores republicanos preside uma mística (aqui entram em força as virtudes, ainda que a expressão possa incomodar alguns, e compreensivelmente, dada a hipocrisia com que por vezes foram utilizadas) de serviço público, com algum minimalismo espartano (só no despojamento, não na política), e um equilíbrio no domínio social que hoje cremos não andar muito longe da verdade se o identificarmos com o enorme consenso social e político que, a despeito de uma moda intelectual e financeira neoliberal, se consubstancia na expressão “Estado social” ou, se quisermos ser mais concretos, “modelo social europeu”. Não pode haver vera República sem os três primeiros valores superiores sintetizados na Constituição espanhola de 1978 (Liberdade, Igualdade e Justiça, ou seus equivalentes), sem Estado de Direito, sem os princípios do Constitucionalismo moderno (do art. 16 da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão francesa de 1791), e sem o Estado social.

III Revoltas, revolução, partidos

Com a humilhação nacional sentida pelo Ultimatum inglês (que impunha que da manhã para a tarde Portugal retirasse de posições cobiçadas pelo seu projecto de ligar o Cairo ao Cabo, alternativo ao português, que desejava um mapa cor-de-rosa, de Angola à Contracosta, ou seja, a Moçambique), devidamente amplificada pela propaganda republicana, não tardaria um ano a que estoirasse a revolta. Foi no Porto, no dia 31 de Janeiro de 189110.

Podíamos ter tido República em Portugal nesse dia. E se o movimento tivesse triunfado, a República teria sido muito diferente. Poupar-se-iam, certamente, certos exageros jacobinos e positivistas que a mancharam, e que, propagandisticamente martelados pelos seus inimigos, passaram para o imaginário geral. Durante 48 anos e mais alguns ainda em democracia, que não logrou apagar essa lenda negra, a imagem da República é essa: “balbúrdia sanguinolenta”, como a crismou João Ameal, monárquico legitimista e sem dúvida um dos historiadores “oficiosos” do Estado Novo11. Mas a República do norte abortou…

Em 1907, a...

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