Heráldica, Coroa e Nobreza em Portugal no dealbar da Idade Moderna: em redor dos conceitos de justiça e desafio

AutorMiguel Metelo de Seixas
Páginas63-93
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4. HERÁLDICA, COROA E NOBREZA EM PORTUGAL
NO DEALBAR DA IDADE MODERNA: EM REDOR DOS
CONCEITOS DE JUSTIÇA E DESAFIO
Miguel Metelo de Seixas
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Numa perspectiva historiográca tradicional em Portugal, a nobreza é associada
à Idade Média, em declarada oposição à Coroa, apresentada como fenómeno central
na Idade Moderna. Tal dicotomia tam por conceito subjacente a ideia de “progres-
so” na passagem de um quadro feudal para um quadro de centralismo político e
administrativo mais “avançado”. Desde há cerca de 30 anos, tal perspectiva tem sido
posta em causa, vendo-se substituída por uma visão compósita, em que a Coroa
corresponde por inteiro a uma criação medieval, que se perpetua, alterando-se é
certo, pela Idade Moderna; ao passo que a nobreza, por seu turno, não só subsiste
como em certa medida domina a Idade Moderna, mostrando-se capaz de se renovar
tanto conceptual como materialmente.
O novo equilíbrio historiográco centra-se no fenómeno da corte, onde tanto a
Coroa como a nobreza moderna encontram o seu epicentro e terreno partilhado.
Ao serviço da evocação de um mesmo ideal, apresentado pela ideologia da época
como norteador de ambas: o bem comum. É neste debate historiográco que o pre-
sente texto se insere, pretendendo mostrar como a heráldica constituiu o código
* Investigador integrado do Instituto de Estudos Medievais/Faculdade de Ciências Sociais e
Humanas/Universidade Nova de Lisboa; professor auxiliar da Universidade Lusíada de Lisboa; sócio
efectivo e presidente do Instituto Português de Heráldica.
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visual por excelência de construção deste novo equilíbrio, não apenas como «espel-
ho» mas, muito mais do que isso, como seu instrumento prático de concretização.
Para esse efeito, é mister retomar o conceito de “speach act”, ou seja, o valor da
heráldica como acto performativo do poder político e da ordem social, mostrando
em que sentido e medida o novo conceito e a nova prática da heráldica se relacio-
naram com o universo dos desaos (torneios, justas, passos honrosos) que então se
desenvolveu em simultâneo. A análise será efectuada a partir do exemplo português,
por entender que este constitui um estudo de caso particularmente interessante por
causa da precocidade e da intensidade com que o reino de Portugal ingressou na era
da centralização do poder régio.
A Idade Moderna constituiu um ponto de viragem inequívoco no papel que a
heráldica desempenhou no seio da ordem social e política vigente. No seu perío-
do de formação e de difusão, entre os séculos XII e XIV, a heráldica erguera-se
como sistema emblemático triunfante na sociedade medieval, logrando impor-se
não só nos campos de batalha, onde se havia vericado a sua génese, mas nas mais
diversicadas utilizações. Algumas delas prendiam-se com a questão da necessidade
de um sistema de identicação e de autenticação que pudesse ser universalmente
usado e compreendido numa sociedade em que o analfabetismo gozava de predo-
mínio quase absoluto; outras, menos perceptíveis à primeira vista e mais diferencia-
das, ligavam-se à instrumentalização da heráldica como forma de representação de
determinadas condições sociais e políticas.
Ao longo do nal da Idade Média e durante toda a Idade Moderna, o papel da
heráldica enquanto mero sistema de identicação entrou em decadência. Nos cam-
pos de batalha, na medida em que a cavalaria medieval foi declinando, a identi-
cação individual dos combatentes foi cedendo o passo à representação colectiva das
unidades organizadas em exércitos já não particulares e de existência esporádica,
mas permanentes e pertencentes ao Estado. Nesta nova organização militar, a antiga
cavalaria pesada, arma predominante até ao século XIV, foi perdendo importância
por causa de factores técnicos (desenvolvimento do armamento de longo alcance,
primeiro as bestas, depois as armas de fogo; alteração das tácticas de batalha, que
levaram à supremacia da infantaria e da artilharia; dimensão crescente e compo-
sição complexa dos exércitos) e sociopolíticos (composição dos exércitos; formação
técnica ligada às armas de fogo e à engenharia militar, com respectiva prossiona-
lização; criação de unidades permanentes subordinadas ao poder político central).
Em consequência destas mudanças, deixou de ter relevo a identicação indivi-
dual dos cavaleiros, tradicionalmente operada através da heráldica, e passou a ser

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