Governo da ley ou governo dos juizes? O primeiro século do Supremo Tribunal de Justiça em Portugal

AutorAntonio Manuel Hespanha
Páginas203-237

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Muito se exige por vezes da história, como se ela pudesse reproduzir objectivamente o passado, ou, ainda mais ratificar as políticas do presente, assegurar os projectos para o futuro ou, mesmo, evidenciar a natureza das nações, das instituições e dos homens. No entanto, a história é um saber frágil, sujeito aos enviesamentos dos nossos olhares, que quase só se voltam para o passado quando precisam de desenhar o presente.

Senão vejam. Comemoramos agora 1 os 175 anos do Supremo Tribunal de Justiça (STJ), ou seja, uma coisa que se terá passado em 1833 2. Em 1932,

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o Conselheiro Caetano Gonçalves publicou um livro com o título: Supremo Tribunal de Justiça. Memória histórica no primeiro centenário da sua fundação (1832-1932)3, referindo-se, portanto, a algo passado em 1832. Mas o texto que realmente determina que “Haverá em Lisboa um Supremo Tribunal de Justiça [...]“ é o artº 191 da primeira constituição portuguesa, que é de 1822, e não de 1832, nem de 1833. E, no entanto, ambas as comemorações têm alguma razão, como veremos, embora talvez ainda mais a tivesse uma comemoração realizada em 1972 (que, ao certo, não sei se teve lugar) 4.

Tomando esta falha como pretexto, tratarei aqui sobretudo da criação de 1822, sobretudo porque isso me permite abordar a história da mais interessantes das questões de política do direito e da justiça que então se puseram a propósito da criação de um tribunal deste tipo. Refiro-me à questão das relações entre direito legislativo e direito judiciário que, então, se ligava directamente a um dos princípios estruturantes da nova ordem política – o da separação e independência de poderes.

Facialmente, tratava-se de uma questão de doutrina política. Mas, por trás dela, perfilava-se uma questão de política menos doutrinal, a saber, a do papel dos juristas e do seu saber na conformação do direito de um Estado democrático.

Trata-se de uma questão histórica, ligado a um especial contexto político e cultural. Porém, ligada a um contexto diferente, é também uma questão do presente, esta de saber qual o lugar que o direito judicial pode ter num Estado como o nosso, que a Constituição define como “um Estado de direito democrático, baseado na soberania popular (art.2) e fundado na “na legalidade democrática” (art. 2). Questão acutilante hoje, sobretudo em face de progressivas propostas de desregulação estadual que, na melhor das hipóteses, deslocarão do legislativo para o judicial, a definição do direito.

Não é, porém, minha intenção tirar lições da história, pelo que apenas, a final e de forma muito leve, tocarei esta última questão. Na ribalta ficarão os factos e as ideias de há quase 200 anos, na primeira fase da história do STJ, enquanto este quase não era mais do que uma ideia.

I Os juristas no contexto do primeiro constitucionalismo

Uma das deficiências notadas pelos juristas da primeira metade do séc. XIX relacionava-se não tanto com proliferação de opiniões desencontradas, mas sobretudo com a falta de uma direcção para as decisões jurisprudenciais 5.

No contexto político das primeiríssimas décadas dos regimes constitucionais – como se conheceram em França, em Espanha e em Portugal

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-, esta inexistência de uma função dirigente da doutrina e da jurisprudência não deixava, afinal, de ser consistente com a projectada função dirigente da constituição e da lei parlamentar – a doutrina, tal como a jurisprudência, haviam de ser dirigidas, e não dirigentes. E, de facto, os defensores soberania (agora, da soberania popular) tendiam a ver inimigos jurados nos juristas “sicofantas” 6 e “sofísticos” – denunciados por J. Bentham – e na sua primazia em relação à declaração do direito. Muito mais tarde, já nos anos 30, ainda o escritorparlamentar Almeida Garrett esconjurava a tal “desembargocracia”, resquício da velha supremacia dos tribunais de Antigo Regime.

1.1. Postulados do primado da constituição e das leis

Na verdade, a função dirigente da constituição e da lei parlamentar – cujas raízes estavam tanto no constitucionalismo norte-americano 7, como no primeiro constitucionalismo francês (1789, 1791) – tinha certos corolários.

O mais importante era a proibição da interpretação doutrinal das normas de hierarquia superior, remetendo todas as tarefas interpretativas para o órgão legislativo 8;

O segundo, o recurso de cassação com fundamento na violação da lei;

O terceiro, a redução da doutrina à mera exegese e a interpretação a uma simples explicitação do sentido literal da lei;

Por último, a integração legislativa das lacunas;

1.2. Os elementos dissolventes do modelo

Sobre este modelo do primado das normas parlamentares – que constituía a base da democracia, sobretudo na sua vertente participativa – pendiam várias ameaças, a maior parte delas provindas da tradição anterior. Eram elas: a difusão do poder de interpretar a constituição 9 e as leis 10;

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• a insindicância das decisões dos tribunais 11;

• a indefinição dos contornos da ordem jurídica, com a consequente atribuição à doutrina de um poder de a conformar, de a interpretar e de a integrar.

Tudo isto era fatal para a garantia da constituição formal. Mas, também, para a supremacia dos “políticos” sobre os juristas; da legitimidade baseada no voto sobre uma legitimidade baseada na autoridade doutrinal; das maiorias sobre as “contramaiorias”.

1.3. A imagem pública dos juristas

Como se sabe, as cortes vintistas estavam cheias de juristas12. Mas nem por isso se deixaram de ouvir no hemiciclo ecos daquelas diatribes contra

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os profissionais de leis, tradicionais na literatura popular de Antigo Regime e, agora, ainda fomentadas pela formidável e influente hostilidade de Jeremy Bentham em relação aos homens do foro 13.

Alguns exemplos.

Em 8 de Maio de 1821 14, Borges Carneiro – ele mesmo jurista – propõe que, até nova ordem, não sejam admitidos novos Estudantes ao primeiro ano jurídico. A medida justificar-se-ia tanto pelo caráter parasitário generalidade das profissões jurídicas 15 16, como pela má qualidade do ensino, cujos conteúdos seriam geralmente incompatíveis com a nova ordem constitucional 17.

A discussão do parecer da Comissão de Instrução Pública sobre a reforma dos estudos, e da universidade 18 deu origem a um saboroso diálogo entre dois dos mais ilustres deputados juristas – Manuel Borges Carneiro e Manuel Fernandes Tomás. O primeiro desconfiava de que os lentes da Universidade pudessem elaborar uma reforma universitária liberta das “trapaças” da doutrina jurídica tradicional 19. Ao que o segundo – menos

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cáustico, em geral, em relação aos juristas – ripostou que o mal não estava na doutrina jurídica universitária, mas na prática do foro 20. Qualquer que fosse a sua séde, o mal era o mesmo – a inadequação do direito ao sistema constitucional. O público em geral, esse, queixava-se às Cortes da demora das demandas, causadas pela chicana dos advogados e pela preguiça dos juízes 21.

Esta desconfiança em relação aos juristas continuava-se numa desconfiança em relação aos tribunais. Embora devamos voltar ao assunto, não deixaremos de transcrever aqui as emblemáticas posições tomadas em Cortes por alguns deputados famosos sobre o incumprimento das leis pela administração e, em particular, pelos tribunais, nomeadamente pelas suas mais altas instâncias. Segundo eles criam, a revolução podia estar duplamente em perigo. Não apenas pelo incumprimento das leis, em si mesmo; mas pela revolta popular contra os abusos das autoridades constituídas.

“O Senhor Borges Carneiro. – A razão porque continuam as vexações dos Ministros, é porque todo o Negocio está dependente do Desembargo do Paço. Todo o Requerimento contra Ministro, ha de ir ao Desembargo do Paço, e ele põe-lhe uma pedra era cima, e tudo fica no mesmo estado. Eu sei de hum Requerimento em que uma parte se queixava de hum Ministro, em razão de injustiças cometida em uns Autos em que requeria que eles subissem à Mesa; passaram-se 20 Ordens, e tudo estava no mesmo. Requeria a Parte ao Desembargo do Paço para virem os Autos, dizia o Desembargo do Paço “Passe Ordem 2:000 réis”. Diz outra vez a Parte: “Não cumpriu a Provisão, está tudo no mesmo estado”. “Passe Ordem – dizia o Desembargo do Paço – 2000 réis”. Vinha a Parte outra vez. O Ministro não cumpre. Dizia o Desembargo do Paço “Passe Ordem. 2:000 réis”. Quarenta mil réis lhe levou de Ordens, e no fim de uns poucos de anos de luta, mandou o Corregedor os Autos. Chegarão à Mesa. Diz a Mesa “Remetidos ao mesmo Corregedor para tornar a informar” Então os Ministros que fazem isto podem por ventura ter amor da justiça? Podem obrar como devem?

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Certamente não. Não tenho ódio nenhum pessoal àqueles Ministros; Deus lhes dê as fortunas que desejo para mim, mas considerados como Desembargadores do Paço são indignos da confiança Publica. Tudo ali fica emperrado, e a Regência está amarrada sem poder fazer nada; por isso apoio com urgência a moção do senhor Alves do Rio”.

“O senhor Castelo Branco 22. – O mal é da maior evidência. Se nós víssemos que os Ministros em geral cumpriam as Leis, e a Administração Publica não ia bem; então era uma consequência que o defeito vinha das Leis, e não dos que a executavam. Porem nós todos os dias còramos ouvindo factos praticados pelos Ministros contra as Leis que eles não cumprem. Logo não vem o mal só de que as Leis são defeituosas, mas sim da má vontade dos Executores. Jamais poderemos conseguir o fim que desejamos, uma vez que não tenhamos...

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