Facebook: esfera privada ou pública? Análise jurisprudencial
Autor | André Pestana Nascimento - Maria Barbosa |
Cargo | Advogados |
Páginas | 68-79 |
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De acordo com informação divulgada pelo próprio Facebook em 28 de janeiro de 2015, se esta rede social fosse um país seria atualmente a nação mais populosa do mundo, após o número de utilizadores ter superado os 1.36 biliões de habitantes da República Popular da China (no último trimestre de 2014, o Facebook afirma ter registado mensalmente 1.39 biliões de usuários ativos). Em Portugal, os dados referentes a fevereiro de 2014 dão nota de 4,7 milhões de utilizadores, o que representa um universo de 43% dos portugueses.
Estes números são reveladores da real dimensão e expressão que as redes sociais e, muito em particular, o Facebook assumem na nossa sociedade. Nas palavras de MARIA REGINA REDINHA 1 «[o] certo é que as redes sociais são um meio de comunicação em contínua expansão: depois do adro da igreja, do café da praça e do centro comercial, o ponto de encontro parece agora ser a rede social, que há muito deixou de ser apenas o prolongamento da escola, para ser um local de convívio, de trabalho, de comércio, de propaganda política e até de prática de actos ilícitos.»
Paralelamente, longe vão os dias em que o acesso à Internet tinha de ser feito através de um computador. Atualmente, o Facebook encontra-se tão-só à distância de um telemóvel (smartphone), laptop, tablet ou televisão, aproximando as redes sociais dos respetivos utilizadores.
Não é, por isso, de estranhar que a disseminação e utilização generalizada destas plataformas virtuais sejam fonte de conflitualidade laboral, não tanto (mas também) pelas horas que os trabalhadores dedicam a assuntos de natureza não profissional durante o horário de trabalho, mas sobretudo pela informação que aí decidem partilhar. Com efeito, nunca a fronteira entre as esferas privada e profissional dos trabalhadores foi tão ténue e de complexa demarcação.
A difícil conciliação e ponderação dos direitos dos trabalhadores (v.g. liberdade de expressão e divul-
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gação do pensamento e de opinião, direito à privacidade e reserva da intimidade da vida privada) com os direitos dos empregadores (v.g. direito ao bom nome, salvaguarda da confidencialidade da informação, segurança das redes informáticas) exigem, assim, uma delicada e cuidada reflexão que mantenha os pratos da balança adequadamente equilibrados.
Em concreto, no que à utilização do Facebook diz respeito, a pergunta a que se procura dar resposta consiste em saber se as publicações aí efetuadas pelos trabalhadores fazem parte da chamada esfera privada e beneficiam da tutela da confidencialidade conferida pelo ordenamento jurídico ou, pelo contrário, se não existe uma legítima expectativa de privacidade que proteja o conteúdo dessas mensagens da ação disciplinar desencadeada pelos empregadores.
Neste artigo, pretendemos dar a conhecer as soluções que, até à data, têm vindo a ser acolhidas pelos tribunais portugueses e estrangeiros sobre esta matéria e contribuir para a densificação e concretização do conceito de «expectativa de privacidade», que afloraremos adiante.
O ano de 2014 coincidiu com os primeiros acórdãos nacionais que analisaram a licitude e regulari-dade do despedimento de trabalhadores que publicaram mensagens no Facebook passíveis de consubstanciar violação dos deveres laborais.
Como se poderá constatar, os tribunais começam a adotar uma série de critérios que poderão servir de guia aos trabalhadores, empregadores e juristas que sejam chamados a analisar esta questão.
Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 30 de janeiro de 2014 (JOSÉ FETEIRA) 2
Muito embora este seja o primeiro aresto que se debruça sobre as implicações e consequências laborais resultantes da publicação de mensagens no Facebook, a verdade é que o acórdão acaba por não abordar diretamente esta problemática com o detalhe e relevo que se lhe impunham.
Resumidamente, discutia-se nesta ação a regulari-dade e licitude do despedimento de um trabalhador que, através de um perfil falso (i.e. cujo nome e fotografia não coincidiam com a sua pessoa), publicou as seguintes mensagens nas páginas de Face-book de dois membros dos órgãos sociais do seu empregador:
«Desculpa o meu atrevimento mas à dias agúem me disse que fazias parte da mesa da s..., será que ainda não reparaste na pouca vergonha do p...e do outro mensário que eu não conheço. Segundo diz a senhora da contabilidade que só ele faz mais Km de carrinha a passear que as 4 carrinhas que andam a trabalhar, dizem no centro de saúde uma Dra. Que lá esta que quer uma viatura para levar os velhotes e elas andam sempre por fora 1 em vila real e a outra em frente a segurança social o fim-de-semana todo, é essa a contenção que estás a fazer? Foi para isso que não aumentaram aquelas desgraçadas em 10€ para andar a esbanjar dinheiro com os primos de os «F...» a mudar chão da igreja que tinha sido posto a 3 anos? Comprando vitrais? Achas que é essa a tua função? Emprestando dinheiro a musica para comprarem carrinhas assim o disse o presidente dessa colectividade! «E o povo PÁ» vou-te informar que vai ser feita uma queixa a segurança social e ao ministério publico por uso de peculato por parte da mesa da s...!»
Posteriormente, o Autor voltou a utilizar a mesma conta de Facebook para publicar a seguinte mensagem na página de outro membro da mesa administrativa da sua entidade empregadora:
«Sr V... voçe sabe-me dizer como ficou aquele caso em que a funcionaria da s...agrediu um demente? sabe dizer se o p... ó o sr partecipou ao ministério publico? / (...,) Desde quando é que a mesa sabe que o sei: P... anda a usar dois carros por dia em proveito proprio? olhe que o sr sabe que isso é abuso de poder alguém lá de dentro comentou que esse cavalheiro gasta mais gasóleo a passear que os outros a trabalhar.»
Considerando que o autor destas mensagens era desconhecido do empregador, foi apresentada queixa-crime contra incertos pelo crime de difamação, tendo sido apurado no decurso do inquérito que o verdadeiro utilizador deste perfil de Facebook era o Autor.
Para a decisão da causa, pesou ainda o facto de a Ré ser uma instituição sem fins lucrativos que se dedicava especialmente a atividades de escopo previdencial e de ação social, designadamente, à prestação de serviços de lar e de cuidados de saúde a idosos. Adicionalmente, deu-se como provado que
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atenta a natureza da atividade da Ré, pautada pela doutrina social da Igreja e pela Moral Cristã, a preservação da confiança da comunidade, seja na respeitabilidade e competência dos seus órgãos dirigentes, seja na organização e funcionamento da entidade empregadora, constituíam um aspeto fundamental.
Com base nesta factualidade, o Tribunal da Relação de Évora, à imagem do que havia sido decidido em primeira instância pelo Tribunal do Trabalho de Faro, julgou a ação improcedente, por não provada, e declarou que ocorreu justa causa para o despedimento do autor. Para o efeito, alegou em síntese que:
i. Constitui grave violação dos deveres laborais de respeito, urbanidade e mesmo de lealdade devidos ao legal representante da sua entidade empregadora e, nessa medida, constitui justa causa de despedimento, a divulgação feita pelo trabalhador, através da rede social «facebook», de mensagens cujo teor sabia que feriam a honra e o bom nome do legal representante daquela e demais membros da mesa administrativa, para mais quando nada resultou demonstrado no sentido da veracidade das imputações feitas através dessas mensagens;
ii. A gravidade de tal comportamento ainda se torna mais patente pela circunstância do trabalhador o haver assumido de uma forma velada, usando o subterfúgio de um nome de utilizador e fotografia nada reveladores da sua identidade, com o propósito de não ser reconhecido como trabalhador ou, sequer, como associado que também era da empregadora.
Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 8 de setembro de 2014 (M.ª JOSÉ COSTA PINTO) 3
No acórdão de 8 de setembro de 2014, o Tribunal da Relação do Porto foi chamado a pronunciar-se sobre a regularidade e licitude do despedimento de um trabalhador que publicou diversas mensagens no grupo do Facebook designado «Grupo de Trabalhadores da C...», composto por, pelo menos, 140 membros, todos eles trabalhadores ou ex-trabalhadores da entidade empregadora «C». De acordo com as definições de privacidade definidas pelos administradores deste grupo, entre os quais se incluía o autor, o acesso ao mesmo não era público e livre, sendo necessário solicitar uma prévia auto-rização para aderir ao grupo.
Ao longo de vários meses, o trabalhador publicou diversos posts no perfil do «Grupo de Trabalhadores da C...», tendo-se pronunciado, entre outros, sobre temas relativos à organização e vida interna da sua entidade empregadora e respondido diretamente a mensagens publicadas pelos seus colegas, indicando-se a título de exemplo as seguintes publicações:
- «Porque a opinião de todos é relevante, porque a mobilização coletiva é importante, informo todos os colegas que objetivamente pretendam demonstrar a sua indignação pelo trabalho gratuito nos dias feriados, foi DECRETADA GREVE ATÉ 31 DE JANEIRO 2013, ao trabalho suplementar - folgas - feriados, nos termos do comunicado anexo. O efeito prático da greve só será obtido perante a adesão massiva de todos os trabalhadores. Como todos nós sabemos existirão sempre os oportunistas (vulgo parasitas) que obtêm benefícios pelo trabalho e luta dos outros, e desses já ninguém espera nada, continuarão unicamente limitados à sua insignificante existência. No entanto é com os colegas trabalhadores, zelosos, profissionais, empenhados em dignificar a nossa profissão, e exigindo o respeito enquanto humanos, que contámos, estes sim que sentem desvalorizado o seu trabalho, e a sua dignidade... A nossa união é, e sempre será a nossa real força. ADESÃO À GREVE CONTRA O TRABALHO GRATUITO - PELA NOSSA...
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