Ética ambiental e animais domésticos: uma leitura da obra "Being animal: beasts and boundaries in nature ethics"

AutorNathalia Bastos do Vale Brito
CargoMestranda em Direito Ambiental e Desenvolvimento Sustentável pela Escola Superior Dom Helder Câmara, graduada em Direito pela PUC-Minas, pesquisadora do CEBID-Dom Helder. E-mail: nathaliabvbrito@gmail.com.
PETERSON, Anna L Being animal: beasts and boundaries in nature ethics. New York: Columbia University Press, 2013. 222p

O relacionamento do homem com o meio ambiente é de uma complexidade difícil de mensurar. Identificar o lugar do homem na natureza e compreender como são ou como deveriam ser as interações que ele estabelece com os outros seres viventes são tarefas que se constituem em alguns dos grandes questionamentos éticos da contemporaneidade. As diferentes formas de abordar e de reconhecer o papel do homem no mundo influencia as práticas que são adotadas cotidianamente, em pequena ou larga escala, e geram consequências para a presente e para as futuras gerações.

Nesse sentido, no livro “Being animal – beasts and boundaries in nature ethics”, lançado em 2013, a autora Anna L. Peterson traz uma interessante abordagem crítica acerca das concepções éticas relacionadas ao meio ambiente, aos animais, e a relação do homem com estes.

Anna L. Peterson é professora na University of Florida, vinculada ao Departamento de Religião. Possui doutorado em Ética e Sociedade pela Universidade de Chicago, tendo focado seus estudos na área de religião e mudanças sociais, principalmente na América Latina, atuando também na área da ética social e ambiental, e sob este enfoque, o estudo sobre os animais.

A abordagem das diversas teorias éticas acerca do meio ambiente e dos animais é feita por Peterson de uma forma peculiar, já que seu trabalho tem como foco a análise do tratamento dado aos animais domésticos pela ética ambiental, tema que não é amplamente tratado nas grandes discussões filosóficas.

A autora inicia os questionamentos de seu livro com uma constatação: os animais domésticos são vistos através de um enfoque que os separam da natureza, são considerados como construções humanas, opostos à vida selvagem. (PETERSON, 2013).

Peterson afirma que é contrária a esse modo de ver as questões éticas, compreendendo que não é possível entender nem o meio ambiente nem o ser humano sem levar em consideração as conexões dos homens com os sujeitos não humanos, ou seja, os animais.

Para ela, os animais revelam como é complexa a tarefa de tentar compreender o meio ambiente e suas interações, pois eles podem ser vistos, ao mesmo tempo, como indivíduos autônomos ou como partes componentes de comunidades bióticas; como pertencentes à cultura humana ou como totalmente selvagens; como seres vulneráveis e que dependem da ajuda humana ou como seres perigosos que devem ser detidos; como seres que merecem todo o amor humano ou como mercadorias e instrumentos de trabalho, de pesquisa ou de entretenimento.

Essa complexidade revela que existem paradoxos nas abordagens éticas ambientais que devem ser avaliados e superados. Peterson explica que esses paradoxos são gerados pelas compreensões dualistas que diferenciam e colocam em pontos opostos a natureza e a cultura, o ser humano e os animais, os animais e a natureza, a domesticidade e a vida selvagem, e a individualidade dos seres vivos e a integridade do meio ambiente.

Tais dualismos guiarão o pensamento da autora durante toda a exposição do livro, sendo que o foco principal é a análise da relação entre o ser humano e os animais domésticos, considerada por ela a relação mais íntima e complexa que o homem possui com a natureza.

Peterson explica que a domesticação possui em si implicações paradoxais. Ao mesmo tempo em que revela, no caso de animais de estimação, relações íntimas e afetuosas, a domesticação também implica em coisificação dos animais, ou seja, tratá-los como propriedade e como meios para atingir finalidades, a exemplo da indústria alimentícia. Assim, a domesticação representa a conexão que o homem possui com os animais e ao mesmo tempo o poder que tem sobre eles, sendo que neste sentido, a interpretação humana sobre o que caracteriza um animal como doméstico, de estimação, exótico, perigoso ou mercadoria é determinante na avaliação do valor intrínseco que cada animal possui, assim como o destino e o tratamento que será dado a ele. Por isso não é possível pensar a natureza sem considerar os animais domésticos.

Ademais, a domesticação não representa uma integração total do animal na sociedade humana, suas características e instintos considerados como selvagens ainda estão presentes na composição biológica do animal.

Anna L. Peterson, reconhecendo as inconsistências das numerosas teorias éticas sobre o meio ambiente, busca explicar a necessidade de se construir uma ética que faça sentido e valorize os animais, a natureza, os ecossistemas e o ser humano, superando os dualismos acima apontados e evitando a elaboração de respostas prontas e taxativas de conflitos concretos enfrentados cotidianamente.

Para alcançar os objetivos e explicar a tese levantada, a autora desenvolve o seu pensamento em oito capítulos, divididos em subseções que permitem uma maior clareza na exposição do assunto, tornando a leitura mais dinâmica e agradável. Essa estrutura é dada de forma a estabelecer um diálogo com o leitor, instigando-o a questionar acerca das afirmações, dados e teorias apresentadas. Em nenhum momento a autora impõe o seu ponto de vista de forma taxativa, mas ao contrário, convida o leitor a pensar juntamente com ela e a trabalhar sobre o que é abordado no livro.

Essa forma de escrita do livro, juntamente com exemplos pessoais da autora e dados científicos de diversas áreas do conhecimento como biologia, arqueologia, antropologia, geografia e psicologia, tornam o conteúdo do texto bastante agradável e dinâmico, afastando-se da análise puramente ética e jurídica do tema, trazendo uma interdisciplinaridade essencial para a abordagem do tema.

No primeiro capítulo, tem-se uma introdução do tema, onde encontram-se a tese e as hipóteses da autora, juntamente com as principais ideias que serão abordadas no livro. Esta escolha de abrir um amplo panorama do que será discutido no livro já na introdução é bastante interessante para instigar o leitor a continuar a leitura, pois nas primeiras páginas já é possível enfrentar uma série de questionamentos e reflexões, despertando a curiosidade e interesse do leitor.

No capítulo seguinte, são abordadas algumas teorias éticas sobre o meio ambiente, que possuem, em suma, um enfoque holístico e ecocêntrico, como a ecologia profunda e o pragmatismo, que compreendem que a natureza em sua totalidade é a fonte de valor para a ética, não havendo valor intrínseco nos indivíduos, mas sim no papel que eles exercem para o bem da natureza e, sendo assim, as práticas humanas devem guiar-se em prol de garantir o equilíbrio ambiental.

Estas teorias possuem uma inconsistência intrínseca, que é a de não considerar o homem como centro da natureza mas dando-lhe o poder de definir o que deve ser mantido, sacrificado e protegido o que representa uma abordagem que, na prática, é antropocêntrica.

No terceiro capítulo, tem-se uma exposição das teorias contrapostas aos do segundo, ou seja, as que dão um enfoque maior aos animais e ao seu valor individual. Para algumas teorias como o utilitarismo e as que defendem os direitos dos animais, a capacidade destes de inteligência e de senciência é um fator determinante para que se considere que eles detenham um valor intrínseco. A capacidade de sofrer do animal é vista como condição para que este seja titular de um interesse que deve ser tutelado. Entretanto, essas teorias ainda estabelecem hierarquia entre os interesses dos seres humanos e o dos animais, prevalecendo sempre o interesse do primeiro.

Os capítulos quatro e cinco tratam do enfoque ético dado aos animais selvagens e aos domésticos, respectivamente. Trazendo dados históricos, biológicos, éticos e jurídicos, a autora apresenta um vasto conteúdo que perpassa pelas características dos animais selvagens e domésticos, pela importância da domesticação animal durante a história humana e nos tempos atuais e pelas diversas formas éticas de enxergar os animais. Estas variam desde uma teoria do “laissez-faire”1 para os animais selvagens, à uma abordagem que enfatiza o bem estar animal e a responsabilidade humana pelos animais considerados como mais vulneráveis e dependentes, referindo-se aos animais domésticos.

Apesar de se constatar um tratamento diferenciado para os animais selvagens e domésticos, após uma exposição acerca dos estudos biológicos e comportamentais dos animais, chega-se à conclusão que a distinção entre essas categorias é muito tênue, tais animais possuem características em comum e ambos possuem um grau, mesmo que mínimo, de relação com o ser humano, o que não justifica o tratamento absolutamente diferenciado que se é dado pelas teorias éticas.

Após essas considerações, no sexto capítulo, faz-se uma síntese dos conflitos e tensões dos debates éticos, expondo as inconsistências e contradições de cada um. Através da abordagem de um caso prático, a questão da caça, a autora expõe o ponto de vista de várias teorias éticas acerca dessa prática, ficando evidente que não há consenso sobre a forma de solucionar o conflito.

Uma mesma teoria ética pode ao mesmo tempo repudiar ou aceitar a caça em diferentes circunstâncias, taxando de forma absoluta como o ser humano deve se portar, mas sem apresentar um fundamento moralmente mais aprofundado que justifique a escolha de determinada atitude em determinado caso. Para a autora, esse fato revela uma inconsistência das teorias éticas dualistas, que abordam de forma oposta e separada os elementos que deveriam ser mutuamente considerados.

Sob esse prisma, segue-se, nos dois últimos capítulos, a exposição de teorias que buscam uma reconciliação entre os diversos pensamentos éticos e filosóficos a respeito do meio ambiente e os animais, buscando superar os dualismos. No capítulo sete, a autora apresenta algumas teorias que defendem a necessidade de construção de uma ética que integre toda a natureza e que reconheça o valor individual das criaturas, passando por raciocínios que buscam os elementos comuns entre os enfoques holísticos e do bem estar animal, como o pluralismo moral e o pragmatismo, a abordagens que questionam os princípios fundamentais das teorias clássicas.

A autora percebe que esses enfoques éticos deixam claro o entendimento de que o antropocentrismo, ou seja, o valor centralizado no homem é a fonte dos problemas enfrentados na ética ambiental. A separação do homem com a natureza leva à impossibilidade daquele se reconhecer como integrante dessa, sendo impossível enxergar-se como um integrante da natureza que possui deveres para garantir a integridade e equilíbrio do meio ambiente. Isso faz com que cresça um sentimento de superioridade, que legitima a exploração e submissão da natureza.

A autora chama a atenção para o fato de que mesmo as teorias biocêntricas que concedem valor ao meio ambiente e não ao homem, não questionam o poder desse de decisão sobre a natureza. É evidente que qualquer ética é antropocêntrica, pois é criada e valorada pelo ser humano, sendo parcial e limitada já que não se pode possuir um conhecimento total acerca da natureza e suas implicações. (PETERSON, 2013).

Assim, a saída é que o homem tome a atitude de conhecer e reconhecer a subjetividade do outro, do não humano, por meio da adoção de práticas e de relacionamentos construtivos com a natureza. Todas as considerações feitas pela autora durante os capítulos precedentes levam-na, no último capítulo, a defender a necessidade de se desenvolver uma ética alternativa para tratar as questões ambientais que envolvem o homem, os animais e a natureza, compreendendo seus valores intrínsecos como sujeitos individuais, quanto o seu valor como sujeitos integrantes e atuantes nos diversos ecossistemas que compõem a biosfera. (PETERSON, 2013).

Para fundamentar esse ponto de vista a autora escolheu a teoria filosófica de Karl Marx, baseado no materialismo que, em suma, defende que as ideias, pensamentos e teorias elaboradas pelos homens advém da vida concreta e das relações sociais. Assim, Peterson (2013) realiza uma releitura da teoria de Marx, considerando-a como relacional. Compreende-se que o homem é moldado pelas suas relações sociais, sendo que a sua essência não é abstrata, mas é construída pelas suas conexões com a vida concreta. A autora defende, então, que não só as relações sociais moldam os homens, mas as suas relações com o mundo inorgânico, a natureza, e o mundo animal também são determinantes.

Assim, a autora defende que uma teoria ética ambiental deveria basear-se nas relações do homem com a natureza, considerando os animais não como abstrações, mas como indivíduos concretos. Segundo Peterson, “uma ética da natureza adequada não é só aplicada ou fundamentada nas práticas da vida real mas emerge do encontro real e do comprometimento com o mundo não humano e retornando sempre a este.”2 (2013, p. 4). Através desse fundamento, busca-se superar os dualismos e paradoxos em prol de uma abordagem que leve em considerações as interações mútuas entre homem, animais e natureza.

A escolha da filosofia de Karl Marx pode parecer um tanto quanto estranha para tratar a questão ética relativa aos animais e à natureza, visto que este autor tem como centro de suas preocupações o ser humano e as suas relações, enfrentando principalmente as instituições econômicas e o capitalismo. Entretanto, Peterson utiliza alguns conceitos da teoria de Marx de forma a contextualizá-los com o seu objetivo, trazendo uma abordagem que, no primeiro momento pode parecer inconveniente, mas que mostra-se no mínimo interessante para suscitar questionamentos e reflexões, mas que não possui uma profundidade filosófica suficiente para erguer-se como uma teoria ética autônoma.

A autora está consciente dessa falta de profundidade, pois deixa claro que o objetivo do seu livro não é a construção de uma nova teoria ética, mas somente chamar a atenção para a necessidade de se desenvolver teorias alternativas, utilizando o pensamento de Marx como um fundamento para demonstrar as bases nas quais essa teoria deveria erguer-se.

Trata-se, portanto, de um convite ao leitor a pensar e a não aceitar de antemão os conceitos pré-fixados ou as soluções simplistas aos conflitos que podem ser gerados pelas complexas relações as quais o homem está submetido.

A autora, então, finaliza as ideias abordadas no livro enfocando a importância das relações emocionais estabelecidas pelo homem. Para ela, relações emocionais são importante moralmente pois além de deixarem claro o que é valorizado pelo homem e o porquê, elas também são fonte de motivação para a tomada de atitudes. Entretanto, também alerta para o fato de que nem sempre as relações possuem uma carga positiva, já que podem revelar abuso, dominação ou exploração, não possuindo uma valoração moral.

Ao explorar esses dois pontos de vista, a autora defende que mesmo que as relações não sejam igualitárias, não é necessário desistir do engajamento emocional nas relações comunitárias, já que dependemos dessas relações, que incluem a sociedade humana e o mundo natural. Assim, para evitar o abuso, é necessário que seja buscado e identificado aquilo que é importante valorizar e como se deve valorizar.

A autora conclui seu pensamento explicando que a teoria de Marx oferece instrumentos para se compreender como os ideais e pensamentos dos homens são moldados pelas relações concretas, devendo-se partir destas para construir uma ética ambiental mais adequada e abrangente, já que existem alguns “mistérios teóricos que só podem ser resolvidos na prática concreta”3. (PETERSON, 2013, p. 186).

Ao finalizar a leitura do livro, percebe-se que este possui uma grande carga informativa, que é de importante análise para a reflexão acerca de como lidar eticamente com o meio ambiente.

A constatação da autora com relação às insuficiências das teorias éticas tradicionais é abordada de forma ampla, clara e com diversos argumentos sólidos e fundamentados não só na filosofia, mas em dados científicos de outras áreas do conhecimento. E, através dessa leitura, a autora deixa clara a necessidade de se construir uma nova ética.

A utilização do pensamento de Marx como ponto de partida para essa nova ética é interessante, inusitada e apresentada de forma e objetiva. Entretanto, a forma como é possível iniciar uma nova ética a partir das relações concretas entre ser humano e meio ambiente não é claramente demonstrado pela autora, sendo difícil visualizar como tais relações serão abordadas, valoradas e como poderão ser utilizadas de forma a solucionar conflitos práticos

Ademais, é perceptível o apego da autora às relações emocionais com os animais, já que em diversas passagens ela traz depoimentos pessoais acerca da sua relação com seus cães de estimação. E esse apego é refletido em seu pensamento argumentativo, em que um dos pontos de sustentação é o engajamento emocional nas diversas relações estabelecidas, o que demonstra uma fragilidade no fundamento da nova construção ética.

Relações emocionais não deveriam ser a base de uma construção teórica, já que são extremamente subjetivas. Cada homem responde psicologicamente, biologicamente e emocionalmente de forma diferente a determinados estímulos. Não é possível haver uma valoração ética baseada em uma relação emocional, pois não haveria consenso e nem uma forma objetiva de se tratar os diversos conflitos.

Apesar dessas inconsistências, a obra Being animal: beasts and boundaries in nature ethics, tem o mérito de constituir-se numa obra essencialmente crítica que traz uma abordagem abrangente, sendo útil como fonte de pesquisa e de argumentos acerca das diversas teorias que buscam explicar a forma como devemos tratar o meio ambiente eticamente.

A obra, portanto, constitui-se num convite ao leitor a pensar e a indagar acerca das informações e concepções vistas como preestabelecidas e incontestadas. A realização de tal reflexão é de extrema importância para se pensar o meio ambiente, o direito ambiental e o desenvolvimento sustentável, campos que não são compatíveis com pensamentos imutáveis e teorias dadas como prontas. A dinamicidade e contestação de paradigmas é o caminho a ser trilhado para a busca de um meio ambiente ecologicamente equilibrado.

[1] “Laissez-faire” pode ser traduzido como “deixar fazer” e se refere a uma atitude de não interferência do homem na vida dos animais selvagens.

[2] TAn adequate nature ethic is not just applied too or grounded in real life practice but emerges from and always returns to actual encounter and engagement with the nonhuman world (tradução nossa).

[3] Vid. MOLES i PLAZA, R. J., GARCÍA i HOM, A., “Ineficiencias jurídico-administrativas de la construcción social del riesgo: el caso de las antenas de telefonía móvil en Cataluña”, REALA. Revista de Estudios de la Administración Local y Autonómica, n. 311, septiembre-diciembre 2009, pp. 51-87.

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