O espaco europeu da propriedade industrial

AutorLuis Couto Gongalves
Cargo del AutorProfessor da Escola de Direito da Universidade do Minho, Braga (Portugal)
Páginas85-100

    Texto que serviu de base á intervencao que efectuamos no II Encontró da Escola de Direito da Universidade do Minho e a Faculdade de Direito da Universidade de Santiago de Compostela, que te ve lugar nesta Faculdade em 11 de maio de 2005.

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O trabalho terá duas partes essenciais: urna primeira parte, de cariz introdutório e de enquadramento temático, na qual iremos fazer urna breve exposigáo sobre a evolugáo da protecgáo da propriedade industrial na fase pós-revolugao industrial; urna segunda parte, que mais importa a Portugal e a Espanha, na qual iremos centrar o tema no espago da Uniao Europeia procurando apreciar as principáis etapas de evolugao da complexa construgáo daquilo que designamos por «espaco europeu da propriedade industrial».

I A evolucáo da propriedade industrial

Como é sabido, a propriedade industrial tem por objecto a protecgáo legal de um conjunto específico de coisas incorpóreos: as criagoes ou inovagoes industriáis e os sinais distintivos. Sao criagoes ou inovagoesindustriáis as invengoes, as variedades vegetáis, as topografías de produtos semicondutores, os desenhos ou modelos; sao sinais distintivos, para destacar os mais importantes, a marca, o nome e insignia, a denominagao de origem e a indicagáo geográfica.

Coisas incorpóreas sao, para citarmos GÓMEZ SEGADE1, «Criagóes da mente humana que, mediante os meios adequados, se tornam perceptíveis e utilizáveis ñas relagoes sociais e que pela sua especial importancia económica sao objecto de urna tutela jurídica especial».

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Foi no século xix que comegaram a ser publicadas as primeiras legislacoes sistemáticas de protecgáo da propriedade industrial.

A necessidade de legislagáo neste dominio correspondeu a interesses decorrentes do funcionamento de urna economia estruturalmente alterada após a revolugáo francesa e a revolugáo industrial. É certo que alguns dos direitos privativos industriáis nao nasceram apenas por essa altura. O que surgiu como manifestamente inovador e peculiar foi o problema da importancia desses direitos num regime de concorréncia livre. Os novos principios da liberdade de industria e de comercio e as profundas transformagoes tecnológicas, com o aparecimento da produgáo mecanizada e em serie, tornaram indispensável a tutela de meios de afirmagáo da empresa.

Os direitos de propriedade industrial, especialmente a marca e a patente, tornaram-se urna exigencia cada vez maior á medida que a economia se caracterizava por urna produgáo relativamente homogénea e estereotipada dos produtos. A uniformidade derivada da produgáo em serie tornou indispensável a protecgáo de sinais de diferenciagáo e a aposta na inovacáo. O modelo da concorréncia pura, assente no criterio qualidade/prego, nao passou de um modelo teórico de análise. A evolugáo da concorréncia traduziu-se na necessidade de novos criterios de afirmagáo. A propriedade industrial tornou-se necessária á concorréncia nao para a fazer mais livre, mas para a tornar possível2.

A propriedade industrial visa garantir a afirmagáo da empresa em mercado aberto e com produgáo em massa.

Dito de outra forma, a propriedade industrial é o ramo do direito que surgiu para resolver um problema que se manifestava com particular especificidade: a necessidade de proteger os modos de afirmagáoconcorrencial da empresa. Essa protecgáo concretizou-se e concretizase pela atribuigáo de direitos privativos em relagáo a concretas formas de afirmagáo: a afirmagáo técnica (patentes e modelos de utilidade), estética (desenhos ou modelos) e distintiva (marca, nome e insignia e outros sinais distintivos).

Podemos encontrar tres fases distintas na evolugáo da propriedade industrial: urna primeira fase de desenvolvimento nacional, durante praticamente todo o século xix; urna segunda fase de desenvolvimento internacional, desde fináis do século xix até a década de 90 do século xx; e urna terceira, que é a actual, de globalizagáo ou mundializagáo.

Num primeiro momento, a propriedade industrial surgiu para servir o comercio nacional. Nessa medida a protecgáo assentava no principioPage 87 da temtorialidade. O objectivo principal era o de garantir o estímulo da grodugáo interna e a livre circulagáo no ámbito geográfico de um país. É a fase da promulgagáo de leis nacionais de protecgáo da invengáo e da marca, em especial.

Num segundo momento (coincidindo com necessidades decorrentes da realizagáo da primeira exposicáo universal de París de 1889), a propriedade industrial comega tímidamente a adquirir urna dimensáo internacional. É certo que os direitos privativos continuam a ser nacionais, mas vai emergindo urna mentalidade aberta a dimensáo internacional destes direitos. É nesta altura que surge a emblemática Convengáo da Uniáo de París de 1883 de protecgáo da propriedade industrial (CUP), de que Portugal e Espanha foram países fundadores. Nesta convengáo, de aplicagáo auto-executiva, consagra-se o principio da igualdade de tratamento entre os nacionais de cada um dos países subscritores e concede-se, dentro de um certo prazo, o importante direito de prioridade do pedido de protecgáo em qualquer país da Uniáo de París a todo aquele que seja titular de um direito privativo num país de origem adérente da Convengáo.

O desenvolvimento acelerado do comercio internacional, a partir de meados do século passado, induziu a necessidade de novas respostas. Nesta segunda fase é de destacar, a nivel internacional, o Tratado de Cooperagáo de Patentes assinado em Washington em 1970 (PCT), que constituiu o primeiro instrumento jurídico internacional com a finalidade de centralizar o sistema de formulagáo e controlo de validade dos pedidos de patentes nos Estados contratantes.

Desde a década de noventa, assiste-se a urna nova fase da evolugáo da propriedade industrial, com o surgimento da sociedade da informagáo. O comercio ganha urna dimensáo nova num duplo aspecto: por um lado, vai mais longe no espago e em menos tempo e, por outro, desenvolve-se em novos dominios, com ciclos de producáo muito mais dinámicos e instáveis como os da informática, robótica, electrónica e biotecnología. O comercio passa a revestir urna dimensáo global mais do que simplesmente internacional. A circulagáo de bens num mercado táo vasto e dispar, do ponto de vista jurídico, representa um serio perigo para a defesa dos direitos industriáis. A contrafacgáo destes direitos nao só passou a constituir urna ameaga como veio a revestir, ela mesmo, em alguns países menos garantísticos, urna actividade económica crescente e rentável. Foi neste ambiente de tensáo entre os interesses dos países mais ricos, interessados na protecgáo da propriedade industrial e os países mais pobres, interessados, fundamentalmente, no desenvolvimento que, por imposigáo dos primeiros, surgiu, pela primeira vez, no ámbito das negociagoes comerciáis multilaterais do «Uruguai Round» de revisáo do GATT (Acordó Geral sobre Pautas Aduaneiras e Comercio) o Acordó sobre os Direitos de Propriedade Intelectual relacionados com o Comercio (ADPIC/TRIPS). Este acordó faz parte integrante,Page 88 como um anexo, do Tratado de Organizagao Mundial do Comercio, assinado em Marraqueche em 15/4/1994, ratificado por Portugal e Espanha. O ADPIC/TRIPS constituí um marco multilateral de principios, normas e disciplinas respeitantes a existencia, alcance, exercício e proteccáo de direitos de propriedade intelectual (que abrange para alémda propriedade industrial os direitos de autor) relacionados com o comercio.

O acordó nao pretende, nem ser um código que regule total e completamente o sector da propriedade intelectual, nem uma Directiva de harmonizagáo de normas nacionais. O objectivo principal é o de estabelecer um conjunto de regras e de principios que, como parámetro mínimo, devem ser respeitados pelos países que adiram á Organizagáo Mundial de Comercio. O acordó consagra disposicóes transitorias com prazos de aplicagáo mais alargados para os países mais subdesenvolvidos.

II A propriedade industrial na Uniáo Europeia
1. Introducáo

O equilibrio frágil entre o principio da liberdade de circulagáo e os direitos privativos industriáis, resulta do disposto no art. 30.° (exart. 36.° antes da revisáo de Amesterdáo) do Tratado da Comunidade Europeia (TCE). A solugao comunitaria admite que a protecgáo da propriedade industrial constitua uma excepgao ao principio estruturante da livre circulagáo de mercadorias previsto no art. 23.° do Tratado. No entanto, prevé-se uma excepgao á excepgao. A protecgáo da propriedade industrial nao pode representar um meio de discriminacao arbitraria nem qualquer restrigáo dissimulada ao comercio entre os Estados-Membros.

Por outras palavras, o legislador comunitario quer o fim, a livre circulagáo de bens, mas nao aceita que na prossecugáo desse fim sejam usados meios que ofendam, injustificadamente, os legítimos interesses dos titulares de bens industriáis. A opgáo legal é compreensível, mas a sua aplicagáo concreta nao se afigura tarefa fácil. O legislador comunitario comegou por atribuir a jurisprudencia o papel principal e mais difícil.

Num primeiro momento, e estamos a falar da entáo Comunidade Económica Europeia, a intervengáo do Tribunal de Justiga foi garantindo, nao sem sobressalto, crítica e mesmo autocrítica, a aplicagáo minimamente estável da referida solugáo normativa salomónica.

Num segundo momento, e estamos a falar da preparagáo do mercado único (após o Acto Único Europeu, de 1986) as necessidades crescentes de construgáo de um mercado integrado tornaram insuficiente aPage 89 via jurisprudencial de resolugáo do problema. Era necessária urna via mais eficaz que nao expusesse o funcionamento do mercado ao risco de qualquer orientagáo judicial menos previsível ou razoável de...

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