Alteraçôes à disciplina legal da fusâo e da cisâo de sociedades no Dódigo das Sociedades Comerciais

AutorMaria Eduarda Godinho; Jacinto Bettencourt
CargoAdvogados Del Departamento de Derecho Mercantil de Uría Menéndez (Lisboa).
Páginas15-30

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1 - Introduçâo: o Decreto-Lei nº 76-a/2006, de 29 de março

A publicaçâo recente do Decreto-Lei n.º 76-A/2006, de 29 de Março 1, provocou uma revoluçâo no direito societário português tâo profusas as alteraçôes que introduziu em tâo vasto leque de diplomas, entre eles o Código das Sociedades Comerciais (CSC) 2.

Com efeito, desde a aprovaçâo, em 1986, do CSC pelo Decreto-Lei n.º 262/86, de 2 de Setembro, que nâo se assistia a tâo grande mudança no panorama jurídico societário. As duas décadas ora interrom -pidas pelo empreendimento reformista do nosso legislador podem, por isso, ser consideradas de relativa estabilidade.

A reforma incidiu, com maior ou menor desenvolvimento, sobre as soluçôes legais típicas que ro deiam a vida jurídica das sociedades, à luz de uma tríplice necessidade de actualizaçâo, credibilizaçâo e simplificaçâo do direito societário, agrupando as alteraçôes em dois eixos distintos: de um lado, a eliminaçâo ou simplificaçâo de actos e formalidades que regulam as diversas vicissitudes societárias, o que, em bom vernáculo, se traduz por combate à burocracia; de outro, a actualizaçâo e o aperfeiçoamento dos modelos de governo e fiscalizaçâo das sociedades anónimas à luz do recentes desenvolvimentos em matéria de corporate governance 3.

Neste contexto, podemos afirmar com relativa segu rança que, para além de representar um esforço considerável de recalibraçâo da vida societária, a reforma em juízo introduz também, ou sobre -tudo, uma dose de actualidade no que se refere às soluçôes adoptadas pelo CSC no âmbito das actuais questôes estruturais do governo das sociedades.

Analisadas, sinteticamente, as linhas mestras fundamentais da reforma, resta-nos posicionar as alteraçôes à disciplina legal da fusâo e cisâo de sociedades.

Apressadamente, podemos situá-las no seio da simplificaçâo e modernizaçâo das formalidades e procedimentos que disciplinam a vida societária. Neste âmbito, assistimos a uma simplificaçâo de certa forma inédita nos últimos trinta anos, uma vez que o próprio CSC retomou grande parte soluçôes consagradas Page 16 no Decreto-Lei n.º 598/73, de 8 de Novembro, para a fusâo e a cisâo de sociedades 4.

Nâo podemos, no entanto, ignorar o facto da presente reforma se inserir, historicamente, num duplo movimento de simplificaçâo do direito societário e de reforço da credibilidade da actuaçâo das sociedades e seus representantes, balizado, em ambos os sentidos, por influências continentais e anglo-saxónicas convergentes. Uma reforma da disciplina legal sobre a fusâo e a cisâo nâo podia, por isso, ignorar as mais recentes propostas doutrinais em sede, por exemplo, de protecçâo de accionistas minoritários, consagraçâo de direitos potestativos de alienaçâo de participaçôes, ou flexibilizaçâo de mecanismos de "squeeze-out". No entanto, e antecipando uma conclusâo, podemos adiantar que o legislador seleccionou somente as alteraçôes enquadráveis num desígnio de "desburocratizaçâo".

2 - Limites e possíveis orientaçôes para uma intervençâo legislativa na disciplina legal da fusâo e da cisâo de sociedades no ordenamento nacional
2. 1 - A Terceira e a Sexta Directivas

O preâmbulo do Decreto-Lei n.º 262/86, de 2 de Setembro, esclarece-nos que, no âmbito da regulamentaçâo jurídica das operaçôes de fusâo e cisâo, o CSC retomou e actualizou as soluçôes positivas entâo existentes no nosso ordenamento, com as adaptaçôes exigidas pela Terceira Directiva 78/855/CEE do Conselho, de 9 de Outubro de 1978 relativa às fusôes das sociedades anónimas 5, e pela Sexta Directiva 82/891/CEE do Conselho, de 17 de Dezembro de 1982, relativa às cisôes de sociedades anónimas 6 e 7.

Relembre-se, de forma muito resumida, que foi a Terceira Directiva que impôs pela primeira vez uma regulamentaçâo mais ao menos uniforme do instituto da fusâo nos Estados membros, almejando, assim, o reconhecimento definitivo do instituto como uma figura jurídica autónoma e sujeita a uma disciplina própria. Também a Sexta Directiva, a que se reconhece, essencialmente, uma funçâo coordenadora das leis internas dos Estados membros, acabou por se revelar vital na clarificaçâo e consagraçâo do instituto da cisâo nos ordenamentos dos Estados membros através de uma disciplina autónoma.

Aproveitando a margem atribuída aos Estados mem bros na transposiçâo das mencionadas directivas, o legislador português foi, mais longe do que lhe era exigido, impondo, em alguns aspectos, um regime jurídico complexo, estranho à lógica comunitária.

Neste âmbito, concluímos que era possível maior simplificaçâo ou ajustamento da regulamentaçâo legal, no sentido de maior convergência com os textos comunitários 8 e 9. Tal nâo deve, porém, resultar numa rejeiçâo de algumas opçôes específicas do legislador nacional e que se revelaram acertadas, caso, por exemplo, da nâo distinçâo de regimes em funçâo do tipo de sociedades envolvidas nas Page 17 operaçôes, apesar das mencionadas directivas apenas terem aplicaçâo para as sociedades anónimas.

2. 2 - Ventos de modernizaçâo do direito societário

Em 4 de Novembro de 2002, o grupo de peritos em matéria de direito das sociedades (High Level Group of Company Law Experts), designado em Setembro de 2001 pela Comissâo Europeia, apresentou o relatório "Um quadro regulamentar moderno para o direito das sociedades na Europa", também conhecido por relatório "Winter", por força do apelido do respectivo presidente, Jaap Winter.

Em termos genéricos, o referido relatório veio sugerir a revisâo e simplificaçâo de diversos requisitos e procedimentos exigidos pela Terceira e pela Sexta Directivas, designadamente sempre que a sua aplicaçâo nâo se afigura relevante. Em particular, o relatório propôe a simplificaçâo das garantias de informaçâo prévia desde que respeitado o regime específico de protecçâo dos credores exigido pelas directivas, e a generalizaçâo dos mecanismos de "squeeze-out" no direito societário. O relatório apontou, por fim, que a revisâo das directivas tivesse início a médio prazo, entre 2003 e 2006.

Em resposta ao referido relatório, a Comissâo Europeia dirigiu, em 21 de Maio de 2003, ao Conselho e ao Parlamento Europeu, a comunicaçâo "Modernizar o direito das sociedades e reforçar o governo das sociedades na Uniâo EuropeiaUma estratégia para o futuro" 10, acolhendo as propostas de simplificaçâo futura das operaçôes de fusâo ou cisâo, uma vez asseguradas as salvaguardas necessárias, e o horizonte temporal proposto pelo grupo de peritos. Desconhecemos neste domínio qualquer influência concreta na iniciativa do legislador nacional, ou nas respectivas opçôes normativas.

3 - Escopo da reforma

Distante do contexto internacional onde se jogam e decidem as futuras alteraçôes aos institutos da fusâo e da cisâo, resta-nos apurar se o escopo da reforma excede, em algum aspecto de relevo, a mera política de "desburocratizaçâo".

Infelizmente, a análise e justificaçâo das alteraçôes no preâmbulo do Decreto-lei n.º 76-A/2006, de 29 de Março, mereceu pouca ou nenhuma atençâo do legislador. Já o impacto aguardado nâo foi omitido, como nos reza o preâmbulo: "com as novas regras con tidas neste decreto-lei, bastarâo dois registos na conservatória e duas publicaçôes num sítio na Internet, a efectuar por via electrónica para concretizar uma fusâo ou cisâo. Antes do XVII Governo Constitucional começar a actuar neste domínio, eram necessários três actos de registo nas conservatórias, quatro publicaçôes em papel na 3.ª série do Diário da República, uma escritura pública a celebrar no notário e duas publicaçôes em jornais locais para efectuar uma fusâo ou cisâo".

Sugestivo, certamente. Diríamos mesmo tentador, nâo fosse a ausência de clarificaçâo adicional. Sabemos, apenas, que se modifica "substancialmente o regime da fusâo e cisâo de sociedades, tornando-o muito mais simples e barato [sic]". Vale entâo a pena citar aqui MENEZES CORDEIRO: "este enunciado é eloquente: dispensa glosas. Temos, já aqui, uma reforma de enormes proporçôes" 11.

4 - O "Novo" processo de fusâo/cisâo

Antes da presente reforma, a regulamentaçâo dos processos de fusâo e cisâo manteve-se inalterada desde a publicaçâo do CSC 12, em 1986, com excepcâo de alguns procedimentos ou passos com relevo para o processo de fusâo ou cisâo, que foram objecto de revisâo recente. Concretamente, em matéria de publicidade verificamos que a publicaçâo dos avisos e convocatórias em jornais locais ou na 3.ª série do Diário da República, outrora exigida pelo art. 167.º do CSC, foi recentemente dispensada e substituída por publicaçâo em página na Internet, nos termos do decreto-lei n.º 111/2005, de 8 de Julho 13.

Ja recente reforma concentra-se, em aspectos procedimentais das operaçôes, mantendo, no essencial, a natureza, o escopo e os efeitos das operaçôes (cfr. arts. 97.º, 112.º, e 118.º).

Optámos, assim, por maior conveniência por analisar as alteraçôes introduzidas seguindo a ordem e estrutura do processo de fusâo ou cisâo, abordando Page 18 eventuais questôes de...

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