A diretiva 2012/28/eu e a problemática das obras órfãs

AutorVítor Palmela Fidalgo
Cargo del AutorAgente Oficial de Propriedade Industrial na Inventa International; Mestre pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa; Membro da APDI (Associação Portuguesa de Direito Intelectual)
Páginas193-210

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I Introdução

Desde a chegada da era digital e do seu subsequente desenvolvimento, que a problemática das obras órfás tem sido um tema cada vez mais debatido a nivel internacional. De facto, de um tema quase ignorado no ambiente analógico passou na era digital a ter um interesse substancial, especialmente quando foram anunciados os projetos de digitalizacáo em massa, primeiro com a Google em 20021, que tinha como objetivo o estabelecimento de uma biblioteca digital mundial, e mais tarde, em 2005, com o anuncio da criacáo da biblioteca digital europeia, denominada Europeana.

Efetivamente, com o surgimento da era digital passou a ser possivel fazer uso de forma massiva de obras. Esta oportunidade vislumbrou-se de especial interesse para entidades como bibliotecas, museus ou arquivos nacionais, na medida em que poderiam manter na sua base de dados todo o tipo de obras, abrindo-se desta forma uma janela de oportunidade para a sociedade num todo, num acesso á cultura nunca antes visto2.

Contudo, desde logo se notou que esta janela de oportunidade náo era isenta de desafios. Mais concretamente, o problema colocava-se a respeito de titulares de obras protegidas por direitos de autor que fossem desconhecidos ou náo localizados 3. Naturalmente que o uso das obras pelas entidades suprarreferi-das, nomeadamente a digitalizacáo, reutilizacáo, distribuicáo ou comunicacáo ao público, estaria sujeita ao consentimento por parte dos respetivos titulares dos direitos. Porém, dado o facto de estes titulares serem desconhecidos ou náo localizados, a autorizacáo para o uso das obras náo poderia ser obtida.

Com a consciencializacáo para o problema, iniciou-se o apuramento com base em estatisticas concretas para o número de obras órfás existentes em bibliotecas e noutras entidades públicas. Os dados que foram sendo fornecidos náo deixaram de ser surpreendentes. A titulo de exemplo, segundo a British Library veio a apurar, 40% das suas obras protegidas seriam órfás4. Um número

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tao elevado de obras orlas colocaría naturalmente em risco projetos de digitali-zacao em massa, significando ainda uma perda cultural e económica para a so-ciedade em geral. De facto, nao se conseguindo obter o consentimento do titular da obra, quem a pretenda explorar ficará com duas opcóes: ou utiliza a obra sem o consentimento do titular, podendo incorrer em responsabilidade civil e penal por infracao aos direitos de autor, ou simplesmente abandona o projeto de uti-lizacao da obra, o que representa um bloqueio jurídico artificial á utilizacao de obras protegidas por direitos de autor 5.

Devido a este problema, que em termos económicos consiste numa ver-dadeira falha de mercado, pois nao há qualquer possibilidade de obter o consentimento do titular 6, varias ordens jurídicas trataram de arranjar formas de ultrapassar esta questao.

A Diretiva 20112/28/EU, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de outubro de 2012, é fruto do debate sobre obras órfas que se iniciou á escala internacional. Neste ámbito, teve um especial contributo a iniciativa da Comissao Europeia, que em setembro de 2005, colocou em marcha o projeto "Bibliotecas Digitais", que tinha como objetivo permitir aos cidadaos euro-peus aceder ao seu patrimonio cultural e científico, onde se inseriu a criacao da biblioteca digital europeia já mencionada 7. Desta forma, foi necessário criar instrumentos jurídicos que facilitassem a digitalizacao e disseminacao de obras protegidas por direitos de autor, cujos titulares nao fossem identificados ou localizados, i.e., era necessário um dispositivo jurídico que resolvesse o problema das obras órfas.

Em 2006, a Comissao elaborou uma recomendacao no sentido de os Esta-dos-membros procederem á criacao de mecanismos a nivel nacional que facili-tassem o uso de obras órfas8. Esta recomendacao foi seguida por alguns Esta-dos-membros que, como Franca9, procederam á alteracao das leis que versam sobre direitos de autor, introduzindo a questao das obras órfas 10.

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Nao obstante, em geral foram poucos os Estados-membros que responderán! á solicitacao da recomendacao, o que levou a Comissao a avan9ar para a criacao de um enquadramento comunitario para esta materia. Incumbiu, para o efeito, um Grupo de Peritos de Alto Nivel composto pelas diversas partes inte-ressadas nesta materia, tendo-lhe sido confiada a missao de elaborar um estudo sobre a problemática das obras órfas, incluindo a abordagem de métodos que deveriam ser adotados para resolver esta questao 11.

A 25 de outubro de 2012, foi finalmente aprovada a Diretiva 2012/28/UE, do Parlamento Europeu e do Conselho, relativa a determinadas utilizacóes permitidas de obras órfas. Como refere o parágrafo 3 do preámbulo da Diretiva, esta visa a "criacao de um enquadramento jurídico que facilite a digitalizacao e disseminacao de obras e de outro material protegido por direitos de autor ou direitos conexos, cujo titular de direitos nao foi identificado ou, mesmo quando identificado, nao foi localizado", tendo como objeto "o problema especifico da determinacao legal do estatuto das obras órfas e das suas consequéncias no que se refere aos beneficiarios deste regime e ás utilizacóes permitidas das obras ou fonogramas considerados obras órfas".

Nos termos do art. 9.º, n.º 1, da Diretiva, esta deve ser transposta pelos Estados-membros até dois anos após a entrada em vigor. Neste momento, vários Estados-membros, como Portugal12, Italia 13 ou a Alemanha 14, já transpuseram o dispositivo legal para as suas respectivas ordens juridicas.

No presente estudo, iremos abordar, em primeiro lugar, o que está por detrás da problemática das obras órfas, os modelos sugeridos para a sua resolucao e aquele que foi efetivamente o modelo adotado pela Diretiva. Após este enqua-dramento, iremos analisar em mais pormenor o regime presente na Diretiva, concluindo com as observacóes finais sobre o estudo efetuado.

II As razóes subjacentes ao aparecimento das obras órfás e a relevancia do seu problema

Sao várias as causas que estao por detrás do surgimento das obras órfas. Na realidade, grande parte destas advém do próprio sistema de direitos de autor.

O facto de nao se exigir formalidades para a constituicao do direito de autor é talvez o principal responsável para o surgimento das obras órfas15. Como é

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por demais sabido, para que o direito de autor nasca, nao é necessária qualquer formalidade. Desta forma, apesar de alguns países, como é o caso de Portugal, facultarem a possibilidade de se proceder ao registo do direito de autor, este nao é obrigatório, nem atribui quaisquer outros direitos de gozo ou de exercício ao autor. Neste sentido, já tém sido sugeridas propostas a exigirem o regresso das formalidades para a constituicao de direitos de autor, principalmente por parte da doutrina norte-americana, saudosista deste sistema de registo e depósito obrigatório, que foi abandonado com o Copyright Act em 1976. Contudo, a imposicao de formalidades á constituicao dos direitos de autor nao se vislumbra possível á luz do que é estipulado no art. 5..º, n..º 2, da Convencao de Berna, que é claro ao referir que o "gozo e o exercício destes direitos nao estao subordinados a qualquer formalidade".

O elevado tempo de duracao dos direitos de autor é também uma circunstancia que contribui para o surgimento de obras órfas em massa16. Ao caducar setenta anos após a morte do criador intelectual, esta longa duracao torna ainda mais árdua a tarefa de encontrar os titulares dos direitos que, á data da pesquisa, poderao ser vários.

III As solucóes apresentadas para a tutela da problemática das obras órfás. a solucáo adotada pela Diretiva 2012/28/EU

Desde o aparecimento da era digital que o problema das obras órfas tem sido cada vez mais debatido. Antes da entrada em vigor da Diretiva foram apresenta-dos diversos modelos tendo como objetivo solucionar este problema, sendo que muitos destes instrumentos já eram vigentes em determinadas ordens jurídicas.

Em geral, para a tutela das obras órfas foram apresentadas as seguintes solucóes:

a) Concessao de licencas compulsorias;

b) Limitacao da responsabilidade civil;

c) Gestao coletiva extensiva ou alargada;

d) Utilizacao da cláusula geral do Fair Use; d) Limitacao ou excecao aos direitos de autor.

Vejamos cada um destes modelos em mais pormenor.

1. A concessão de licenças compulsórias sobre obras órfãs

Umas das solucóes apresentadas para resolucao do problema das obras órfas foi a previsao de um regime de licencas compulsórias. Tipicamente, as licencas

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compulsorias sao licencas nao exclusivas concedidas por entidades administrativas e/ou judiciais, que estabelecem as suas condicóes e estipulam uma remuneracao a favor do titular do direito17. Estas sao hoje em dia previstas para as obras órfas em algumas ordens jurídicas, tal como a canadiana18, a indiana19 ou a japonesa20.

De acordo com este regime, após uma busca...

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