O direito penal e as minorias religiosas hoasqueiras (ayahuasqueiras) na Espanha: comentários à decisão judicial da 4ª seção da audiência provincial de Valência, processo n. 46250370042016100256

AutorAndré Fagundes
Cargo del AutorUniversidade de Coimbra, Portugal
Páginas93-110
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O DIREITO PENAL E AS MINORIAS RELIGIOSAS
HOASQUEIRAS (AYAHUASQUEIRAS) NA ESPANHA:
COMENTÁRIOS À DECISÃO JUDICIAL DA 4ª SEÇÃO DA
AUDIÊNCIA PROVINCIAL DE VALÊNCIA, PROCESSO N.
46250370042016100256
André Fagundes
Universidade de Coimbra, Portugal
Breve síntese do caso
O presente trabalho tem como objeto a análise da decisão judicial julgada em 23/02/2016
pela 4ª Seção da Audiência Provincial de Valência, Espanha, de relatoria do magistrado
José Manuel Megia Carmona (Proc. nº 46250370042016100256).
O caso envolve a acusação contra um brasileiro que, no dia 18/01/2013, por volta das
20h15, chegou de São Paulo no aeroporto de Manises (Espanha) carregando uma mala
contendo aproximadamente 20 litros do chá Hoasca (também denominado Vegetal e
popularmente conhecido como Ayahuasca ou Daime), para ser utilizado como
sacramento religioso pelos membros do Centro Espírita Beneficente União do Vegetal
(UDV) - Núcleo Imaculada Concepción.
1
A UDV é uma confissão religiosa com origens na Floresta Amazônica brasileira de
fundamentação cristã-reencarnacionista e está devidamente inscrita no Registro de
Entidades Religiosas na Espanha. Em seus rituais, os adeptos
2
comungam o chá Hoasca
para alcançarem um estado de concentração mental, servindo como veículo de
autoconhecimento e ligação com o Sagrado.
3
O seu uso sacramental, que está no cerne da
crença religiosa, ocorre durante uma sessão com quatro horas de duração, realizada dentro
de um templo espírita sob a direção de um Mestre, que é responsável em transmitir a
doutrina e os ensinamentos trazidos por José Gabriel da Costa, um seringueiro criador da
instituição, considerado pelos membros como guia espiritual, Mestre Gabriel (Fagundes,
2019:02).
Conforme consta nos autos, o réu reside legalmente na Espanha e não possui
antecedentes criminais. Com a realização de exames no material, foi encontrado
dimetiltriptamina (DMT), uma substância psicoativa relacionada na Lista I da Convenção
1
A União do Vegetal distingue-se do espiritismo por não realizar ‘trabalhos’ com espíritos desencarnados,
tais como incorporação, psicografia e passes.
2
Os membros da UDV são chamados de sócios, pois podem participar da gerência administrativa dos
Núcleos, local onde se congregam os filiados.
3
Cfr. Ritual. Disponível em na-uniao-do-vegetal/>. [15 nov. 2018].
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sobre Substâncias Psicotrópicas de 1971 e proscrita na Espanha. Por conta disso, o
Ministério Público espanhol imputou a prática de crime contra a saúde pública, previsto
em conjunto com artigos 374
ambos do Código Penal, solicitando
a condenação de 5 anos de prisão, a perda do direito de concorrer às eleições
[inhabilitación especial], e multa de até 3 vezes o valor da substância com
responsabilidade pessoal de 180 dias em caso de falta de pagamento, além do pagamento
das custas judiciais.
Na apreciação do caso, o Tribunal absolveu o réu com base no princípio da presunção
de inocência, haja vista que não ficou comprovado que ele sabia ou poderia saber, com
um grau [probabilidad rayana] de certeza, um dos elementos típicos essenciais do crime
a ele imputado, ou seja, que um dos componentes do cHoasca era uma substância
proibida pela Convenção de Viena, capaz de causar graves danos à saúde.
Da (não) incidência da Convenção sobre Substâncias Psicotrópicas ao chá Hoasca
O ponto fulcral para resolução da questão consiste em saber se a Convenção sobre
Substâncias Psicotrópicas de 1971 incorporada ao ordenamento jurídico espanhol
através da edição do Real Decreto 2829/1977 -, aplica-se ou não ao chá Hoasca.
Isto porque o Vegetal, utilizado nos rituais religiosos da UDV, é feito a partir da
decocção da parte lenhosa do cipó mariri (Banisteriopsis caapi) com as folhas do arbusto
chacrona (Psychotria viridis), e tais folhas contêm dimetiltriptamina (DMT) que, como
mencionado, é uma substância psicotrópica listada pela Convenção.
Tal Convenção, além de relacionar diversas substâncias como controladas, estipula
que “um preparado está sujeito às mesmas medidas de controle que a substância
psicotrópica nele contida, definindo preparado como qualquer solução ou mistura, em
qualquer estado físico, que contenha uma ou mais substâncias psicotrópicas.
Por conta do conceito abrangente do termo preparado, tem sido comum a confusão por
parte dos Estados e dos tribunais em relação à aplicação da Convenção sobre Substâncias
4
Artículo 368. Los que ejecuten actos de cultivo, elaboración o tráfico, o de otro modo promuevan,
favorezcan o faciliten el consumo ilegal de drogas tó xicas, estupefacientes o sustancias psicotrópicas, o
las posean con aquellos fines, serán castigados con las p enas de prisión de tres a seis años y multa del
tanto al triplo del valor de la droga objeto del d elito si se tratare de sustancias o productos que causen
grave daño a la salud, y de prisión de uno a tres años y multa del tanto al duplo en los demás casos. No
obstante lo dispuesto en el párrafo anterior, lo s tribunales podrán imponer la pena inferior en grado a las
señaladas en atención a la escas a entidad del hecho y a las circunstancias personales del culpab le. No se
podrá hacer u so de esta facultad si concurriere algu na de las circunstancias a que se hace referencia en
los artículos 369 bis y 370.
5
Ar tículo 374. En los delitos previstos en el párrafo segundo del apartado 1 del artículo 301 y en los
artículos 368 a 372, además de las penas que corresponda imponer por el delito cometido, serán objeto
de decomiso las drogas tóxicas, estupefacientes o sustancias psicotrópicas, los equipos, materiales y
sustancias a que se refiere el artículo 371, así como los bienes, m edios, instrumentos y ganancias con
sujeción a lo dispuesto en los artículos 127 a 128 y a las siguientes normas especiales:
1.ª Una vez firme la sentencia, se procederá a la destrucción de las muestras que se hubieran apartad o, o a
la destrucción de la totalidad de lo incautado, en el caso de que el ór gano judicial competente hubiera
ordenado su conservación.
2.ª Los bienes, medios, instrumentos y ganancias definitivamente decomisados por sentencia, que no podrán
ser aplicados a la satisfacción de las responsabilidades civiles derivadas del delito ni de las costas
procesales, serán adjudicados íntegramente al Estado.
6
Artículo 377. Para la determinación de la cuantía de las multas que se impongan en aplicación de los
artículos 368 al 372, el valo r de la droga objeto del delito o de los géneros o efec tos intervenidos será el
precio final del producto o, en su caso, la recompensa o ganancia obtenida por el reo, o que hubiera podido
obtener.

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