Direito linguístico de Macau

AutorPedro Pereira
CargoJurista
Páginas125-144

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1. Introdução

No* ordenamento jurídico de Macau,1 o direito linguístico, enquanto ramo do direito positivo que estuda o conjunto sistemático de normas e princípios jurídicos relativos às línguas, é caracterizado pela dispersão normativa, pela heterogeneidade das fontes e, não raras vezes, pela incongruência dos seus comandos. O seu conteúdo foi sendo construído ao sabor das necessidades sentidas na implementação dos modelos de oficialidade experimentados no Território, não tendo existido a consciência de que de um ramo autónomo de direito se tratava, com prejuízo da harmonização sistemática e valorativa das diferentes normas que o compõem. Tais normas sempre foram vistas como normas avulsas capazesPage 126de responder aos compromissos políticos e diplomáticos assumidos, ignorando-se muitas das vezes a sua importância na esfera mais íntima dos indivíduos e a interdisciplinaridade com outros ramos do direito, como o civil, o processual ou o administrativo, entre outros.

Por certo que a opção por uma determinada política linguística revela os valores fundamentais dos Estados e resulta de compromissos que ultrapassam a mera esfera jurídica. Isso é notório na maneira tradicional de o poder político encarar a língua e a política a ela respeitante, onde são vistas como instrumentos de consolidação de identidades nacionais forçadas ou de difícil sustentação. O papel unificador do russo na União Soviética, das línguas europeias próprias das potências coloniais nos países africanos surgidos do processo de descolonização, do hindi no mosaico cultural da índia ou do putonghua na China, são exemplos úteis na demonstração da referida abordagem tradicional das questões linguísticas, da relevância política que uma língua pode ter e do carácter intrinsecamente não-neutral de qualquer política nesta área. «Os direitos linguísticos devem ser respeitados se se quer ter paz interna».2 O conselho, sob a forma de aviso, assume particular importância em Estados ou territórios que não gozam de unidade cultural, étnica ou linguística. É neste ambiente que se propiciam as condições para a existência de conflito de carácter linguístico, declarados ou potenciais, que passam muitas das vezes pela tentativa de hegemoni-zação das línguas maioritárias ou politicamente dominantes e para a assunção do direito linguístico como instrumento de intervenção política.

Por outro lado, em países onde a questão linguística se apresenta como elemento estruturante do próprio Estado, como o Canadá, a Bélgica, Singapura ou Espanha, têm sido percorridos caminhos no sentido da valorização da diversidade linguística, com a consagração de um vasto leque de direitos e deveres de carácter linguístico.

No direito linguístico podem descortinar-se dois eixos fundamentais: um vertical, relativo às fontes normativas, que apresenta normas com relevância para este ramo do direito da mais variada proveniência, com destaque natural para os direitos internacional e constitucional. A importância do contributo destes dois ramos do direito, em razão da quantidade de normas deles emanadas e, sobretudo, da relevância dos princípios delas vertidos, colocam o direito linguístico numa posição ímpar no que à dignidade das suas fontes diz respeito. O segundo eixo atravessa horizontalmente um conjunto de matérias que vão desde a protecção das minorias étnicas até aoPage 127estatuto de oficialidade atribuído a uma ou mais línguas, passando pelo direito individual de determinação linguística ou pela valorização da diversidade linguística como património cultural, entre outros. Na convergência destes dois eixos, como elemento nuclear, situa-se o indivíduo, ao serviço do qual se deve perspectivar, em primeiro lugar, o direito linguístico enquanto ramo do saber jurídico.

Os direitos linguísticos tendem a ser vistos como direitos fundamentais baseados em compromissos políticos.3 Esta natureza estará apta a explicar um paradoxo característico do direito linguístico: estando os seus princípios fundamentais claramente determinados através dos principais instrumentos de direito internacional, maxime, a Declaração Universal dos Direitos do Homem, a densificação normativa desses princípios carece de homogeneidade, mostrando-se influenciada pelas condições político-culturais de cada Estado. Que ninguém possa ser discriminado em razão da língua, parece fazer parte do património comum da comunidade jurídica internacional; contudo, as soluções para as questões da protecção a dar a um dialecto (ainda que tenha milhões de falantes, como o cantonense na China) ou da possibilidade de escolha da língua veicular do ensino, concretizações do princípio da não discriminação antes enunciado, variam no espaço e no tempo. Ao direito linguístico cabe estudar, numa perspectiva comparativa, as múltiplas soluções encontradas e, num trabalho de depuração, seleccionar os elementos úteis à ciência do direito.

2. Direito interno: caracterização normativa e modelos de oficialidade
a) Monolinguismo colonial

Até ao início da década de noventa do século xx, a política linguística de Macau foi marcada por um absoluto monolinguismo oficial, ao qual correspondeu, consoante as épocas e as políticas coloniais da metrópole, um monolinguismo, ou um bilinguismo disjuntivo, jurídicos.4 Sem nunca se terPage 128proclamado o português como língua oficial de Macau, a legislação que foi sendo produzida destinava-se a reforçar o estatuto desta língua ou, a título de excepção, a fazer concessões ao uso da língua chinesa. A tendência notada para um «crescendo de coercividade e endurecimento legislativo em relação à língua portuguesa»,5 na razão inversa da perda de prestígio social do português, resultou num considerável volume legislativo impositivo da supremacia da língua oficial, pondo fim a uma postura não interventiva e desreguladora típica dos primeiros séculos de domínio português em Macau, nomeada, na feliz expressão de António Aresta,6 de maiêutica do silêncio. A proibição de utilização do chinês nos actos processuais,7 nas relações administrativas (v.g., nos concursos públicos de empreitadas de obras públicas),8 nas comunicações entre o Governo, as repartições do Estado, entidades oficiais e corpos administrativos e as sociedades concessionárias do Estado,9 ou na escrita comercial destas mesmas sociedades concessionárias,10 é demonstrativa de uma certa unidade valorativa do direito linguístico na fase do monolinguismo oficial.

A adopção de medidas de força tendentes a contrariar o resultado natural da concorrência interlinguística, conduziram a uma depuração do conceito de língua oficial. Apesar de algumas tentativas no sentido de incentivar o ensino e promover o valor social do português, este confinou-se a ser a língua do governo (rectius, da governação). O conceito de língua oficial —língua proclamada como forma de exteriorização da vontade do Estado e demais entes públicos e meio de comunicação entre estes e o público-11 ficou indissociavelmente ligado ao papel exercido por Portugal enquanto potência colonial. Procurando outras experiências comparáveis, não seráPage 129fácil encontrar casos demonstrativos de um tão pesado formalismo do conceito de língua oficial. Nem mesmo o colonialismo africano, português ou outro, onde a língua oficial tinha uma função unificadora, fornece casos de uma separação tão radical entre a língua política e a língua cultural. Em geral, há uma tendência para uma sobreposição, em maior ou menor escala, entre estas duas realidades, havendo situações, como a de Portugal, em que a identidade existente entre estas duas vertentes conduz à sua difícil distinção, à redução do papel teórico do conceito de língua oficial e à desnecessidade de intervenção legislativa determinativa da língua oficial do Estado. Noutras situações, porém, foi sentida a necessidade de distinção entre este conceito, puramente formal, e outros de cariz histórico-cultural, mais profundos e ricos, contrapondo-se, então, os conceitos de língua oficial e de língua nacional, não existindo coincidência entre elas.12

Aplicando estes conceitos à realidade de Macau, o português, utilizado apenas por uma reduzida minoria de falantes, limitou-se a ser a língua utilizada nos órgãos de governo e nos tribunais, sendo a única língua legislativa, ou seja, a única a ser empregue na publicação das leis. Desta forma, ficou clara a separação entre a língua oficial, o português, e a língua nacional, o chinês. A redução do português à oficialidade e a cristalização do distanciamento entre o público e o privado, entre a lei e a população destinatária, levou a que o ordenamento jurídico de Macau, ainda que assistisse à aplicação de algum direito em língua chinesa,13 fosse basicamente monolingue. A língua da lei, aquela que serve de suporte de exteriorização às regras jurídicas formais, como elemento modelador do próprio sistema jurídico,14 leva a tal classificação.

b) Bilinguistno paritário

À fase de monolinguismo oficial, sobreveio o actual período em que coexistem duas línguas oficiais. O Decreto-Lei n° 455/91, de 31 de Dezembro, que declara que a língua chinesa tem em Macau estatuto oficial e a mesma força legal que a língua portuguesa, é um ponto de viragem radical na política e no direito linguísticos de Macau.

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O modelo de oficialidade adoptado é resultado da alteração do estatuto político-administrativo do Território, respondendo a uma necessidade de alteração do status quo sentida no início do período de transição e condicionada pelos termos da Declaração Conjunta Luso-Chinesa sobre a Questão de Macau15 (parágrafo 2o da alínea 5 do n° 2).16 Em rigor, tal alteração não seria necessária. Possível seria conceber o período de transição sustentado no monolinguismo oficiai (em simultâneo com um trabalho de divulgação do direito em língua chinesa similar ao que foi praticado ao abrigo do Decreto-Lei n° 11/89/M,17 de 20 de Fevereiro), com a substituição da língua oficial aquando da transferência de soberania. Ou prever um bilinguismo oficial mitigado, com prevalência de uma das línguas oficiais — o português antes de 1999, o chinês depois — conjugando, desta forma, o simbolismo político do bilinguismo e a concordância com a realidade local, assumindo a história de Macau. Não foi nenhuma destas a opção do legislador português. Se os termos ambíguos da Declaração Conjunta permitiam subsequentemente implementar o modelo de bilinguismo mitigado, os termos categóricos do Decreto-Lei n° 455/91, de 31 de Dezembro, demonstram uma opção clara por um modelo de co-oficialidade absoluta, i.e., paritária, com alteração da função atribuída à política linguística. Se até então a língua tinha sido vista como um instrumento de dominação política,18 com a atribuição do estatuto de oficialidade à língua chinesa encara-se esta questão numa perspectiva de igualdade.

Em primeiro lugar, uma igualdade de estatuto. A língua chinesa assume em Macau, ainda durante o período de administração portuguesa, o peso político de ser uma língua oficial. Consequentemente, a junção da sua natureza de língua nacional à dimensão formal da oficialidade resulta num redimensionamento da importância do chinês no panorama político-linguístico do Território. Pela primeira vez existe concordância entre as duas esferas; sendo que a oficialidade do português é justificada pelo papel histórico desempenhado por Portugal como potência administrante e a ofi-Page 131cialidade do chinês justificada pela necessária expressão dos elementos cultural e demográfico ao nível da língua da lei.

Em segundo lugar, igualdade quanto à força legal. A oficialização da língua chinesa não é uma mera proclamação política; se o fosse, a sua importância seria relativa. Em termos jurídicos é determinante a previsão de igualdade de força legal e as suas consequências. Por força legal deve entender-se a susceptibilidade de os actos jurídicos terem expressão através de qualquer das línguas oficiais, não actuando a língua como elemento formal desses actos, ou seja, como requisito de validade ou eficácia jurídica.19 Consequentemente, ao cidadão é dada a possibilidade de opção por uma das línguas oficiais na prática de actos jurídicos, sendo ele a determinar qual delas melhor protege os seus interesses e direitos. Consequentemente, a lei formal tem de ter expressão nas duas línguas oficiais pois só assim é assegurada a efectiva liberdade de eleição por uma dessas línguas na produção de actos jurídicos. Desta forma, a comunidade local assiste a uma democratização do direito, decorrente da entrada em vigor do Decreto-Lei n° 455/91, de 31 de Dezembro. O acesso ao direito escrito deixa de ser um privilégio de uma minoria, passando aquele a estar disponível para ser eficazmente invocado por qualquer intérprete-aplicador. Este, só a partir da oficialização da língua chinesa pode, com segurança e certeza, utilizar as versões da lei publicadas naquela língua, ao mesmo tempo que passa a poder exigir uma postura activa por parte da administração na defesa do direito de utilização do chinês nas três áreas abrangidas pelo estatuto da oficialidade — legislativo, executivo e judicial.

Este aspecto não é inteiramente novo. Já desde a publicação do Decreto-Lei n° 11/89/M, de 20 de Fevereiro, que existia a obrigatoriedade legal de publicar a legislação do Território em português (então a única língua oficial) e em chinês. Contudo, as versões nesta língua eram expressamente classificadas como traduções, tendo, portanto, um estatuto de inferioridade face às versões em português, as únicas com carácter autêntico. Vivendo-se ainda no período de monolinguismo oficial, a prevalência da versão portuguesa dos actos normativos era assumida e proclamada, prevendo-se a possibilidade de dispensa, ainda que a título excepcional, das versões em língua chinesa. Este diploma, de particular importância dado o seu carácter inovador no ordenamento jurídico local, e que resultou dos compromissos internacionais assumidos pelo Estado Português aquando da assinatura daPage 132Declaração Conjunta, veio alterar o panorama jurídico-linguístico de Macau. O poder político, mantendo o monolinguismo oficial, tentou adaptar o ordenamento jurídico à realidade local e à evolução política esperada: estes são os aspectos essenciais e os únicos realçados no preâmbulo do diploma. Neste quadro, as excepções de publicação, a natureza não autêntica do texto em chinês e a prevalência da versão em língua portuguesa em caso de dúvida são profundamente coerentes e justificadas. A vontade política foi limitada, não exigindo a Declaração Conjunta mais que a efectivação gradual e progressiva da igualdade de estatutos, de harmonia com as condições existentes para o efeito (artigo 3° do Decreto-Lei n° 11/89/M, de 20 de Fevereiro). O legislador considerou, legitimamente, que as condições do momento não permitiam ir mais além.

O diploma em análise inova noutros aspectos. No âmbito da actividade administrativa, cessaram os privilégios atribuídos à língua portuguesa. A partir da sua entrada em vigor, a comunicação entre os administrados e a administração passou a efectuar-se indiferentemente em qualquer das duas línguas, consoante a determinação do particular. Em sentido inverso, ou seja, relativamente aos actos praticados por iniciativa da administração, apenas se consagrou o bilinguismo nos impressos, formulários c documentos análogos editados pelos serviços públicos. Quanto à língua dos próprios actos administrativos, o diploma era omisso, sendo válida a prevalência natural do português enquanto única língua oficial. Em nossa opinião, o n° 1 do artigo T do Decreto-Lei nc 11/89/M, de 20 de Fevereiro, apenas regulava o poder determinativo da língua em actos da iniciativa do particular, dando a possibilidade ao cidadão de se dirigir a qualquer serviço de natureza pública em língua portuguesa ou chinesa, e receber resposta na língua da sua eleição.

Ainda no âmbito administrativo situamos a norma constante do n°3 do artigo 2°. Esta, ao prever que ficava na dependência de despacho do Governador a aplicação aos tribunais das normas sobre a actividade administrativa, não pretendia, nem podia pretender, regular a utilização da língua chinesa em juízo. A sua vocação era tão-só dispor sobre a actividade de natureza administrativa praticada pelos tribunais. «Os tribunais desenvolvem uma actividade burocrática administrativa de atenção ao cidadão que é perfeitamente equiparável à que desenvolve a Administração em geral, à actividade de serviço público normal e corrente, à actividade burocrática da Administração».20 Numa leitura sistemática e teleológica do preceito sóPage 133podemos concluir que é esta actividade administrativa exercida pelos tribunais que recaía no âmbito de previsão da norma constante do n° 3 do artigo 2o.

A isenção do universo judicial às regras de tendencial equiparação de estatutos entre as duas línguas resultava deste decreto-lei por omissão. Não houve vontade política para alargar a igualdade entre as duas línguas aos tribunais no exercício da sua função jurisdicional. Nem esse alargamento poderia estar dependente de despacho do Governador, dado que a matéria relativa à língua dos actos processuais estava regulada nos diferentes códigos de processo, num exclusivo e inexpugnável domínio da língua portuguesa.

Pela análise do regime constante do Decreto-Lei n° 11/89/M, de 20 de Fevereiro, é perceptível o seu âmbito limitado e as razões pelas quais afirmamos que a democratização do direito só se verificou mais tarde, aquando da atribuição do estatuto de língua oficial ao chinês, num modelo de bi-linguismo oficial paritário.

O compromisso alcançado com o regime constante do Decreto-Lei n° 11/89/M, de 20 de Fevereiro, foi profundamente afectado com a publicação do diploma de 1991. Inaugurada uma nova era, a do bilinguismo oficial, e proclamada a igualdade de força legal entre as duas línguas oficiais do Território, deixaram de ter razão de ser as precauções demonstradas pelo legislador de 1989. Ainda que o preâmbulo do Decreto-Lei n° 455/91, de 31 de Dezembro (emanado de um órgão legislativo de Portugal, recorde-se), remeta para os órgãos de governo próprio do território de Macau o aprofundamento das condições para que o estatuto oficial da língua chinesa seja gradual e progressivamente concretizado nos domínios administrativo, legislativo e judiciário, a igualdade de força legal não pode ser diminuída. Ao contrário do defendido por Eduardo Cabrita,21 o alargamento da oficialidade à língua chinesa alterou a situação pré-existente, derrogando grande parte do regime de 1989. Ou seja, o estatuto de menoridade do chinês deixa de ter cabimento legal, deixando de vigorar a possibilidade de dispensa de publicação da versão chinesa de um acto normativo, a natureza informativa resultante da qualidade de mera tradução dessas mesmas versões, a possibilidade de prevalência da versão portuguesa apenas em razão da língua22, a dilação da aplicação das regras de equiparação de estatutos ao labor de na-Page 134tureza administrativa dos tribunais e o monolinguismo pré-determinado dos actos processuais. Desde então a igualdade existe; em que termos, é o que cumpre ainda aos órgãos de governo próprio do Território determinar. Uma «ilegalidade por omissão» não pode ser razão justificativa para negar o princípio fundamental do bilinguismo oficial vigente no Território: não estabelecendo a lei qualquer hierarquia entre as línguas oficiais, o bilinguismo oficial terá de assentar nas ideias de igualdade e de reciprocidade. «O conceito de oficialidade tem de ser exactamente o mesmo para todas as línguas oficiais e, portanto, não pode haver uma língua mais oficial que as outras»,23 sob pena de estarmos perante «uma discriminação inadmissível e uma não igualdade, senão da co-oficialidade, pelo menos da dupla oficialidade, que por nenhuma razão podia ser admitida».24

As consequências da atribuição do estatuto de oficialidade à língua chinesa ao nível da renovação do corpo legislativo que compõe o direito linguístico do Território foram diminutas. Para além de um importante conjunto de diplomas reguladores do bilinguismo administrativo, que passa essencialmente pela definição das condições de ingresso e acesso na Função Pública (com especial destaque para a Lei n° 5/90/M, de 50 de Julho, e respectiva legislação complementar), e da implementação de uma estrutura de tradução legislativa, não se assistiu ainda ao processo, difícil mas estimulante, de adaptação do ordenamento jurídico de Macau à nova realidade do bilinguismo oficial e suas decorrências, não existindo nenhum diploma codificador das principais normas do direito linguístico de Macau. Recorde-se, a título de exemplo, que, inexplicavelmente, o Código de Procedimento Administrativo, publicado após o início de vigência do Decre-to-Lei n° 455/91, de 31 de Dezembro, não contém qualquer norma respeitante às línguas oficiais e sua utilização no procedimento.25

A questão da determinação do modelo de oficialidade linguística para a Região Administrativa Especial de Macau26 continua em aberto. Ou me-Page 135lhor, depende, em geral, da permanência do ordenamento jurídico e, em particular, da permanência da legislação que venha a ser produzida pelos órgãos de governo próprio de Macau regulamentadora do Decreto-Lei n° 455/91, de 31 de Dezembro. Neste aspecto, a República Popular da China apenas está vinculada, nos termos do direito internacional, a manter o português como língua oficial da Região Administrativa Especial de Macau, o que já está consagrado pelo artigo 9o da futura Lei Básica.27 Relativamente ao modelo de bilinguismo acolhido pelo referido artigo 9°,28 repete-se o que se disse a propósito da Declaração Conjunta: todos os modelos de bilinguismo são possíveis. Os dois diplomas são idênticos. Se a Lei Básica inclui a referência expressa à qualidade de língua oficial atribuída ao português, não faz mais que nomear aquilo a que a Declaração Conjunta refere como língua «utilizada nos organismos do Governo, no órgão legislativo e nos Tribunais». Vimos, aquando da apresentação do conceito de língua oficial, supra, que este é subsumível à realidade retratada no texto do instrumento internacional assinado por Portugal e pela China. Se diferença existe entre a maneira como os dois países concretizaram esse comando livremente assumido, ela situa-se no campo das opções político-diplomáti-cas, sendo como tal de respeitar. No entanto, pode-se já realçar o superior valor formal da futura Lei Básica, diploma de natureza constitucional, face a um decreto-lei de Portugal de duvidosa vigência após a transferência de soberania. Bem como o facto de que está desde já assegurada a maior dignidade que a determinação do modelo de oficialidade adquirirá com a entrada em vigor da Lei Básica. Relativamente à proclamação das línguas oficiais do Território, o Estatuto Orgânico de Macau29 apresenta como resposta o silêncio, que podia ser justificado aquando da sua redacção original, mas que já não o será após a adopção do bilinguismo oficial. A língua, enquanto elemento estruturante dos edifícios jurídico e político, merecia tratamento a nível do diploma fundamental do Território.

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3. Direito internacional e conformação do ordenamento jurídico local

A Declaração Universal dos Direitos do Homem (à semelhança do artigo 1o da Carta das Nações Unidas) consagra o princípio da igualdade em razão da língua. É porque todos os seres humanos nascem iguais em dignidade e em direitos que não podem ser discriminados por razões Linguísticas, Contudo, a referência constante da Declaração não deixa de ser adjectiva do exercício de outros direitos nela consagrados. A liberdade de expressão (artigo 19°) ou a liberdade de escolha da educação (n° 3 do artigo 26°) devem ser vistas como os verdadeiros núcleos de protecção no articulado da Declaração, ao serviço dos quais o princípio da igualdade, mormente, da igualdade linguística, se encontra previsto. Sem retirar a importância que este texto de direito internacional tem para o direito linguístico, não deixa de ser esclarecedor o carácter limitado das suas previsões nesta matéria. A Declaração Universal dos Direitos do Homem não manifesta ainda uma consciência global para a total dimensão do direito linguístico, omitindo aspectos essenciais como, por exemplo, o direito, tanto individual como colectivo, a usar a língua própria. Dos três conceitos fundamentais na área dos direitos humanos —igualdade, não-discriminação e auto-determinação— o acento tónico está colocado no aspecto negativo da não-discriminação, sendo sem dúvida o mais fácil de proclamar sem necessidade de qualquer actuação específica ou concretização legal.

Mais expressivo é o Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos.30 Este apresenta-se como um instrumento determinante na construção doutrinária dos direitos linguísticos como direitos humanos, uma vez que é o primeiro diploma que consagra esses direitos numa perspectiva conceptualmente tri-dimensional. Em primeiro lugar, reafirma o princípio da igualdade e aprofunda a proibição de discriminação em razão da língua (vide n° 1 do artigo 2° e n° 1 do artigo 4o). Mesmo nesta matéria, já abrangida pela Declaração Universal, o Pacto é inovador dado que são retiradas as necessárias decorrências lógicas de tais princípios, como sejam a protecção de natureza linguística dada ao indivíduo em juízo [alíneas a) e f) do n° 3 do artigo 14o], assegurando-lhe que não é prejudicado por causa da língua que fala {ou não fala), ou a protecção autónoma dispensada à criança em matéria dos seus direitos linguísticos (n° 1 do artigo 24°). OsPage 137termos em que o Pacto está redigido, permitem reconhecer ao artigo 14° uma verdadeira vocação concretizadora dos princípios, susceptível de integrar as ordens jurídicas internas que não contenham regulamentação nesta matéria ou quando tal regulamentação seja insuficiente para defesa e salvaguarda dos fins das normas em causa.

A função de garantia que o Pacto assume leva a que tais direitos tenham como sujeitos os indivíduos, outorgando-lhes a título individual direitos subjectivos de natureza linguística, vinculativos quer para o poder público, quer para os particulares. Neste aspecto, se a evolução desde a Declaração Universal dos Direitos do Homem é sensível, ela não deixa de reflectir uma visão tradicional destes direitos, expressa na aparente recusa em considerar entidades colectivas como titulares de direitos linguísticos.31 Na verdade, o artigo 27° do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos atribui às pessoas pertencentes a minorias linguísticas, nos Estados em que essas minorias existam, a garantia de não serem privadas do direito de empregar a sua própria língua, sendo explícito que são os falantes das línguas minoritárias, individualmente considerados, os titulares do direito. Reconhece-se hoje, no entanto, que a leitura individualista do artigo 27° é redutora, uma vez que ignora a dimensão social do homem. Este, ainda que sujeito de direitos individuais, deve ser encarado numa dimensão mais lata, perspectivando-se então a língua como um elemento essencial da sua personalidade e da sua expressão comunitária. Consequentemente, o artigo 27° do Pacto deve ser interpretado como contendo a génese de um direito colectivo que tem como sujeito as próprias minorias étnicas ou, em termos gerais, os povos. A nuance parece de somenos importância, mas não o é. Encarados os direitos linguísticos também como direitos colectivos, reforça-se a sua protecção face a intervenções abusivas por parte do Estado ou da maioria linguisticamente dominante. Já não é só o indivíduo, isolado, que faz valer o direito que lhe é reconhecido e atribuído, é um ente cultural, representativamente organizado ou não, que passa a ter legitimidade para fazer valer os seus direitos. Não será por acaso que a construção doutrinária em torno da vertente colectiva dos direitos linguísticos surge com maior desenvolvimento em comunidades com fortes sentimentos nacionalistas inseridas em ambientes políticos, e político-linguísticos, de alguma forma hostis, como são os casos da Catalunha, em Espanha, ou do Quebeque, no Canadá.

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Com esta nova vertente atribuída aos direitos linguísticos32 (com grande expressão ao nível de textos de direito internacional regional europeu), consegue-se fechar um círculo, ou seja, partindo-se das dimensões da igualdade e da não discriminação, consegue-se chegar à dimensão da auto-de-terminação, i.e., à vertente positiva da conservação da identidade linguística dos povos e dos cidadãos. Esta é de fundamental importância para a concepção moderna de direitos humanos e determinante para a subsunçao a estes dos direitos linguísticos. Assim, faz juridicamente sentido dizer, com Aureli Argemí, «a minha maneira de me tornar universal é afirmar-me, individual e colectivamente, na minha própria língua».33

Ainda no âmbito do direito internacional, digamos potencial, situa-se a Declaração Universal dos Direitos Linguísticos.34 Aprovado por um conjunto de instituições e organizações não-governamentais, em Junho de 1996, e apresentado às Nações Unidas, sob a forma de proposta para aprovação, este documento apresenta-se como um elenco minucioso da multiplicidade de aspectos relacionados com os direitos linguísticos. Tendo como princípio que «o universalismo deve ser baseado numa concepção de diversidade cultural e linguística», e assumindo explicitamente a natureza, em simultâneo, individual e colectiva dos direitos em causa, a Declaração centra a sua atenção nas relações entre línguas dominadas (regionais, minoritárias ou de alguma forma ameaçadas) e línguas dominantes, no pressuposto da sua igualdade e independentemente do seu estatuto legal (artigo 5o). Desvaloriza-se, portanto, o conceito de língua oficial, tentando-se até combater eventuais atropelos aos direitos linguísticos cometidos em nome do papel reforçado atribuído às línguas detentoras do estatuto de oficialidade. Sem esquecer, porém, que a atribuição do estatuto de oficial a uma ou mais línguas é, por si só, uma desigualdade entre línguas legalmente admitida.35

Carecendo de juridicidade, a Declaração Universal dos Direitos Linguísticos não deixa de ser um espelho do moderno sentido do direito lin-Page 139guístico, da sua vocação internacional e do caminho percorrido nas últimas décadas no sentido da garantia efectiva dos direitos linguísticos. De certa forma, a Declaração poderá ser já hoje, e independentemente da sua aprovação futura no seio das Nações Unidas, um texto conformador das opções legislativas ordinárias nos países e territórios carecidos de regulamentação nesta matéria, particularmente em Macau.

4. Conclusão

O bilinguismo oficial constitui um quadro singular no âmbito do exercício de funções legislativas, administrativas ou judiciais que Portugal alguma vez exerceu em qualquer outro tempo ou lugar; é uma situação em que, por tentativa e erro, se vai aprendendo e trilhando caminhos nunca pisados, pesem embora as experiências semelhantes mais ou menos próximas. Tudo porque, num dado momento histórico, Portugal e a China se entenderam e decidiram que, neste pequeno território do Extremo Oriente, as línguas portuguesa e chinesa seriam ambas línguas oficiais

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Apresentámos os principais diplomas conformadores do direito linguístico de Macau. Supomos ser perceptível a ausência de um corpo legislativo de direito interno capaz de responder com segurança às principais questões suscitadas em torno do direito linguístico. A nível das fontes de direito interno, a legislação quase que se limita a regular a oficialidade, com destaque para as relações entre as línguas oficiais e para alguns direitos, consagrados a título adjectivo ou incidental, decorrentes do estatuto especial atribuído às línguas portuguesa e chinesa. No entanto, mesmo neste campo, a regulamentação é insuficiente, continuando omissos aspectos da maior relevância para uma implementação segura do modelo de oficialidade escolhido para Macau. Aspectos fundamentais como a resolução de conflitos interpretativos entre versões autênticas de um mesmo texto legal, continuam sem encontrar resposta na lei local. Outros começam a ser alvo de alguma preocupação legislativa, como exemplifica o novo Código de Processo Penal, aprovado em Setembro de 1996, que contém uma norma referente à língua dos actos processuais. Este, apesar de tudo, continua a ser insuficiente e inconsequente, uma vez que não foi até agora seguido por outras leis processuais.

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A concepção mais vasta que vê os direitos linguísticos como direito» humanos não é ainda assumida pelo ordenamento jurídico de Macau. Nele não se encontra qualquer norma emanada de fonte local que proteja o exercício do direito de determinação linguística por parte das minorias étnicas ou linguísticas que residam no Território. O que poderá ser grave, tanto quando se vê Macau como um espaço isolado, como quando se perspectiva a futura Região Administrativa Especial na sua relação com a China Continental. Neste último caso, será de destacar a desprotecção potencial do cantonense (ou de outros dialectos)37 face ao mandarim, enquanto língua oficial e politicamente dominante,38 e até da minoria linguística de falantes de português que existirá na futura Região Administrativa Especial de Macau. Pensar que a mera declaração de oficialidade atribuída ao português na pendência do segundo período de transição resolve todos os problemas e protege eficazmente o estatuto do português em Macau é, em nosso entendimento, tentar ignorar o problema. Não só porque, como expusemos supra, o modelo de bilinguismo oficial da Região Administrativa Especial de Macau não está determinado, como a totalidade daquele estatuto não se resume aos aspectos formais da oficialidade.

A República Popular da China é, desde a transferência de soberania de Hong Kong em 1 de Julho de 1997,39 um Estado oficialmente multilingue. As relações internas entre os diferentes ordenamentos jurídicos e as relações entre a língua oficial de âmbito nacional e as línguas oficiais regionais, ou apenas entre estas, é mais uma questão que carece de regulação. Não sendo um problema inédito a nível internacional, é suficientemente importante para merecer reflexão, especialmente, por parte dos académicos chineses. Tanto mais que essa regulação será um bom aferidor dos princípios de direito linguístico em vigor na República Popular da China.

Por outro lado, o universo linguístico de Macau não se resume simplisticamente ao português e ao chinês, existindo falantes de outras línguas ouPage 141dialectos carecidos de protecção.40 Continua, pois, em aberto a regulamentação da relação entre as línguas oficiais e outras línguas minoritárias, do exercício dos direitos linguísticos pelos cidadãos ou a determinação do papel que cabe ao poder público na implementação de uma política capaz de assegurar um democracia linguística.

Uma interpretação sistemática permite obter algumas respostas no di-reito internacional. Os fundamentos para o direito individual de determinação linguística, i.e., o direito de escolher a língua utilizada nas relações pessoais e que melhor conduza ao desenvolvimento pessoal e mobilidade social do indivíduo, para o direito de opção da língua veicular do ensino ou, em termos mais gerais, para o direito a ser poliglota, encontram-se nas normas e princípios consagrados a nível do direito internacional com vigência em Macau. Por esta via, os direitos linguísticos de natureza pessoal encontram alguma protecção no ordenamento jurídico interno. Contudo, um certo grau de incerteza quanto ao valor do direito internacional, resultante das diferenças de sistemas de recepção do direito internacional no ordenamento jurídico de Macau e no ordenamento jurídico da República Popular da China, permite questionar a eficácia futura da protecção internacional actualmente existente. Especialmente se tivermos em consideração a inexistência de normas de direito interno expressivas dos princípios consagrados em textos de direito internacional a vigorar no Território.

A ausência de uma visão global e sistemática do direito linguístico plasmada na lei é, em primeiro lugar, responsabilidade do poder político. É-o também da comunidade jurídica local que, ao contrário do que seria de esperar num espaço que é privilegiado para experiências neste campo, tem ignorado, salvo raras excepções, os trabalhos desenvolvidos noutras latitudes, tanto a nível das soluções de direito comparado, como dos avanços doutrinais produzidos. Não esquecendo que a fraca consciência que a população tem dos seus direitos, concretamente dos seus direitos linguísticos, contribui em muito para o actual panorama. Por outro lado, os direitos linguísticos são, muitas das vezes, uma nova dimensão de direitos tradicionais. O que quase permite afirmá-los como um simples estado de espírito ou como uma luz nova sobre objectos antigos, levando a que seja difícil a sua individualização. Exemplificando: não será o direito a escolher o nome na língua própria do indivíduo uma vertente do direito ao nome, enquanto direito de personalidade oriundo da mais antiga tradição civilista? Re-Page 142conhecendo o carácter interdisciplinar e a concatenaçao existente entre direitos linguísticos e outros direitos consagrados nos ramos civil, administrativo, económico ou outros (em geral, entre o direito linguístico e outros ramos de direito), cremos não se poder hoje negar a autonomia conceptual e científica dos direitos linguísticos enquanto direitos subjectivos fundamentais.

Se é possível retirar uma conclusão ela é a de que Macau só terá a ganhar com a solidez deste ramo jurídico. A sistematização do direito linguístico torná-lo-á mais forte e imune a ingerências meramente políticas e, como tal, capaz de ser um elemento unificador em eventuais momentos de convulsão ou face a processos de descaracterização jurídica, social e cultural. Na fase final do primeiro período de transição, o direito linguístico é mais um instrumento de defesa dos direitos dos cidadãos sendo, pois, urgente a conclusão da construção de um edifício legislativo consistente em matéria linguística. Porventura, a consciência dos direitos linguísticos só será sentida se e quando tais direitos forem negados. Aí, então, sentir-se-á a sua importância na manutenção da paz interna de que falava Scott».41

Anexo
Decreto-Lei n° 455/91 de 31 de Dezembro

Em Fevereiro de 1991, os Ministros dos Negócios Estrangeiros de Portugal e da República Popular da China, em encontro ocorrido em Lisboa, chegaram a um entendimento relativo ao estatuto da língua portuguesa em Macau.

Nos termos desse entendimento, Portugal atribuirá desde já à língua chinesa um estatuto oficial idêntico ao da língua portuguesa, enquanto a República Popular da China consagrará na Lei Básica da Região Administrativa Especial de Macau a oficialização da língua portuguesa após 1999.

Tendo a posição assumida por Portugal íntima ligação com o exercício da soberania, com a salvaguarda e valorização do património cultural nacional, de que é parte integrante a língua portuguesa, e, bem assim, com a letra e espírito da Declaração Conjunta Luso-Chine-sa, ela deve ser concretizada através de um diploma emanado do Governo, cabendo, subsequentemente, aos órgãos de governo próprio do território de Macau aprofundar as condições para que, em conformidade com a realidade local, o esta-Page 143tuto oficial da língua chinesa seja gradual e progressivamente concretizado nos domínios administrativo, legislativo e judiciário.

Assim:

Nos termos da alínea a) do n° 1 do artigo 201° da Constituição, o Governo decreta o seguinte:

Artigo único. A língua chinesa tem em Macau estatuto oficial e a mesma força legal que a língua portuguesa.

Visto e aprovado em Conselho de Ministros de 12 de Dezembro de 1991. —Aníbal António Cavaco Silva— Duarte Ivo Cruz —Diamantino Freitas Gomes Durão.

Decreto-Lein° 11/89/M, de 20 de Fevereiro

Considerando que a maioria da população do território de Macau é exclusivamente de língua chinesa; Considerando que o estatuto da língua chinesa, até ao termo do período de transição, deve ser alargado, por forma gradual;

Nestes termos;

Ouvido o Conselho Consultivo;

O Governador de Macau decreta, nos termos do n° 1 do artigo 13° do Estatuto Orgânico de Macau, para valer como lei no território de Macau, o seguinte:

Promulgado em 23 de Dezembro de 1991.

Publique-se.

O Presidente da República, Mário Soares

Referendado em 26 de Dezembro de 1991.

O Primeiro-Ministro, Aníbal António Cavaco Silva,

Para publicação no Boletim Oficial de Macau.

Artigo 1.° - 1. As leis, decretos-leis, portarias e despachos dos órgãos do Governo próprio do Território, editados em língua portuguesa, terão de ser publicados, quando assumam carácter legislativo ou regulamentar, acompanhados da respectiva tradução em língua chinesa.

  1. As propostas de lei, e os projectos de decreto-lei e de portarias que estejam sujeitos a parecer do Conselho Consultivo, deverão ser apresentados nas línguas portuguesa e chinesa.

  2. Em caso de dúvida, o texto em língua portuguesa prevalece sobre a tradução ou texto em língua chinesa.

    Page 144

  3. O Governador, excepcionalmente ou por motivos de urgência, pode, mediante despacho fundamentado, dispensar, caso a caso, a aplicação dos precedentes n.os 1 e 2.

    Artigo 2.° - 1. Poderão ser utilizadas, quer a língua portuguesa, quer a língua chinesa, nas relações da população com os serviços públicos do Território, incluindo os serviços autónomos e as câmaras municipais, ou com os respectivos funcionários e agentes.

  4. Em todos os impressos, formulários e documentos análogos editados pelos serviços públicos do Território, incluindo os serviços autónomos e as câmaras municipais, serão obrigatoriamente utilizadas as línguas portuguesa e chinesa.

  5. A aplicação aos Tribunais do disposto nos números anteriores será determinada por despacho do Governador, logo que estejam reunidas as necessárias condições.

    Artigo 3.° - A igualdade de estatuto oficial das línguas portuguesa e chinesa no território de Macau será efectivada por forma gradual e progressiva, de harmonia com as condições existentes para o efeito.

    Artigo 4.° - O presente decreto-lei entrará em vigor 120 dias após a data da respectiva publicação.

    Aprovado em 10 de Fevereiro de 1989.

    Publique-se.

    O Governador, Carlos Montei Melancia.

    -----------------------------------

    * Adaptação do artigo «Direito Linguístico: direitos e deveres nas palavras da lei» publicado em Administração - Revista de Administração Pública de Macau, n° 36, Macau, 1997.

    [1] Desde a aprovação da Constituição da República Portuguesa de 1976, Macau é, juridicamente, um território chinês sob administração portuguesa, Situação que se manterá até à transferência de soberania para a República Popular da China em 20 de Dezembro de 1999.

    [2] Scott, «Language Rights and Language Policy in Canada», in Maniloba Law ]ournal,4, 1971, pp. 243-248.

    [3] Maxwell Yalden, «The Relationship Between Human Rights and Language Rights», in Rêvue juridique Thémis, n° 28, Montreal, 1994.

    [4] Quanto à evolução do estatuto jurídico-linguístico de Macau vide Eduardo Cabrita, «Tradução Jurídica - Instrumento nuclear da autonomia jurídíco-política de Macau e condição necessária para o cumprimento da Declaração Conjunta», in Administração, n° 16, Macau, 1992, pp. 343-389.

    [5] António Aresta, «O poder político e a Língua Portuguesa em Macau (1770-1968). Um relance legislativo, in Administração, n° 27, Macau, 1995, pp. 7-23.

    [6] Ob. dt.,p. 11.

    [7] Resultante, v.g., do artigo 139° do ainda em vigor Código de Processo Civil.

    [8] Ex vi n° 2 do artigo 68° do Decreto-Lei n° 48 871, de 19 de Fevereiro de 1969, mandado aplicar a Macau pela Portaria n" 555^71, de 12 de Outubro.

    [9] Ex vi Decreto-Lei n° 29 773, de 9 de Setembro de 1939.

    [10] Idem.

    [11] Maxwell Yalden, ob. cit., define língua oficial como «a language that enjoy a privileged position in the administrative workings of the state», enquanto que em Patrick Thornberry, International laio and tbe rigkts of minorities, citando a obra The use ofver-nacular languages in eduçation, Paris, unesco, 1953, língua oficial surge definida como «ã language used in tbe business of government - legistative, executive and judicial»; por seu turno a lei de Hong Kong declara as línguas inglesa e chinesa como línguas oficiais «.for thepur-poses of communication between the Government or any public officer and members of the publica (secção 3° da Official Languages Ordinance, de 15 de Fevereiro de 1974).

    [12] Cfr. artigos 116° da Constituição Suíça e 8° da Constituição da República da Irlanda.

    [13] Vide Eduardo Cabrita, ob. cit, pp. 345-349.

    [14] Aibert Chen, em «1997: The Language of the Law in Hong Kong», in Hong Kong Lawi Journal, vol. 15, Hong Kong, 1985, pp. 19-47, afirma: «since law is expressed through the medium of language, the language of the law is an integralelement of any legal system».

    [15] Acordo internacional celebrado em 1987 entre Portugal e a República Popular da China, determinando o estatuto político-administrativo de Macau até à transferência de soberania em 20 de Dezembro de 1999.

    [16] «Além da língua chinesa, poder-se-á usar também a língua portuguesa nos organismos do Governo, no órgão legislativo e nos Tribunais da Região Administrativa Especial de Macau».

    [17] A maiúscula «M» a seguir ao número de um diploma indica tratar-se de legislação emanada dos órgãos legislativos de Macau, Governador e Assembleia Legislativa. A demais legislação é emanada dos órgãos legislativos de Portugal.

    [18] António Aresta, ob. cit., p. 9.

    [19] Antoni Mirambell i Abanco, «La desfigurado jurídica dei concepte d'oficialítat linguística: Sentencia de] Tribunal Constitucional 74/1987, de 25 de maig», in Dre! lingüis-lic, Barcelona, 1989, pp. 51-58.

    [20] Joan Antoní Xiol i Rios, «El tratamiento jurídico de la doble oficialidad por parte de las teyes y los reglamentos», in Revista de Llengua i Dret, n" 14, Barcelona, 1990, p. 70.

    [21] Ob. cit., pp. 379-380.

    [22] Relativamente ao valor das versões em língua chinesa, Eduardo Cabrita revê a sua posição em texto datado de 1994. Defende agora que a publicação do Decreto-Lei n° 455/91, de 31 de Dezembro, «determinou que as versões chinesas, ainda que continuem quase sempre a ser traduções feitas a partir de um original português, tenham um valor jurídico autónomo, não sendo possível resolver divergências entre os textos, ou conflitos inter-pretativos, através da prevalência absoluta da versão portuguesa» («O Bilinguismo Jurídico - condição e garantia da autonomia e identidade de Macau», in Administração, n° 26, Macau, 1994, p. 671).

    [23] Antoni Mlrambell. i Abancó, ob. cit, p. 52.

    [24] Cesáreo Rodríguez-Aguilera, «La adaptación de Ia Admínistración de justicia a Ia doble oficialidad», in Revista de Llengua i Dret, n° 14, Barcelona, 1990, p. 96.

    [25] O Código de Procedimento Administrativo está a ser revisto e os trabalhos preparatórios já incluem normas de natureza linguística.

    [26] Aquando da transferência de soberania, Macau assumirá o estatuto de Região Administrativa Especial da República Popular da China e gozará de um amplo grau de autonomia. Na Região Administrativa Especial de Macau não serão aplicados o sistema e as políticas socialistas, mantendo-se inalterados os actuais sistema social e económico, bem como a respectiva maneira de viver, durante cinquenta anos.

    [27] A Lei Básica da Região Administrativa Especial de Macau, adoptada em 31 de Março de 1993, pela Primeira Sessão da Oitava Legislatura da Assembleia Nacional Popular da República Popular da China, será a futura «mini» Constituição de Macau.

    [28] «Artigo 9° - Além da língua chinesa, pode usarse também a língua portuguesa nos órgãos executivo, legislativo e judiciais da Região Administrativa Especial de Macau, sendo também o português língua oficial».

    [29] Diploma de natureza constitucional, aprovado pela Lei n° 1/76, de 17 de Fevereiro e alterado pelas Leis n° 53/79, de 14 de Setembro, n° 13/90, de 10 de Maio e n° 23-A/96, de 29 de Julho.

    [30] Ratificado pela Lei n° 29/78, de 12 de Julho, e extensivo a Macau ex vi Resolução da Assembleia da República n° 41/92, de 31 de Dezembro.

    [31] Quanto à problemática do indivíduo como sujeito autónomo do Direito Internacional vide André Gonçalves Pereira e Fausto de Quadros, Manual de Direito Internacional Público, 3° edição, Almedina, Coimbra, 1993, pp. 378-408.

    [32] Joan Ramon Solé i Durany, «Els drets linguístics com a drets humans: Ia Declaració Universal dels Drets Humans i els acords internacionais sobre aquests drets», in Dret linguístc, Barcelona, 1989, pp. 19-26.

    [33] «Les droits linguístes à Ia lumière des droits des peuples», in Les minorités en Europe - Droits linguistiques et droits de l'homme, Editions Kimé, Paris, 1992, pp. 479-492.

    [34] In http:\\www..partal.com/ciemen/conf /deng.html.

    [35] «The permitted 'inequality' is essetitially tbat between the entire class of natural languages, of which there are many tbousands, and official languages, of which there are necessarily far fewer», Maxwell Yalden, ob. cit.

    [36] Nuno Calado, Algumas reflexões em tomo do bilinguismo oficial, Seminário Internacional «Português como língua estrangeira», Universidade de Macau, 21 a 24 de Maio de 1997.

    [37] Em Macau, 88% dos falantes de língua chinesa expressam-se em cantonense, 1,2% em mandarim e 10% noutro dialecto chinês. Fonte: Características dã População e da Habitação em Macau, Serviços de Estatística e Censos de Macau, Macau, 1993, p. 189.

    [38] «No território chinês, as línguas das minorias nacionais gozam de estatuto oficial, mas os dialectos gozam de um estatuto inferior, e não são reconhecidos como língua oficial unificada da Nação, o putonghua.», Cheng Xianhui, «O estatuto da língua chinesa em Macau», in Administração, n° 16, Macau, 1992, pp. 429-442.

    [39] Quanto à situação de Hong Kong, de alguma forma similar à de Macau, vide Tony Yen, «Legislação bilingue numa comunidade chinesa: a experiência de Hong Kong», in Perspectivas do Direito, n° 2, Macau, 1997, pp. 93-110.

    [40] Refirase que «o português tem no Território significado idêntico ao do conjunto das restantes línguas não chinesas (inglês, filipino, tailandês, etc.)», Características da População..., cit.,p. 189.

    [41] Vide nota. n° 2.

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