Direito da educação

AutorSuzana Tavares Da Silva
Páginas89-107

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Suzana Tavares da Silva

Professora da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra

Investigadora do Instituto Jurídico

SUMARIO: I. DIREITO DA EDUCAÇÃO: ENQUADRAMENTOS POLÍTICONORMATIVOS. 1. Educação (considerações gerais). 2. Educação e direitos fundamentais. 3. Educação e União Europeia 4. Educação e Conselho da Europa. 5. Educação e OCDE. 6.- Educação e Organização das Nações Unidas. 7. Conclusões parciais. II. DIREITO DA EDUCAÇÃO EM PORTUGAL. 1. A educação em Portugal no direito positivo. 2. A administração escolar e o direito administrativo escolar. A) Os contratos de delegação de competências na educação. B) O regime jurídico do ensino particular e cooperativo não superior. 3. (Falta de) regulação do serviço de educação. 4. Conclusões finais.

Direito da educação: enquadramentos político-normativos

O direito da educação é uma área interdisciplinar 1 –partilha, entre outros, contributos jurídicos, económico-financeiros, das ciências da educação, das ciências da administração, da ciência política, das políticas públicas– e essencial à construção do Estado e da cidadania 2, o que explica que sobre ela se debrucem diversas entidades internacionais, que contribuem, a seu modo, para a determinação do conteúdo do direito da educação. Nesta breve referência ao tema não nos será possível discorrer sobre teorias e opções que hoje se discutem quanto à organização e gestão dos sistemas educativos 3, limitamo-nos, num tom

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inevitavelmente descritivo, a elencar as directrizes socio-político-económicas que decorrem dos diversos níveis de governance (local, nacional, europeu e global) e a apresentar o regime jurídico positivo português.

1. Educação (considerações gerais)

A educação constitui, a par com a saúde e a segurança social, uma área tradicional de política social dos Estados. Para muitos autores, a educação seria uma área especial de actuação pública na promoção da coesão social, redução das desigualdades e da pobreza, assim como na promoção da cidadania e dos seus valores. Contudo, estudos recentes sobre a massificação da educação no pósguerra revelam que a universalização da educação não foi acompanhada de uma redução proporcionalmente equivalente em termos de desigualdades sociais. Pelo contrário, o estudo revela que a educação não combate as desigualdades na mesma medida que o fazem as políticas sociais de saúde e de segurança social.

Os dados económico-sociais agregados revelam hoje que quanto maior é o nível de educação, maior é a igualdade de oportunidades, mas que isso não está necessariamente associado a uma igualdade de rendimentos –os países europeus têm as gerações actuais mais bem preparadas de sempre e com o nível de escolaridade mais elevado, mas também as que mais tarde conseguem aceder ao mercado de trabalho ou que encontram enormes dificuldades em alcançar este objectivo (generation neither studying nor working).

Giddens refere a este propósito que a política de educação sofreu uma enorme transformação e que ela deve estar interligada ao trabalho e ao investimento e não tanto, como até aqui, à socialidade propriamente dita 4.

2. Educação e direitos fundamentais

A educação, o direito à educação e o direito da educação integram, em quase todos os ordenamentos jurídico-constitucionais, o catálogo dos direitos fundamentais. No caso de Portugal, a referência a estes direitos surge na Constituição da República Portuguesa (CRP) simultaneamente como liberdade (artigo 43.º da CRP) e como direito social (artigos 73.º a 77.º da CRP).

Enquanto liberdade, a educação, no plano pessoal, enuncia-se como a liberdade de aprender e ensinar, que podemos, segundo a doutrina 5, reconduzir aos subtipos de liberdade de escolher a escola e o tipo de ensino por parte dos educandos e dos seus encarregados de educação, o que significa que os pais podem escolher

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estabelecimentos de ensino privados ou até o regime de educação doméstica para os seus filhos. O que não é admissível à luz do direito constitucional português é formulação de uma liberdade de não ser ensinado.

No plano institucional, esta liberdade inclui a liberdade de criação de escolas particulares e cooperativas, sem prejuízo de a atribuição do direito de conferir habilitações e graus ficar dependente de um procedimento público prévio e do poder de fiscalização do Estado. Daqui decorre que a oferta de ensino em Portugal é variada e que existe uma preocupação com a garantia não apenas de que pais e educandos possam encontrar um ensino e uma educação adaptados às suas convicções, mas também de que a oferta do ensino não seja condicionada pelo Estado. Em outras palavras, as liberdades abrangem também as escolas, às quais se reconhece um grau de liberdade de direcção, que envolve a escolha dos manuais dentro da lista certificada 6, a definição dos curricula, a definição do sistema de avaliação e, em relação aos professores, a liberdade académica e pedagógica e a liberdade de ensinar sem uma orientação filosófica ou ideológica pré-determinada.

Sobre estas dimensões da liberdade de aprender e ensinar não surgiram em Portugal até hoje litígios jurídico-constitucionais relevantes. De referir apenas, na década de 80’, o questionamento da obrigação de ensino religioso –tendo o Tribunal Constitucional, no acórdão n.º 423/87 declarado a inconstitucionalidade da norma que impunha a obrigação de declaração de não frequência da disciplina de religião moral e católica –e, mais tarde, da formação dos professores de religião e moral– em que o acórdão n.º 174/93, não declarou a inconstitucionalidade das normas que exigiam a formação de professores nestas áreas a cargo do Estado.

Como dissemos antes, a educação surge também consagrada na CRP como um direito social, impondo-se no artigo 74.º diversas obrigações e deveres ao Estado para assegurar este direito ao ensino. Sobre este ponto destacamos as questões que têm sido mais debatidas ao longo dos anos: i) saber se a previsão de numerus clausus no acesso ao ensino superior pode ser considerada uma violação do direito ao ensino, o que foi já respondido de forma negativa pelo Tribunal Constitucional no acórdão n.º 1/97; ii) saber se o dever do Estado deve ser o de assegurar escola pública para todos 7 ou apenas o acesso de todos ao serviço público de ensino, o qual pode ser ministrado em escolas privadas através da contratualização de vagas 8; iii) saber se a Constituição impõe a gratuitidade do

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ensino nas Universidades, quando estabelece a progressiva gratuitidade de todos os graus de ensino 9; iv) saber qual deve ser a obrigação do Estado em relação a outras prestações acessórias à garantia do direito ao ensino, como transporte, alimentação, livros, saúde escolar, etc.; e, ainda, v) saber se o Estado deve ou não dar resposta à educação de adultos.

3. Educação e direito europeu

A educação tem consagração expressa no artigo 165.º do TFUE onde se afirma que, não obstante respeitando integralmente a responsabilidade dos EstadosMembros pelo conteúdo do ensino e pela organização do sistema educativo, bem como a sua diversidade cultural e linguística, a União contribuirá para o desenvolvimento de uma educação de qualidade, incentivando a cooperação entre Estados-Membros e, se necessário, apoiando e completando a sua acção.

E entre os tópicos que neste artigo se podem apontar como contributos da União em complemento dos Estados-membros destacamos: i) a aprendizagem e divulgação das línguas dos Estados-Membros; ii) o incentivo à mobilidade dos estudantes e dos professores, nomeadamente através do incentivo ao reconhecimento académico de diplomas e períodos de estudo; e iii) a promoção do ensino a distância.

Para a União Europeia é também essencial a política de formação profissional onde, de acordo com o artigo 166.º do TFUE, a acção da União Europeia se concentra em facilitar a adaptação às mudanças tecnológicas e a inserção e reinserção no mercado de trabalho, bem como a mobilidade de formandos e formadores.

Entre os instrumentos adoptados para a promoção das suas acções políticas em matéria de educação e formação, destacamos a criação pela União Europeia do Programa Erasmus+, que permite e fomenta estudar em outras instituições europeias, ensinar em outras instituições europeias, assim como trabalhar, estagiar e até realizar voluntariado em outros países europeus.

Na nossa perspectiva, a União Europeia entende a educação como um instrumento adequado e eficaz para a europeização dos jovens e a construção de uma sociedade europeia baseada nas liberdades dos Tratados. É neste contexto que interpretamos a Recomendação do Conselho sobre a validação da aprendizagem não formal e informal 10, bem como a Comunicação “Repensar a educação - Investir nas competências para melhores resultados socioeconómicos” 11. E é também

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com o propósito de realizar aqueles objectivos que se compreende a criação do European Credit Transfer and Accumulation System (ECTS) –um instrumento que está na base do denominado Processo de Bolonha e cujos principais objectivos são: i) introduzir sistemas de três ciclos licenciatura/mestrado/doutoramento;

ii) reforçar a garantia da qualidade e iii) facilitar o reconhecimento das qualificações e dos períodos de estudo realizados em qualquer instituição de ensino europeia– bem como o European Qualifications Framework, que é uma ferramenta para a comparabilidade entre as qualificações obtidas dentro dos sistemas...

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