Controle judicial de constitucionalidade: o contributo da Constituição de 1891

AutorEdilson Pereira Nobre Júnior
Páginas297-320

Page 297

I O ambiente constitucional reinante no século xix

Os movimentos constitucionalistas irrompidos nos séculos XVII e XVIII produziram três modelos constitucionais distintos e inconfundíveis. O primeiro deles foi o da Inglaterra que alcançou limitar, com a Revolução Gloriosa, alicerçada pelo Bill of Rights, de 13 de fevereiro de 1689, pretensão absolutista da monarquia, através de seu controle parlamentar. Um dos seus traços característicos foi o reconhecimento da supremacia do parlamento, refutando, assim, a doutrina que emanou do Bonham’s case de 16101. Com isto, sepultado restou o desenvolvimento da fiscalização judicial dos atos legislativos.

Page 298

O outro arquétipo, que pode ser sugerido como continuidade daquele de bases britânicas, repousa no oriundo da Revolução Americana, cuja consolidação se deu com a Constituição de 1787. Esta, demais de perfilhar a república presidencialista como forma de governo, consagrou a separação de poderes, com lastro na qual Legislativo, Executivo e Judiciário, estão sujeitos a controles recíprocos.

Aliado a isso, o forte receio de abusos por parte do Legislativo, a partir da malsinada experiência com as medidas opressoras que as outrora treze colônias sofreram do parlamento londrino, fizeram criar propício clima a que o traço original da organização política estadunidense recaísse no controle de constitucionalidade das leis.

Nesse sentido, convergiu doutrina tanto em O Federalista2quanto com lastro na ordem valorativa implícita na Constituição3, tornando-se, assim, possível o reconhecimento, há aproximadamente duzentos e cinco anos atrás, no célebre Marbury versus Madison, de que a competência da legislatura está limitada pela Constituição, resultando inválida a lei quando com esta contrastar.

Portanto, contrariamente à natureza mirífica ostentada na Inglaterra, a lei, para os colonos norte-americanos, significou fonte de opressão, acarretando-se a necessidade do controle da sua compatibilidade com a Constituição, a ser aferido pelos juízes, como a medida do equilíbrio entre os poderes estatais.

À derradeira, tem-se o padrão constitucionalista surgido, no continente europeu, a partir da Revolução Francesa. Neste particular, cabe, inicialmente, traçar divisor de águas, entre o pensar dominante com a Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão, de 26 de agosto de 1789, e das constituições que lhe seguiram até a tomada do poder por Napoleão, nas quais à vontade das assembléias de representantes do povo se reservava primazia, e o surgimento da restauração monárquica, que implicou no reaparecimento da superioridade do poder real sobre os demais estamentos estatais.

Page 299

Qualquer que fosse a situação dentre as acima mencionadas, de notar-se é que a separação de poderes à francesa sempre repeliu a idéia do juiz analisar a constitucionalidade das leis4.

Algumas razões podem ser invocadas: a) o mito da infalibilidade da lei como instrumento de igualdade e justiça; b) a repartição de poderes estaria preservada melhor se o controle dos atos dos demais poderes estatais ficasse a salvo do Judiciário; c) a desconfiança perante as pessoas dos juízes, em face da forte identificação destes com o ancien régime.

Proclamada a independência, a nossa primeira Constituição, adotada a monarquia, preferiu o modelo cultivado na França que, à época, não mais era aquele do predomínio dos eflúvios do movimento de 1789, substituído pelo fortalecimento da monarquia ao depois da restauração da dinastia Bourbon.

Daí a forte influência recebida da Carta Constitucional de 14 de junho de 18145, fazendo com que, no jogo dos poderes estatais, a Constituição de 25 de março de 1824 privilegiasse sobremodo a pessoa do Imperador, o qual, além da condução do Poder Executivo6, enfeixava, na condição de Chefe Supremo da Nação, o Poder Moderador, chave de toda a organização política, para o fim de que aquele pudesse velar, incessantemente, sobre a manutenção da independência, equilíbrio e harmonia dos demais poderes políticos7.

Page 300

E, como se não bastasse, o art. 15, VIII, da Constituição do Império, dispunha, às explícitas, ser atribuição da Assembléia Geral "fazer leis, interpretálas, suspendê-las e revogá-las".

Por sua vez, no rol de competências dos órgãos do poder judiciário, nem mesmo especificadamente quanto ao Supremo Tribunal de Justiça, havia mínima referência que fosse a permitir compreensão de ser possível verificação de questão de legitimidade constitucional.

Tudo isso serve para mostrar que a escolha em favor do modelo francês, levada a cabo pela Carta de 1824, com o acréscimo do clima político reinante, inviabilizou qualquer tentativa para a afirmação da possibilidade dos juízes verificarem o concerto entre aquela e as leis e demais atos normativos.

O panorama fático para tanto somente adveio com a proclamação da república em 15 de novembro de 1889. Isto porque os Constituintes de 1891, não podendo adotar o figurino inglês e francês, em face da incompatibilidade que estes mantinham com o regime político escolhido, não tiveram alternativa senão a de buscar inspiração que uma centúria antes influenciou os Estados Unidos.

A preocupação com o exame da constitucionalidade das leis estava presente, com relevo, em duas passagens inerentes ao Poder Judiciário. A primeira delas constou do seu art. 59, §1º, que, ao instituir entre nós o recurso extraordinário, prescreveu:

Art. 59. Ao Supremo Tribunal Federal compete: (...) §1º Das sentenças das justiças dos Estados em última instância haverá recurso para o Supremo Tribunal Federal: a) quando se questionar sobre a validade ou a aplicação de tratados e leis federais, e a decisão do tribunal do Estado for contra ela; b) quando se contestar a validade das leis ou de atos dos governos dos Estados em face da Constituição, ou das leis federais, e a decisão do tribunal do Estado considerar válidos esses atos, ou essas leis impugnadas8.

Noutro passo, a possibilidade do controle judicial de constitucionalidade estava no art. 60, alínea a, que, a pretexto de enumerar a competência da Justiça Federal, dispunha: "Art. 60. Compete aos juízes ou Tribunais Federais processar e

Page 301

julgar: a) as causas em que alguma das partes fundar a ação, ou a defesa, em disposição da Constituição Federal".

Complementando a disciplina, acima transcrita, havia o art. 59.2, o qual, à míngua da criação de tribunais federais de segundo grau de jurisdição, atribuiu ao Supremo Tribunal Federal o apanágio de órgão recursal das decisões da justiça federal.

Entretanto, a práxis culminou por demonstrar enorme contribuição propiciada pela instituição, no art. 72, § 22, relativo à declaração de direitos, do habeas corpus, ensejando inúmeras oportunidades para que o Judiciário, verificando supostas ilegalidades ou abuso de poder, pudesse confrontar o texto magno com atos normativos e comportamentos estatais concretos.

Desse modo, afigura-se interessante visão a ser extraída das observações da doutrina e da prática judiciária que, na sua avidez em procurar o sentido dos preceitos constitucionais acima indicados, buscou não só delimitar o alcance da competência jurisdicional de controlar a compatibilidade dos atos dos poderes públicos com a Constituição, mas também a fixação de parâmetros de atuação.

Na execução da tarefa, inevitável o surgimento de algumas indagações, tais como o que, à época, se devia entender por inconstitucionalidade e quais órgãos poderiam conhecê-la Estavam tais órgãos, no exercício de sua competência, adstritos a limites materiais e formais

As questões terão suas respostas desenvolvidas nas linhas seguintes. Isto sem omitir passagem sobre a nossa inicial experiência com a garantia constitucional do habeas corpus.

II Inconstitucionalidade: conceito e competência para o seu reconhecimento

Ao comentar o §1º do art. 59 da Constituição republicana, que cogitava da validade de tratados, leis, federais e estaduais, e atos dos governos dos Estados, João Barbalho9se mantinha convicto em afirmar que o preceito atribuía ao Supremo Tribunal Federal, inicialmente, competência para aferir acerca da legitimidade constitucional do ato impugnado, ou seja, sua conformidade com a Constituição.

Nessa hipótese, a lei poderia ser inconstitucional por seu objeto não se situar na competência legislativa da pessoa política que a editou, ou por contrariar as disposições constitucionais.

Page 302

Em segundo lugar, a inconstitucionalidade poderia ter lugar quando aferida a desconformidade do processo parlamentar de elaboração da lei com os respectivos preceitos da Constituição.

Pela lição do autor já se antevia divisão, que sobrevive até os dias de hoje, fracionando os tipos de inconstitucionalidade em material e formal10.

O fato da competência do Supremo Tribunal Federal, em sede de recurso extraordinário, resultar da impugnação de decisões anteriormente proferidas por juízes e tribunais estaduais mostra, estreme de dúvidas, que a competência para a análise da constitucionalidade das leis não lhe era exclusiva, pertencendo, igualmente, aos demais órgãos do Poder Judiciário. Isto se reforça com a previsão da competência dos juízes federais para conhecer as causas nas quais se fundasse a pretensão, ou a resposta, em dispositivo da Lei Magna. Neste ponto inclusive o art. 13, §10, da Lei 221, de 20 de novembro de 1894, era eloqüente11.

A inspiração norte-americana não permitia outra conclusão. Prova disso Amaro Cavalcanti sustentou:

O direito de resolver sobre a constitucionalidade de uma lei, tanto cabe ao Supremo Tribunal Federal, como aos tribunais e juízes inferiores, dentro da respectiva jurisdição. Onde quer que a questão for suscitada, o tribunal ou juiz deve pronunciar-se a respeito; porque o direito de...

Para continuar leyendo

Solicita tu prueba

VLEX utiliza cookies de inicio de sesión para aportarte una mejor experiencia de navegación. Si haces click en 'Aceptar' o continúas navegando por esta web consideramos que aceptas nuestra política de cookies. ACEPTAR