A celebração à distância do contrato de seguro

AutorJuiz Moitinho de Almeida
CargoPresidente da SPAIDA (Secção Portuguesa da Associação Internacional para o Direito dos Seguros).
Páginas9-26

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1. Introdução

A celebração à distância (sem a presença física e simultânea de ambas as partes) de contratos exige uma especial protecção do consumidor que adquire o produto ou serviço sem os esclarecimentos que podem ser obtidos nos contratos entre presentes, com decisões por vezes irreflectidas. Essa protecção torna-se ainda mais necessária nos contratos celebrados na World Wide Web (bem como outras redes análogas) ou por correio electrónico. Aí não só o processo contratual é despersonalizado como se verifica a desmaterialização do contrato 1, ocorrendo, por vezes, problemas técnicos, como atrasos nas comunicações com o servidor, perdas de tais comunicações ou não chegada ao respectivo destino 2. Por isso, a necessidade de medidas com vista, designadamente, a assegurar a informação devida do consumidor e a facultar-lhe meios de correcção de eventuais erros cometidos, se impor a atribuição a este do direito de resolução dentro de certos prazos e a concepção de novas regras no domínio do foro competente e do direito internacional privado tendo em conta a desmaterialização dos contratos assim como a protecção devida à parte mais fraca. E o contrato de seguro, pela complexidade das suas cláusulas, merece uma particular atenção.

Mas, se o comércio à distância envolve problemas como os que referimos, importa facilitar o recurso às novas tecnologias que promovem a concorrência, agilizam as trocas comerciais e a prestação de serviços e reduzem custos, constituindo poderosos factores do desenvolvimento.

O legislador comunitário ocupou-se dos contratos à distância na Directiva 97/7/CE, de 20 de Maio de 1997 3, directiva que, porém, não abrangia os serviços financeiros e, assim, os seguros, objecto de directiva posterior, a Directiva 2002/65/CE, de 23 de Setembro de 2002 4. No que se prende com o comércio electrónico, a Directiva 1999/93/CE, de 13 de Dezembro de 1999 contempla a assinatura electrónica 5e a Directiva 2000/31/CE contém uma harmonização dos direitos nacionais no que respeita ao comércio electrónico, em geral 6. Estas directi- Page 10vas regulam detalhadamente as matérias delas objecto mas, como veremos, nalguns aspectos, concedem aos Estados-Membros certa margem de apreciação quanto à sua transposição e uma matéria fundamental, a disciplina do momento em que o contrato é concluído, escapa à harmonização comunitária.

A contratação à distância pode ser realizada por vários meios, como o postal, o telefone, a televisão, o telefax, os chats, no www, por correio electrónico. Abordaremos, em primeiro lugar, a celebração do contrato de seguro por meios electrónicos e, a final, teceremos algumas considerações sobre os outros meios, de uso limitado face à exigência de forma escrita ad substantiam para o contrato de seguro 7.

2. A celebração do contrato de seguro por meios electrónicos

A celebração de contratos por meios electrónicos exige, como vimos, medidas novas destinadas a regulamentar aspectos específicos, mas não importa uma reformulação do direito das obrigações 8. Como se extrai dos relatórios nacionais apresentados ao XI Congresso Mundial da AIDA (Associação Internacional para o Direito dos Seguros) 9, a utilização da via electrónica é ainda neste domínio incipiente 10. O que pode explicar-se tendo em conta , por um lado, o facto de o tomador do seguro preferir o contacto pessoal, de modo a obter os esclarecimentos necessários em domínio que se reveste de grande complexidade e, por outro, o receio, por parte das seguradoras, de perturbações no sistema de distribuição de seguros bem como os importantes investimentos nas estruturas para o efeito necessárias. E acresce ainda a insegurança jurídica resultante de um direito novo, não raro sem grande precisão. Observe-se também que determinados seguros, como os seguros de vida, que exigem exames médicos, dificilmente comportam a via electrónica 11.

A Directiva 200/31/CE não abrange todos os contratos de fornecimento de mercadorias ou de prestação de serviços por via electrónica. A noção de serviços da sociedade de informação dela objecto encontra-se definida no artigo 1.º, n.º da Directiva 83/34/CEE, alterada pela directiva98/48/CE 12, para o qual remete a alínea a) do artigo 2.º. Ora, resulta do anexo V que, designadamente, não inclui, os serviços prestados por telefonia vocal, radiodifusão sonora e televisiva, telex e telecópia (fax) 13. Estes meios electrónicos de contratação não se encontram também abrangidos pelo Decreto-Lei n.º7/2004, de 7 de Janeiro (artigo 3.º), que transpôs a Directiva 200/31/CE e, enquanto utilizáveis para a celebração do contrato de seguro, deles nos ocuparemos na parte final. No regime particular do comércio electrónico estão, assim, fundamentalmente em causa os contratos celebrados na World Wide Web (ou noutras redes análogas) e por correio electrónico.

O Decreto-Lei n.º7/2004 menciona frequentemente os «consumidores» e consagra, como veremos, regimes diferentes consoante o contrato seja realizado entre empresários (na gíria designados B2B) e entre empresários e consumidores (B2C). Mas não define tal noção, devendo para o efeito, ter-se em conta a prevista na Directiva: «qualquer pessoa singular que actue para fins alheios à sua actividade comer- cial, empresarial ou profissional» (artigo 3.º, alínea Page 11 e)). Noção já presente no Decreto-Lei n.º95/2006, de transposição da Directiva 2002/65/CE (artigo 2.º, alínea e)).

2.1. A forma electrónica

Uma das questões que importava resolver era a de determinar as condições em que a forma electrónica pode substituir a forma escrita exigida para a conclusão de certos contratos (ad substantiam ou ad probationem). A primeira legislação sobre a matéria foi a do Estado norte-americano de Utah cujo Digital Signature Act impunha a utilização de assinatura digital (verificada por meio de chave pública, com certificação por autoridade titular da devida licença) 14, mas esta regulamentação, demasiado rígida visto não permitir a utilização de outro tipo de assinatura que , no futuro, se viesse a mostrar igualmente idóneo para garantir a identificação do autor e a fidelidade do conteúdo da declaração, não foi a consagrada na Lei Modelo para o Comércio Electrónico da Comissão das Nações Unidas para o Direito Comercial Internacional (CNUDCI) 15. Aí se estabelece que quando a lei exija assinatura, tal exigência é satisfeita se for utilizado processo que identifique o declarante e revele a sua aprovação do conteúdo da mensagem, e o processo seja fiável e apropriado ao objectivo em vista ao ser criada ou comunicada a mensagem, consideradas todas as circunstâncias e, designadamente, qualquer acordo relevante 16. Não é, pois, exigido qualquer requisito de certificação da assinatura, dependendo a equivalência da assinatura electrónica à assinatura manuscrita de apreciação caso a caso o que não favorece a segurança jurídica 17.

A Directiva 1999/93/CE prevê dois tipos de assinatura electrónica: uma, definida como «dados sob forma electrónica, ligados ou logicamente associados a outros dados electrónicos e que sejam utilizados como método de autenticação (artigo 2.º, n.º1); outra, a «assinatura electrónica avançada», que deve obedecer aos requisitos seguintes: estar associada inequivocamente e permitir identificar o signatário, ser criada com meios que este pode manter sob seu controlo exclusivo e estar ligada a dados a que diz respeito, de tal modo que qualquer alteração subsequente seja detectável. Esta assinatura deve basearse num certificado qualificado e ser criada através de dispositivos seguros (artigo 5.º, n.º1) mas não podem ser negados efeitos legais ou valor probatório à simples assinatura electrónica com o mero fundamento de não existir certificação ou de não ter sido criado um dispositivo seguro de criação de assinaturas (n.º2). E o artigo 9.º, n.º1, da Directiva 2000/13/CE estabelece que «Os Estados-Membros assegurarão que os seus sistemas legais permitam a celebração de contratos por meios electrónicos. Os Estados-Membros assegurarão, nomeadamente, que o regime jurídico aplicável ao processo contratual não crie obstáculos à utilização de contratos celebrados por meios electrónicos, nem tenha por resultado a privação de efeitos legais ou de validade desses contratos pelo facto de serem celebrados por meios electrónicos». Consagrou-se, assim, o princípio conhecido como da «equivalência funcional» da forma escrita e electrónica.

A transposição deste princípio nas legislações dos Estados-Membros seguiu caminhos diferentes. Na Alemanha, entendeu-se que nem sempre os registos electrónicos asseguram os objectivos prosseguidos com a forma escrita(permitir a reflexão dos interessados, assegurar a respectiva identidade bem como a genuinidade dos termos acordados) e, assim, esta forma continua a ser exigida em certos casos. A ela só é equiparada a forma electrónica quando exista assinatura qualificada (§ 126 a) da BGB), isto é, quando se recorra a um processo, baseado em criptografia assimétrica, que implica o uso de duas chaves, uma pública e outra privada, esta utilizada pelo destinatário para descodificar a mensagem codificada através da chave privada, intervindo ainda uma entidade certificadora . Mas, paralela à forma escrita, surge agora a «forma de texto» (Textform) e, quando esta é exigida, a declaração deve constar de documento ou de suporte duradouro que permita a reprodução de escritos terminando com a assinatura ou outra forma de identificação do declarante (§126 b)). No que respeita ao...

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