Contrato Público: conceito e limites

AutorMaria João Estorninho
Cargo del AutorDoutora em Direito. Professora da Faculdade de Direito de Lisboa e da Universidade Católica
Páginas31-40

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I O modelo Português tradicional de contratação pública: a figura do contrato administrativo, de inspiração Francesa

O modelo português tradicional de contratação pública gira em torno da figura do «contrato administrativo», de inspiração francesa. Baseado na dicotomia «contrato administrativo»/«contrato de direito privado» da Administração Pública, o referido modelo assenta sobre duas premissas essenciais: pressupõe a autonomia substantiva do contrato administrativo2 e implica uma dualidade de competência jurisdicional em matéria de contratação pública.

Para além do «mito» do «critério do contrato administrativo» e das dificuldades nunca resolvidas quanto à delimitação de competência jurisdicional entre os tribunais comuns e os tribunais administrativos, são visíveis, de há muito, sinais inequívocos da falência deste modelo tradicional. Assim, já em finais dos anos oitenta3, me parecia óbvia e inevitável a tendencial aproximação de todos os contratos da Administração Pública: por um lado, devido à atenuação do «carácter exorbitante» dos «contratos administrativos» e, por outro lado e sobretudo, devido à publicização dos «contratos de direito privado» da Administração Pública.

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Vejamos até que ponto a evolução veio a confirmar essa tendência...

II O direito comunitário e o universo dos contratos públicos
1. Os modelos tradicionais de contratação pública na Europa e a razão de ser do regime comunitário da contratação pública

A diversidade dos modelos tradicionais de contratação pública na Europa4 explica, em parte, que o Direito Comunitário tenha evitado (não tenha podido) adoptar um verdadeiro modelo comunitário de contrato. A este propósito, Banõ León lembra que as diferenças entre as legislações nacionais «aconselharam a Comunidade a fugir de um modelo preconcebido de contrato»5, explicando-se, assim, a «renúncia a estabelecer um modelo de contrato comunitário»6.

Uma coisa é, no entanto, certa: o Direito Comunitário desconhece a figura do «contrato administrativo» o que, aliás, facilmente se compreende, tanto porque, em virtude da diversidade dos referidos modelos tradicionais, as regras comunitárias nesta matéria não puderam, à partida, aspirar a ser mais do que um mero «mínimo denominador comum», como porque as razões subjacentes ao regime comunitário são muito diversas daquelas que historicamente determinaram a criação jurisprudencial da figura do «contrato administrativo», em França.

São conhecidas essas razões que historicamente levaram a que, em França, procurando-se justificar a autonomização processual de determinados contratos da Administração Pública, se tivesse autonomizado, do ponto de vista substantivo, em nome do interesse público a cargo da Administração Pública, uma figura de «contrato administrativo» construída em torno da ideia de «poderes exorbitantes» da entidade pública contraente.

Ora, na verdade, a lógica subjacente ao regime comunitário de contratação pública prende-se, antes, em última instância, com o objectivo de realização do mercado único e, assim, com a observância de princípios do Tratado -tais como a liberdade de circulação ou o princípio da concorrência- que implicam a proibição de práticas discriminatórias em matéria de contratação pública.

Assim se explica que, de início, se tenha optado, em termos comunitários, por uma noção de contrato público «neutra» do ponto de vista do regime jurídico subs-tantivo -remetido para o foro interno de cada um dos ordenamentos jurídicos- dando-se prevalência, ao nível comunitário, às preocupações de ordem procedi-mental. Longe parecem estar, no entanto, esses tempos, tendo a evolução sido no sentido da construção de um regime jurídico comunitário cada vez mais exigente e diversificado nesta matéria, ao ponto de hoje em dia ser legítimo perguntar se não

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existirá já um verdadeiro Direito Comunitário da contratação pública.

2. Esboço de um Direito Comunitário da contratação pública?

Tendo presente a evolução do Direito Comunitário em matéria de contratação pública, julgo que é possível identificar três fases distintas, caracterizadas por níveis crescentes de intensidade de regulamentação. Assim, numa primeira fase dominam as preocupações procedimentais, numa segunda fase prevalecem as preocupações garantísticas e, finalmente, num terceiro momento, começam a surgir -de forma directa ou indirecta- influências comunitárias no regime jurídico substantivo dos contratos públicos.

Procuremos analisar a evolução do Direito Comunitário nesta matéria, não de um ponto de vista rigorosamente sequencial, em termos cronológicos, mas antes da perspectiva da influência desse regime sobre as duas premissas tradicionais da teoria do «contrato administrativo». Assim, veremos que a crescente regulamentação comunitária em matéria de contratação pública vem bulir, quer com a ideia tradicional de autonomia substantiva de alguns contratos da Administração (em face dos demais contratos da Administração Pública e em face dos contratos celebrados por particulares) quer com os critérios tradicionais de repartição de competência jurisdicional nesta matéria.

  1. 1.ª premissa: a tradicional autonomia substantiva do «contrato administrativo»

    Um primeiro passo corresponde às chamadas Directivas «clássicas» (e às suas antecessoras), as quais, aplicando-se apenas a alguns contratos e, essencialmente, a entidades públicas, continham sobretudo regras procedimentais. Nem por isso deixam de ter significativas implicações conceptuais, vindo bulir com a figura tradicional do «contrato administrativo». Na verdade, tais exigências procedimentais vão aplicar-se quer a «contratos administrativos» quer a «contratos de direito privado» da Administração Pública e, por outro lado, quer a entidades administrativas tradicionais quer a entidades públicas sob forma privada7. Ou seja, nos sistemas de inspiração francesa, começam a diluir-se os contornos, inicialmente nítidos, da figura do «contrato administrativo», como sinónimo de contratos da Administração Pública sujeitos a regime jurídico diferente -e mesmo «exorbitante»- relativamente quer aos contratos celebrados entre particulares quer aos contratos de direito privado da Administração Pública. A tendência, a partir de agora, nunca mais deixará de ser no sentido da uniformização das regras jurídicas aplicáveis aos diversos contratos públicos.

    Um segundo passo corresponde, a meu ver, à Directiva «sectores excluídos», a qual, contendo regras menos apertadas do que as das Directivas clássicas, as alar-ga, contudo, aos sectores inicialmente excluídos. Por outro lado, esta Directiva

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    implica grandes...

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