Comentários à leiquadro das contra-ordençoes ambientais

AutorNuno Salazar Casanova; Claudio Montero
CargoAdvogados, da Área do Contencioso e Direito Público da Uría Menéndez -Lisboa-.
Páginas57-69

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1. Introduçao

O direito contra-ordenacional, das contra-ordenaçoes ou também denominado por direito de mera ordenaçao social, nasceu em Portugal, inspirado no modelo alemão das ordnungswidrigkeiten, por via do Decreto-Lei n.º 232/79, de 24 de Julho, face à "necessidade de dispor de um ordenamento sancionatório alternativo e diferente do direito criminal", lacuna essa que teria "frequentemente impedido o legislador ou o executivo de lançar mão de uma gama diferenciada de sançoes ajustada à natureza e gravidade dos ilícitos a reprimir ou prevenir" (preâmbulo).

O referido diploma foi imediatamente desprovido de qualquer eficácia 1 e apenas trés anos mais tarde, ao abrigo da faculdade conferida pela Lei de autorizaçao legislativa n.º 24/82, de 23 de Agosto (art. 3.º), foi re-instituído, pelo Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, o ilícito de mera ordenaçao social e o respectivo processo, comummente designado por Regime Geral das Contra-Ordenaçoes ("RGCO") 2.

O RGCO, aprovado pelo Decreto-Lei nº 433/82, actualmente em vigor, foi entretanto alterado pelo Decreto-Lei n.º 356/89, de 17 de Outubro e pelo Decreto-Lei n.º 244/95, de 14 de Setembro. O diploma de 1989, para além da actualizaçao dos montantes máximos das coimas aplicadas a pessoas colectivas, limitou-se a alteraçoes de pormenor. Já o Decreto-Lei nº 244/95 procedeu a uma alteraçao substancial do RGCO 3. Entre as diversas modificaçoes introduzidas, destacam-se as regras sobre atenuaçao especial da coima em caso de erro não censurável, tentativa e cumplicidade; o aumento substancial do montante máximos das coimas bem como a possibilidade de elevaçao deste limite no caso de benefício económico calculável superior; a alteraçao das regras de concurso de contra-ordenaçoes; a revisão do regime das sançoes acessórias e respectivos pressupostos; a introduçao de normas Page 58 sobre a suspensão e interrupçao da prescriçao do procedimento; a reduçao dos prazos de prescriçao da coima; a explicitaçao dos direitos de audiéncia e defesa do arguido; o reforço do dever de fundamentaçao da decisão judicial; o alargamento substancial do prazo de interposiçao de recurso de impugnaçao judicial; a proibiçao da reformatio in pejus e a substituiçao da coima por prestaçao de trabalho a favor da comunidade.

As profundas alteraçoes introduzidas pelo Decreto- Lei nº 244/95 eram, com efeito, justificáveis face ao alargamento exponencial do espaço de intervençao do direito das contra-ordenaçoes. Já então se registava "um crescente movimento de neopuniçao, com o alargamento notável das áreas de actividade que agora são objecto de ilícito de mera ordenaçao social e, do mesmo passo, com a fixaçao de coimas de montantes muito elevados e a cominaçao de sançoes acessórias especialmente severas". Compreensivelmente -constava do preâmbulo daquele diploma- "não pode o direito de mera ordenaçao social continuar a ser olhado como um direito de bagatelas penais".

Se é certo que já em 1995 o direito das contra-ordenaçoes se havia alastrado a diversas áreas, actualmente não há sector de actividade que escape aos tentáculos deste direito jovem ou entidade administrativa que não esteja munida do seu próprio arsenal contra-ordenacional.

Na verdade, os ilícitos de mera ordenaçao social propagaram-se como uma epidemia por diversos diplomas legais, nas mais distintas áreas de actividade. E a inclusão de ilícitos contra-ordenacionais não se limitou a aspectos pontuais dos distintos regimes jurídicos mas, pelo contrário, atingiu os diplomas essenciais dos diversos sectores de actividade e ramos de direito. Para tanto, basta ver as contra-ordenaçoes previstas, por exemplo, no Código da Propriedade Industrial (secçao III do Capítulo II do Título III), no Regime Geral das Instituiçoes de Crédito e Sociedades Financeiras (Título XI), no Código dos Valores Mobiliários (Título VI), no Regime Jurídico das Urbanizaçoes e Edificaçoes (Subsecçao II da Secçao V do Capítulo III), ou no Regime Jurídico da Concorréncia (Capítulo IV).

O sucesso do direito das contra-ordenaçoes prendese com a parcial desjudicializaçao da sua aplicaçao, pela imediaçao das entidades administrativas e pelo seu regime flexível, menos garantístico do que o penal mas com coimas e sançoes acessórias por vezes bem mais pesadas - algumas das coimas vão até 2.500.000,00 e, no caso do Regime Jurídico da Concorréncia, até 10% do volume de negócios anual da empresa arguida (art. 43.º) 4.

O domínio ambiental também não escapou, obviamente, à ingeréncia contra-ordenacional. A Lei de Bases do Ambiente, aprovada pela Lei n.º 11/87, de 7 de Abril, estabelece, para além dos crimes previstos e punidos no Código Penal ou em legislaçao complementar, que as restantes infracçoes àquele diploma são consideradas contra-ordenaçoes puníveis com coima, em termos a definir por legislaçao complementar.

Porém, a quantidade de legislaçao específica ambiental em que são expressamente previstas contra-ordenaçoes é verdadeiramente assustadora. Veja-se, por exemplo, os seguintes diplomas, todos em vigor:

- Decreto-Lei n.º 196/89, de 14 de Junho (reserva agrícola nacional) - art. 36.º;

- Decreto-Lei n.º 8/90, de 4 de Janeiro (biodegradabilidade dos detergentes) - art. 6.º;

- Decreto-Lei n.º 47/90, de 9 de Fevereiro (uso e comercializaçao de diversas substâncias e preparaçoes perigosas) - art. 4.º;

- Decreto-Lei n.º 93/90, de 19 de Março (reserva ecológica nacional) - art. 12.º;

- Decreto-Lei n.º 19/93, de 23 de Janeiro (Rede Nacional de Áreas Protegidas) - art. 22.º;

- Decreto-Lei n.º 207/94, de 6 de Agosto (sistemas de distribuiçao pública e predial de água) - art. 28.º;

- Decreto-Lei n.º 82/95, de 22 de Abril (embalagem e rotulagem das substâncias perigosas) - art. 11.º;

- Decreto-Lei n.º 296/95, de 17 de Novembro (transferéncia de resíduos) - art. 8.º;

- Decreto-Lei n.º 138/96, de 14 de Agosto (transporte de resíduos) - art. 20.º;

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- Decreto-Lei n.º 153/96, de 30 de Agosto (radiaçoes ionizantes ou contaminaçao radioactiva) - art. 8.º;

- Decreto-Lei n.º 152/97, de 19 de Junho (águas residuais) - art. 14.º;

- Decreto-Lei n.º 235/97, de 3 de Setembro (protecçao de águas contra a poluiçao) - art. 10.º;

- Decreto-Lei n.º 366-A/97, de 20 de Dezembro (resíduos de embalagens) - art. 11.º;

- Decreto-Lei n.º 236/98, de 7 de Março (protecçao do meio aquático e qualidade da água) - art. 77.º;

- Decreto-Lei 140/99, de 24 de Abril (biodiversidade) - art. 22.º;

- Decreto-Lei n.º 69/2000 (regime jurídico da avaliaçao do impacte ambiental) - art. 37.º;

- Decreto-Lei n.º 164/2001, de 23 de Maio (acidentes graves que envolvem substâncias perigosas) - art. 40.º;

- Decreto-Lei n.º 152/2002, de 23 de Maio deposiçao de resíduos em aterros) - art. 45.º;

- Decreto-Lei n.º 69/2003, de 10 de Abril (exercício da actividade industrial) - art. 21.º;

- Decreto-Lei n.º 72/2003, de 10 de Abril (libertaçao no ambiente de organismos geneticamente modificados) - 35.º;

- Decreto-Lei n.º 78/2004, de 3 de Abril (emissões de poluentes para a atmosfera) - art. 34.º;

- Decreto-Lei n.º 180/2004, de 27 de Julho (poluiçao causada pelos navios) - art. 25.º;

- Lei n.º 58/2005, de 29 de Dezembro (lei da água) - art. 97.º.

- Decreto-Lei n.º 178/2006, de 5 de Setembro (regime geral da gestão de resíduos) - art. 67.º;

- Decreto-Lei n.º 9/2007, de 17 de Janeiro (Regulamento Geral do Ruído) - art. 28.º

Não obstante a proliferaçao excessiva de ilícitos contra-ordenacionais, certo é que não existe ainda verdadeiramente uma dogmática própria deste direito. Por um lado, o RGCO é muito incipiente, limitando-se a remeter subsidiariamente o regime substantivo das contra-ordenaçoes para o Código Penal e o adjectivo para o Código de Processo Penal; por outro, este diploma nunca conseguiu reflectir coerentemente a natureza híbrida que lhe é reconhecida, nomeadamente a natureza de procedimento administrativo até à fase judicial, com a aplicaçao dos preceitos correlativos do Código de Procedimento Administrativo.

Por outro lado, o legislador nem sempre procedeu à distinçao clara entre medidas de protecçao da legalidade, destinadas a satisfazer os interesses materiais tutelados pelas normas subjacentes (na tradiçao da medidas policiais de carácter repressivo), das sançoes administrativas de carácter pecuniário cuja verificaçao dá lugar à aplicaçao de uma coima. No primeiro caso, estamos no domínio da ilegalidade, em que se visa sobretudo reintegrar a realidade física ilegalmente alterada. No segundo, estamos no domínio da ilicitude, limitando-se as sançoes a exprimir a censura do ordenamento jurídico a práticas potencialmente lesivas da legalidade e, como tal, dependentes do requisito da culpa. "De certa forma esta confusão tem sido alimentada pelo próprio legislador, que ao não estabelecer pressupostos materiais claramente diferenciados para a prática destes actos permite que a sua identificaçao se faça por referéncia a um conceito genérico de infracçao" 5.

Também em parte fruto deste tratamento indistinto, o legislador ainda não logrou autonomizar o direito das contra-ordenaçoes como um verdadeiro ramo do direito, harmonizando convenientemente os princípios de direito administrativo e penal subjacentes. Resultado da confusão sistémica foi, por exemplo, o recente Regime Jurídico da Concorréncia, que estabelece que os procedimentos sancionatórios aí previstos respeitam o princípio da audiéncia dos interessados, o princípio do contraditório e demais princípios gerais aplicáveis ao procedimento administrativo e à actuaçao administrativa constantes do Código do Procedimento Administrativo 6.

Acresce ainda que não existe nem um regime substantivo nem uma tramitaçao comuns aos diversos ilícitos contra-ordenacionais, ou pelo menos comungando de um núcleo suficientemente denso Page 60 para se autonomizar como um auténtico regime geral. Alguns sectores...

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