Capitalismo e humanismo: um novo cenário para a organização econômica

AutorProf. Rafael Padilha Dos Santos - Prof. Dr. Liton Lanes Pilau Sobrinho
Cargo del AutorUniversidade UNIVALI (Brasil) - Universidade de Passo Fundo (Brasil)
Páginas241-261

Ver notas 1 y 2

Page 241

1. Introdução

As sociedades capitalistas apresentam um fluxo contínuo de capital pelas suas artérias impulsionado pelas relações capilares que ocorrem em seu corpo, como a compra de um pão na padaria, de sabonete no supermercado, de combustível em um posto de gasolina, a prestação de serviço educacional em uma instituição privada etc. Tal fluxo é essencial para manter a vitalidade do corpo social. Quando os Estados tributam esses fluxos de capital absorvem parte do poder que dimana desse capital para aumentar o próprio poder político e militar, para capacitar-se a realizar a prestação de serviços públicos. A compreensão desse fluxo de capital fornece um importante panorama do mundo atual.

Page 242

No entanto, esse movimento não é destituído de crises. É suficiente lembrar que o modelo neoliberal é corroborado pela crise econômica da década de 1970, o que consente inferir que a própria crise financeira atual representa uma oportunidade de repensar tal modelo econômico predominante para alcançar respostas mais satisfatórias à organização da humanidade.

Bauman 3 adverte que a economia move-se, atualmente, muito rápido, em uma velocidade tal que está sempre um passo à frente do Estado, de modo que este se demonstra inábil em orientar o movimento da própria economia. Além disso, a economia, sempre mais veloz, também supera limites territoriais. Como expressa Bauman: «Num mundo em que o capital não tem domicílio fixo e os fluxos financeiros estão bem além do controle dos governos nacionais, muitas das alavancas da política econômica não mais funcionam.» 4

Neste cenário, mais do que nunca, é preciso pensar-se acerca da possibilidade do humanismo e sua coligação à economia, tendo como subsídio teórico autores da filosofia humanista histórica. Justifica-se essa proposta considerando que a globalização solapa a ideia de um centro operativo, de um painel de controle ou de gabinete administrativo, produzindo uma sensação de ausência de controle e irresponsabilidade de ação, tornando premente a busca de parâmetros humanistas para que a economia seja aliada do bem comum planetário.

2. A crise como oportunidade de transição paradigmática

Existem três formas de economia: a) a economia fechada, que não é diferenciada, é independente, simples, a exemplo da família de agricultores que pratica agricultura de subsistência, em que o plano econômico é realizado pela coincidência entre a figura do produtor e do consumidor; b) a economia de mercado, que é uma economia diferenciada, base-ada em uma ampla divisão do trabalho, de modo que o objeto, a quanti-dade e o modo da produção são estabelecidos pela formação dos preços e pelo jogo da oferta e procura, permanecendo coordenada a uma estrutura social liberal, levando em consideração os direitos individuais; c) a economia controlada ou coletivista, que também é uma economia diferenciada, é o Estado a intervir na economia para regular os preços e o

Page 243

jogo do mercado, caracteristicamente coletivista, não liberal, que desvaloriza os direitos individuais e proclama a coletividade como objetivo. Essas três formas, é bom ressalvar, não existem no seu estado puro, já que em todo sistema econômico são encontradas na forma mista, porém, é possível identificar em cada sistema a predominância de uma ou outra forma (a exemplo do capitalismo, marcadamente de economia de mercado, e o socialismo, marcadamente de economia controlada) 5.

Enquanto a economia de mercado liga-se ao Estado Liberal de Direito, tendo na base teóricos como Adam Smith e David Ricardo; a economia controlada está mais ligada à ideia do Estado de Bem-estar Social (Welfare State), que realiza o dirigismo econômico governamental, que conta com teóricos como Arthur Cecil Pigou. No entanto, o modelo econômico predominante não foi o do Estado de Bem-estar Social, que nas décadas finais do século XX perde terreno para a concepção liberal, sendo tal retomada do liberalismo denominada de neoliberalismo, defendido pela Análise Econômica do Direito da Escola de Chicago, tendo por expoente Milton Friedman, embasando a administração econômica, na década de 1980, tanto de Margaret Thatcher, na Inglaterra, quanto de Ronald Reagan, nos Estados Unidos.

No neoliberalismo há a racionalidade econômica que implica em Estado mínimo, a defesa da propriedade privada, a livre iniciativa e o mercado como coordenador da economia, constituindo naturalmente uma ordem hábil em solucionar as consequências negativas em benefício do interesse público. No direito, é importante ressaltar o trabalho de Richard Posner 6, juiz de direito e professor do curso de Direito da Universidade de Chicago, que defendia que a economia de mercado é o instrumento para analisar as demandas legais, apregoando uma visão pragmática ao direito.

O modelo econômico do neoliberalismo de livre-mercado dominante é interpretado por Harvey 7 como um projeto bem-sucedido de classe que surgiu na crise dos anos de 1970 que consentiu a adoção de políticas draconianas para corroborar com o poder da classe capitalista, projeto este que foi ocultado por um discurso sobre liberdade individual, auto-nomia, responsabilidade pessoal, virtudes da privatização, livre-mercado e livre-comércio.

Page 244

Depois da Segunda Guerra Mundial, a primeira crise de escala mun-dial do capitalismo foi a de 1973 por força de um crash no mercado imobiliário global que desmantelou diversos bancos e afetou governos municipais como o de Nova York, que foi à falência em 1975, até ser socorrido. Essa experiência de intervenção do Estado para socorrer instituições financeiras torna-se um princípio pragmático da década de 80, um princípio que dita que o Estado deve, com veemência, proteger e salvar as instituições financeiras.

Apesar da ideia não intervencionista da teoria neoliberal, a crise fiscal da cidade de Nova York na década de 70 generalizou a adoção de tal princípio pragmático, o que se repetiu mais recentemente em 2008 pela crise das hipotecas subprime nos Estados Unidos que atingiu grandes bancos de investimento de Wall Street, tendo como marco decisivo o dia 15 de setembro de 2008, pela falência do banco de investimentos Lehman Brothers, paralisando assim os mercados de crédito e empréstimos com repercussão global.

O sistema financeiro forçou o socorro mediante intervenção do governo, de modo que houve a exigência de pagamento de U$ 700 bilhões de dólares por parte de funcionários e banqueiros do Tesouro norte-america-no, o que, com ressalvas, foi concedido pelo Congresso e pelo presidente George Bush para as instituições financeiras consideradas grandes demais para falir. Como afirma Harvey: «Era como se Wall Street tivesse iniciado um golpe financeiro contra o governo e o povo dos Estados Unidos.» 8

Morin 9 indica como causa dessa crise de 2008 um abuso do crédito por força do empobrecimento das famílias que queriam manter o seu nível de vida, e tal empobrecimento foi ocasionado pelo aumento dos preços mundiais das matérias-primas e cereais, fruto da especulação, o que muitas vezes está ligado à diminuição da produção de alimentos para produção de biocombustíveis, ao aumento progressivo da urbanização e, principalmente, por força da preponderância da especulação financeira e ausência de regulação na economia.

O interessante é perceber que o colapso no sistema financeiro por problemas nos mercados imobiliários não é novidade, pois repete o que ocorreu na década de 70 dentro dos próprios Estados Unidos; além disso, é preciso mencionar a década de 80, quando houve um boom japonês que terminou com colapso no mercado de ações e desvalorização da terra; da mesma forma, em 1992 o sistema bancário da Suécia teve que

Page 245

ser nacionalizado em razão da crise desencadeada na Noruega e na Finlândia por força do mercado imobiliário; o colapso no Leste e Sudeste Asiático de 1997 a 1998 teve por origem o influxo de capital especulativo estrangeiro alimentando o desenvolvimento urbano; e entre 1984 e 1992, nos Estados Unidos, crises nas poupanças e créditos imobiliários levaram mais de 1400 companhias de poupança e empréstimo e 1860 bancos a fecharem 10.

A resposta à crise da década de 70 desencadeou o fortalecimento do modelo neoliberal. Atualmente, a crise financeira mundial do século XXI representa a oportunidade para desenvolver-se um novo modelo econômico global, um próximo passo de evolução, pois, como afirma Harvey: «As crises financeiras servem para racionalizar as irracionalidades do capitalismo.» 11 Eis o momento para repensar o modelo econômico neo-liberal para propostas de humanismo na economia.

3. O capitalismo e seu ethos

A concepção capitalista orienta-se pela acumulação de capital. É preciso estar sempre produzindo excedentes, denominados lucros, para recapitalizar, investir parte do lucro em expansão, e encontrar novas saídas para mais lucros.

Os capitalistas nem sempre investem na produção, muitas vezes preferem investir, por exemplo, no mercado de ações, no qual não é necessariamente considerada a real situação fática das empresas nas quais as ações estão sendo compradas, sendo muito mais uma economia virtual do que uma economia real 12. Houve incentivo para a obtenção de lucros meramente especulativos pela desregulamentação dos mercados financeiros e criação de novos «produtos» financeiros, em que o capital aumenta sem envolver um investimento em atividades produtivas, e o capital rentável nas aplicações financeiras não passa por aplicações na produção 13. Há o empoderamento de certos operadores, como quem opera com fundos de pensão ou no mercado de futuros. Apenas como exemplo, no mercado de futuros circulava U$ 250 trilhões de dólares em 2005, tendo passado a U$ 600 trilhões de...

Para continuar leyendo

Solicita tu prueba

VLEX utiliza cookies de inicio de sesión para aportarte una mejor experiencia de navegación. Si haces click en 'Aceptar' o continúas navegando por esta web consideramos que aceptas nuestra política de cookies. ACEPTAR