Brasil: Capacidade legal e direito ao trabalho

AutorStella C. Reicher - Daniel Miziara - Fábio Ramazzini Bechara
Páginas201-210

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Ver notas 1, 2 y 3

Palavras Chave : Pessoa com deficiência intelectual - direitos humanos fundamentais - direito ao trabalho - capacidade legal - interdição - limites da curatela - autorização da Justiça do Trabalho e audiência no Ministério Público do Trabalho

Sumario: O presente estudo de caso trata essencialmente da defesa do direito ao trabalho, direito humano fundamental, assegurado nos termos da Constituição Federal de 1988, a todas as pessoas com ou sem deficiência intelectual.

Breves considerações sobre as instâncias superiores

O Supremo Tribunal Federal (STF) é composto por onze Ministros, indicados pelo Presidente da República e aprovados por maioria absoluta pelo Senado Federal. Trata-se do guardião da Constituição. Suas principais competências definem-se em conformidade com o acionamento:

(i) direto, através de ações que processa e julga originalmente, em única instância -competência originária; ou (ii) indireto, por meio de recursos ordinários ou extraordinários, que analisa em última instância- competência recursal4.

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O Superior Tribunal de Justiça (STJ), também conhecido como Tribunal da Cidadania, foi criado pela Constituição Federal de 1988, com a tarefa de uniformizar a interpretação da lei federal em todo o território nacional.

Ao STJ compete, nos termos do artigo 105 da Constituição Federal, processar em última instância as causas que envolvem matérias de natureza infraconstitucional e não relacionadas diretamente ao conteúdo do texto constitucional, examinando causas relativas a todas as vertentes jurisdicionais não-especializadas. Em sede recursal cabe-lhe, entre outras atribuições, julgar mediante Recurso Especial as causas decididas em única ou última instância pelos Tribunais Regionais Federais ou pelos tribunais dos Estados, do Distrito Federal e Territórios, quando a decisão recorrida contraria lei federal, julga válida lei ou ato de governo local contestado por lei federal ou dá à lei federal interpretação divergente da que lhe haja atribuído outro tribunal.

O STJ é também o órgão competente para julgar o mandado de injunção quando a elaboração da norma regulamentadora for atribuição de órgão, entidade ou autoridade federal da administração direta ou indireta, exceto o STF, a Justiça Militar, a Justiça Eleitoral, a Justiça do Trabalho e a Justiça Federal.

Breve descrição dos dados

Inicialmente é preciso esclarecer que a legislação civil brasileira ainda não dispõe dos chamados mecanismos de tomada de decisão apoiada, à luz do que propõe o artigo 12 da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência. O Código Civil vigente desde 2003 -instituído pela Lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002- segue o que já determinava o antigo Código Civil de 1916, pois trata a capacidade legal sob o enfoque da obrigatoriedade de submeter a pessoa com deficiência intelectual, entre outros legitimados passivos, ao processo judicial de interdição5.

Note-se ainda que, embora o Código de 2002 preveja a possibilidade de se buscar judicialmente a interdição total ou parcial da pessoa com deficiência intelectual com definição dos limites da curatela, a partir da delimitação da "incapacidade civil" absoluta ou relativa da pessoa, se

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gundo os artigos 1767 e 1772 do Código Civil, em sua maioria as decisões tendem a privilegiar a interdição absoluta6.

No caso concreto, a situação não foi diferente. Através do serviço de apoio oferecido pela Associação dos Pais e Amigos dos Excepcionais de São Paulo-APAE/SP7, a Sra. R.C.A., mãe de R.A.C.A., pessoa com deficiência intelectual, ingressou com ação judicial visando à interdição de sua filha. A ação, ajuizada por advogado voluntário da instituição, tramitou no primeiro grau de jurisdição, tendo a juíza competente reconhecido a incapacidade legal absoluta de R.A.C.A para a prática dos atos da vida civil.

Embora tenha a APAE/SP apresentado parecer multidisciplinar cujas conclusões recomendavam a interdição relativa, entendeu o Juízo de primeiro grau por acompanhar o resultado da perícia realizada pelo IMESC (Instituto de Medicina Social e de Criminologia do Estado de São Paulo), que sugeriu a interdição absoluta.

Muito embora referida ação continha requerimento para que se reconhecesse em sentença o direito fundamental ao trabalho, apesar da declaração de interdição, a juíza sentenciante não acolheu tal pretensão.

Diante de tal circunstância, interpôs-se recurso ao Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, com vistas à obtenção de um pronunciamento judicial expresso no sentido de que o decreto de interdição, independen-

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temente dos limites impostos à curatela, não inviabilizaria, em hipótese alguma, o acesso da pessoa com deficiência intelectual ao mercado de trabalho. Ocorre que, novamente, referida pretensão foi negada, sob o argumento de que tal questão seria da competência da Justiça do Trabalho e não da Justiça Comum.

Entendeu a 1ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo que "(...) o acesso ao mercado de trabalho depende de circunstâncias objetivas de caráter favorável, tendo em vista a condição da interdita, representada por sua mãe. Isso dependerá de apreciação, no caso concreto. Não é possível dar uma autorização genérica, causando risco à integridade física e mental da interdita. Se houver proposta de emprego, deverá ser buscada autorização da Justiça do Trabalho, com audiência do Ministério Público do Trabalho. Destarte, a sentença deve ser mantida como lançada".

Em virtude da necessidade de se modificar esse equivocado entendimento - relativo à necessidade de outorga de prévia validação judicial como forma de se permitir o acesso da pessoa com deficiência intelectual ao mercado de trabalho - é que foram aparelhados dois recursos às instâncias superiores, um dirigido ao Superior Tribunal de Justiça e outro ao Supremo Tribunal Federal, competentes para o exame de eventual confronto da decisão recorrida com a Constituição Federal e com a legislação federal infraconstitucional, respectivamente.

Os recursos foram juridicamente fundamentados no artigo 6º, caput, e 7º, caput e inciso XXXI, da Constituição Federal, que dispõem, respectivamente, sobre o direito ao trabalho enquanto direito social e sobre a proibição de qualquer discriminação no tocante ao salário e aos critérios de admissão do trabalhador com deficiência8.

Além disso, sob o argumento de que a competência para dirimir questões relativas ao estado e à capacidade jurídica das pessoas é da Justiça Estadual e não da Justiça do Trabalho, alegou violação do artigo 114, caput e incisos I a IX, da Constituição Federal, os quais delimitam as competências da Justiça do Trabalho, bem como dos artigos 869, 91, 92 e

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93 do Código de Processo Civil, em vista dos critérios que devem nortear a competência para o julgamento de causas relacionadas ao estado e à capacidade das pessoas.

Por se tartar de um leading case na área, o patrocínio da causa estendeu-se à Federação Nacional das APAE’s, que habilitou-se no processo na qualidade de amicus curiae -...

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