As sindicâncias judiciais em Portugal no século XIX: controlo ou mito

AutorIsabel Graes
Páginas321-346

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Isabel Graes

Universidade de Lisboa

SUMÁRIO: Apresentação. Introdução. 1. As residências nas duas primeiras décadas de oitocentos. Noção. Transição e novas regras. 2. Do modelo legislativo ao direito efectivamente aplicado. 3. As tentativas de reforma. 4. A sindicância extraordinária aos desembargadores da Relação do Porto (1852-1860). 5. Conclusão.

Introdução

A independência do Poder Judicial, com quanto instituída somente no interesse geral da sociedade, tem sido considerada entre nós com extensão tão ampla, que parece ter posto os juízes ao abrigo de toda a responsabilidade, sem maior atenção á ordem pública, e á boa Administração da Justiça (Relatório do Ministério dos Negócios Eclesiásticos e de Justiça, Secretaria d'Estado dos Negócios Eclesiásticos e de Justiça, 28 de Fevereiro de 1851, Félix Pereira de Magalhães).

Se as sessões das cortes vintistas são caracterizadas por elevados e acesos clamores contra o corpo judiciário, frequentemente criticado por uma total dependência face ao monarca, o anseio de mudança, ainda que vociferado amiúde, não provocou alterações imediatas sobretudo no que diz respeito ao estatuto da magistratura judicial. Apenas a substituição da classificação da designação "juiz de fora" pela de "juiz de direito" e a extinção dos exames de ingresso então denominados por leitura de bacharéis pareciam ser os aspectos inovadores, face a um regime jurídico que continuava a manter as instituições setecentistas, donde o único tema a que convinha dar relevo se prendia com a extinção do tribunal do Santo Ofício e a única exigência que se tornava imperioso acentuar era o retorno de um monarca que tinha feito da antiga província ultramarina a capital do reino. Todavia, o súbito falecimento do governante, em 1826, e a subsequente guerra civil que entrecortou o início do reinado do seu filho primogénito e da sua neta, foram alguns dos aspectos que fragilizaram a situação político-jurídica e que protelaram a criação e aplicação das soluções mais afeitas ao novo ideário tecido ao sabor dos matizes libertadores das revoluções liberais.

Por este motivo, ao dilatar-se no tempo a vigência dos antigos preceitos legislativos, foram mantidas as instituições judiciárias centenárias de que eram exemplo o Desembargo do Paço e a Casa da Suplicação, nas quais residia sobretudo a resposta para o conhecimento de um possível controlo e apreciação do desempe-

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nho da actividade judiciária. Se a selecção, nomeação e subsequentes designações e transferências estavam adstritas ao primeiro, ao qual pertencia ainda mandar sindicar os magistrados de primeira instância, segundo o modelo introduzido nas Ordenações do Reino; cabia à Casa da Suplicação conhecer em grau de recurso das sentenças que eram proferidas, detendo desde a disposição legislativa de 18 de Agosto de 1769 competência para lavrar assentos com força de lei, afastando assim qualquer avocação desta prerrogativa por parte das demais Relações do Reino. A moldura da fiscalização judiciária esteve assim desenhada até à reforma de Mouzinho da Silveira, o que não impediu que, quer nos anos que a antecederam, quer nos anos que se lhe seguiram, o tema tenha sido sobejamente tratado pela doutrina e pela oratória parlamentar que não hesitavam em reconhecer uma notória imiscuição dos poderes moderador e executivo na esfera do poder judiciário, aspectos que não foram alheios à doutrina de Silvestre Pinheiro Ferreira, nem ao discurso de Gon-çallo Tello de Magalhães Collaço que citaria a este respeito o seu caso individual. Estas são algumas das dificuldades nevrálgicas sentidas ao longo de toda a centúria que assistiria ao nascimento e ao ocaso do Liberalismo e que tentaria impor um novo arquétipo de controlo da prática judiciária.

As residências nas duas primeiras décadas de oitocentos Noção. Transição e novas regras

Presente na sala da Câmara dos Deputados e tomado por um ideário que defendia a separação de poderes, Borges de Carneiro dirigia, em 1 de Junho de 1821, as seguintes palavras: ... os magistrados prevaricão, e a razão de prevaricarem he terem a certeza de que hão-de escapar da pena. Tal era a razão para a administração da justiça ter chegado ... ao estado que todos sabem. O corpo todo da magistratura he o mais respeitável, mas há membros discalos que a desacreditão; as queixas das partes não infamão a magistratura, de certo não são ellas que a desacreditão, são as Auctoridades superiores, que não castigam as inferiores; estas he que fazem reflectir o vicio de alguns membros no corpo todo; o que infama a magistratura, he chegar um secretario de estado a não castigar os ministros que não cumprem os seus deveres e castigallos asperamente.(...) muitos dos magistrados querem encobrir seos collegas, muitas das partes queixão-se das violencias dos magistrados; porem os magistrados superiores encobrem estas violências, e o que he mais ainda por cima querem que as partes fiquem reputadas calumniadores...2. Não obstante a ferocidade da crítica tecida, não é possível concluir que o mecanismo da sindicância fosse desconhecido, dado que desde muito cedo estava contemplado na legislação régia enquanto sinónimo da recta aplicação da justiça3. No entanto, o juízo valorativo de Borges de Carneiro ia mais além e denunciava um certo proteccionismo corporativo, legitimador de uma política de desresponsabilização e de uma constante impunidade viabilizada pelo modelo vigente.

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Residências realizadas entre 1800-18204

Com a sua génese nos textos de ius commune5, a ideia de fiscalização da conduta do corpo judiciário nascera com o conceito de prestação de contas presente

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nos arquétipos moldados nas visitas pastorais a que estava associado não só o rigor, mas também o medo face à punição, como o demonstrara Alciato, segundo as palavras de Pedro Barbas Homem6. Os exames levados a cabo para conhecimento da vida e costumes dos magistrados, dos seus ofícios e dos respectivos erros seguiam uma linha ora inquisitorial ora acusatória, caso dependesse de uma autoridade superior ou da iniciativa de um particular com vista à garantia dos direitos individuais. Deste modo, eram sindicados os corregedores, ouvidores, provedores e juízes de fora, designando-se como residência o exame tirado pelo tempo e lugar em que o ofício fora exercido. Note-se que o exame era solicitado pelo próprio sindicado no final do período de judicatura, uma vez que dele dependia uma possível recondução no cargo ou a progressão no cursus honorum, caso o sindicante finalizasse o procedimento de averiguações com a lavratura de uma conclusão favorável, confirmada, mais tarde, pelo tribunal do Desembargo do Paço.

Assim, se aos referidos magistrados eram tiradas as residências, aos juízes ordinários era aplicada a devassa geral (OM. I.42; OF.I.60 e I.65.39), tal como aos advogados, donde os da Casa da Suplicação eram examinados pelo respectivo regedor. Em suma, as acções de controlo eram uma prática constante cujo objectivo consistia em aferir se aquele que exercia a justiça em nome do monarca (e, deste modo, em nome de Deus) o cumpria exemplarmente7. O processo seguido tinha uma natureza informativa, a que não era alheio o respeito por um cerimonial rígido, bem como pelo segredo de justiça e pela improrrogabilidade do prazo de trinta dias8, cabendo a sua condução a um corregedor ou desembargador nomeado para o efeito pelo já mencionado tribunal do Desembargo do Paço. Dado que a habilitação para o exercício da função dependia da realização regular e conclusão favorável destes exames, cujo procedimento impunha a saída do sindicado da respectiva comarca logo no início dos trabalhos, o Aviso de 3 de Setembro de 1809 determinou que as residências deveriam ocorrer apenas quando fosse nomeado o substituto para que algumas comarcas não ficassem desprovidas do respectivo magistrado.

Dos processos analisados, relativamente ao período compreendido entre 1800-1820 que foram realizados no espaço geográfico referente à província da Estremadura, Corte e Ilhas 9, podemos concluir que as apreciações finais reflectiam, quase que sem excepção, a conduta impoluta do magistrado sindicado, donde se concluía que tinha servido bem o lugar, com limpeza de mãos, bom acolhimento para com as partes, sendo declarado bom despachador e fazendo com muito cuidado as mais obrigações do seu cargo. Por esta razão não eram enunciadas falhas, nem resultava provada culpa alguma, ao invés, eram salientadas as boas qualidades de um bom ministro. Frise-se que, se pontualmente, as testemunhas arroladas denunciavam algumas irregularidades ou mesmo a prática de abusos de poder, as acusações, em

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regra, acabavam por resultar infundadas, pelo que, ao final, não havia qualquer pena a aplicar. Importa não esquecer que a residência não tinha por objectivo uma análise do mérito das decisões tomadas, mas apenas conhecer da conduta do magistrado10, ou seja, da probidade deste último, como já tivemos ocasião de expor em trabalhos anteriores11, pelo que apenas eram inspeccionados os actos praticados com dolo e culpa lata. Este é um dos motivos pelos quais, a doutrina moralista e política acusava a excessiva brandura destes exames periódicos, enquanto a literatura jurídica apelava para que não houvesse demasiada severidade, até porque quem sindicava também não estava totalmente imaculado, como acentuaria Lopes Praça no decorrer do século XIX. Havendo lugar a apuramento e confirmação da culpa, as penas consagradas correspondiam à admoestação, quer em privado quer publicamente, tendo esta última lugar quando se tratasse de uma situação de reincidência, caso aliás em que a decisão final cabia...

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