As novas tecnologias e o direito do trabalhador à intimidade em portugal

AutorTiago Pimenta Fernandes
Cargo del AutorDoctor en Derecho. Profesor Auxiliar de la Universidade Portucalense. Asistente Invitado del Instituto Superior de Contabilidad y Administración de Oporto. Abogado. Portugal
Páginas229-244

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I O direito à intimidade do trabalhador em portugal. Considerações gerais

Não constituirá uma novidade afirmar-se que o texto constitucional português, à semelhança de muitos outros, consagra um conjunto de direitos, liberdades e garantias a favor dos trabalhadores (cfr. Artigos 53.º a 59.º da Constituição). Contudo, a proteção legalmente conferida ao trabalhador em Portugal não se esgota nos referidos preceitos, na medida em que, como ensina MONTEIRO FERNANDES, muitos outros direitos fundamentais constitucionalmente previstos - próprios do estatuto geral de "cidadão" - poderão ser colocados em jogo em situações próprias de ambientes de trabalho1. A "transposição" de tais direitos para o domínio laboral é inclusivamente efetivada pelo

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próprio Código do Trabalho2, na Subsecção II ("Direitos de personalidade") da Secção II, do Capítulo I, que por sua vez integra o Livro I do referido diploma.

É no âmbito do mencionado núcleo de proteção legal que importa que destaquemos o direito à reserva da intimidade da vida privada, previsto expressamente no artigo 16.º do CTrab, direito esse que surge concretizado nos artigos subsequentes desse diploma e que deverá ser conjugado com os arts. 26.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa (CRP) e 80.º do Código Civil (CCiv). Aí se lê que "1. O empregador e o trabalhador devem respeitar os direitos de personalidade da contraparte, cabendo-lhes, designadamente, guardar reserva quanto à intimidade da vida privada; 2. O direito à reserva da intimidade da vida privada abrange quer o acesso, quer a divulgação de aspetos atinentes à esfera íntima e pessoal das partes, nomeadamente relacionados com a vida familiar, afetiva e sexual, com o estado de saúde e com as convicções políticas e religiosas". Trata-se de um direito que, tal como refere M.ª ROSÁRIO PALMA RAMALHO3, deve ser entendido em termos amplos, de modo a nele se incluírem os aspetos ligados às esferas íntima, pessoal e familiar do trabalhador.

O reconhecido efeito horizontal dos direitos fundamentais impõe o seu respeito não apenas a entidades públicas, mas também a entidades privadas, e, assim, também, no contexto das relações laborais de direito privado. A vinculação, em qualquer caso, a estes preceitos constitucionais protetores de direitos, liberdades e garantias configurase como uma consequência direta do disposto no artigo 18.º, n.º 1 CRP, que lhes atribui uma eficácia erga omnes4. Assim, o reconhecimento do direito à reserva da intimidade da vida privada do trabalhador implica a superação de uma distinção entre um estatuto geral de cidadão e um estatuto de trabalhador que, por força da relação de subordinação que caracteriza o contato de trabalho, ver-se-ia à partida diminuído nas liberdades que lhe assistem.

Por seu turno, o artigo 8.º, n.º 1, da Convenção para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais estatui que "qualquer pessoa tem direito ao respeito da sua vida privada e familiar, do seu domicílio e da sua correspondência". A respeito da integração do direito internacional no plano nacional, o art. 8.º da CRP consagra entre nós um sistema de receção automática e plena daquele, segundo o qual as normas internacionais serão diretamente aplicáveis no ordenamento jurídico português, sem necessidade de serem convertidas em atos normativos internos. Concretamente, e no que ao direito internacional convencional diz respeito, dispõe o mencio-

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nado preceito que "as normas constantes de convenções internacionais regularmente ratificadas5 ou aprovadas vigoram na ordem interna após a sua publicação oficial e enquanto vincularem internacionalmente o Estado Português". Pelo exposto, as disposições da mencionada convenção vigoram na nossa ordem jurídica, sem necessidade de qualquer transposição através de legislação interna, constituindo, por isso, uma importante fonte externa de Direito do Trabalho. No que respeita ao posicionamento do direito internacional convencional no plano interno, em face das normas constitucionais e da lei ordinária, o entendimento genericamente aceite é aquele segundo o qual as normas internacionais ocupam uma posição infraconstitucional (na medida em que, em regra, as convenções internacionais não prevalecem sobre a Constituição portuguesa6) e supralegal (prevalecendo já sobre a lei ordinária)7. Do mesmo modo, o artigo 8.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, sob a epígrafe "Proteção de dados pessoais", dispõe que "[t]odas as pessoas têm direito à proteção dos dados de carácter pessoal que lhes digam respeito", e o parágrafo 14 da Recomendação do Conselho da Europa sobre o tratamento de dados pessoais no contexto de emprego [CM/REC(2015)5], emitida a 1 de abril de 2015, refere claramente que "o conteúdo, envio e receção de comunicações eletrónicas privadas no trabalho não devem ser mo-nitorizados em qualquer circunstancia".

Ainda no plano internacional, destaque para a Convenção n.º 108 do Conselho da Europa - "Para a proteção das pessoas relativamente ao tratamento automatizado de dados de caráter pessoal" -, que tem como objetivo "garantir, no território de cada Parte, a todas as pessoas singulares, seja qual for a sua nacionalidade ou residência, o respeito pelos seus direitos e liberdades fundamentais, e especialmente pelo seu direito à vida privada, face ao tratamento automatizado dos dados de carácter pessoal que lhes digam respeito ("proteção dos dados")", e que assenta no alargamento da proteção dos direitos e das liberdades fundamentais de todas as pessoas, nomeadamente o direito ao respeito

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pela vida privada, tendo em consideração o fluxo crescente, através das fronteiras, de dados de carácter pessoal suscetíveis de tratamento automatizado.

II As novas tecnologias ao serviço do empregador e a reserva da intimidade da vida privada do trabalhador

Antes da entrada em vigor do Código do Trabalho de 2003, exceção feita a algumas disposições constantes de regimes laborais especiais, nomeadamente, referentes ao trabalho no domicílio8 e ao trabalho do praticante desportivo9, inexistiam quaisquer disposições normativas do campo laboral direta10 e especificamente destinadas à proteção do direito à reserva da intimidade da vida privada do trabalhador, pelo que a proteção deste direito era assegurada através do recurso a outros diplomas, nomeadamente, à Constituição da República Portuguesa, ao Código Civil, ao Código Penal e à Lei da Proteção de Dados Pessoais11. Contudo, a progressiva (senão galopante) introdução de novas tecnologias no local de trabalho tem representado um autêntico assalto à reserva da intimidade da vida privada do trabalhador, o que obrigou o legislador a tutelar a utilização desses mecanismos. Daí que o atual Código do Trabalho dedique alguma da sua normativa à possibilidade de o empregador controlar a prestação do trabalhador através das novas tecnologias de informação e comunicação, designadamente, nos seus arts. 20.º ("Meios e vigilância à distância"), 21.º ("Utilização de meios de vigilância à distância") e 22.º ("Confidencialidade de mensagens e de acesso a informação"), preceitos que analisaremos mais adiante.

Como bem assinala MARIA REGINA REDINHA "[a] utilização das novas tecnologias da informação e comunicação no ambiente de trabalho fez aumentar exponencialmente o risco de devassa da esfera de reserva privada e pessoal do trabalhador, ao alargar a sua exposição ao controlo do empregador e ao diluir as próprias noções de tempo e local

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de trabalho. Por outro lado, uma vez que se trata de um domínio relativamente novo, a cada passo surgem problemas de redefinição das fronteiras da subordinação, renovando a tensão entre tutela da personalidade e extensão do poder de direção do empregador. Se o empregador é o proprietário dos equipamentos e sistemas tecnológicos instalados na empresa, e portanto adstritos à execução da prestação de trabalho, o trabalhador, no tempo e local de trabalho, não deixa de ser titular do direito a uma zona de reserva pessoal, pelo que a articulação de ambos os direitos pode ser, na prática, de difícil alcance"12. A regulação legal das novas tecnologias ao serviço do empregador tem, assim, subjacente uma colisão de direitos e de interesses: por um lado, o empregador tem, como corolário do seu poder de direção e também do direito de propriedade sobre os meios de produção, o poder de vigiar e de controlar a prestação do trabalho e a utilização que é feita dos instrumentos de laboração; por outro lado, o trabalhador tem direito à reserva da intimidade da sua vida privada13.

Contudo, aceita-se que este direito à reserva da intimidade da vida privada deva conviver com o poder de controlo do empregador, uma vez que este tem o direito, na fase de execução do contrato de trabalho, de controlar e vigiar a prestação realizada, poder esse que é inerente ao próprio contrato de trabalho, até porque "não teria lógica que o empregador pudesse ditar ordens e instruções ao abrigo do seu poder diretivo e, depois, não pudesse verificar se elas estariam a ser bem cumpridas"14. Ainda assim, se é verdade que o empregador tem o direito de verificar e controlar a atividade laboral dos trabalhadores e de apurar as faltas passíveis de justificarem procedimentos disciplinares, enquanto titular do poder de controlo e de vigilância, tal poder deve conciliar-se com exigências de legalidade, lealdade, proporcionalidade e de boa-fé, bem como com a proteção da dignidade e da privacidade dos trabalhadores15.

A este respeito, TERESA COELHO MOREIRA refere que o poder de controlo do empregador conheceu...

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