As cláusulas de declarações e garantias no direito português - reflexões a propósito do acórdão do Supremo Tribunal De Justiça de 1 de março de 2016

AutorManuel Cordeiro Ferreira - Catarina Tavares Loureiro
CargoAdvogados
Páginas15-30

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1 · Introdução

Num acórdão datado de 1 de março de 2016, o Supremo Tribunal de Justiça ("STJ") português veio reconhecer a validade das chamadas cláusulas de declarações e garantias (traduzidas do inglês representations & warranties), enquanto instrumento fundado na autonomia contratual, e defender que, caso se venha a concluir pela falta de veracidade dessas declarações, aquele que as prestou estará obrigado a repor a situação que existiria caso as declarações e garantias fossem verdadeiras. Esta foi, tanto quanto sabemos, a primeira vez que o nosso tribunal superior se pronunciou sobre as chamadas cláusulas de declarações e garantias enquanto regime autónomo de responsabilidade civil contratual 1.

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Oriundas do Direito inglês, as cláusulas de declarações e garantias são hoje largamente utilizadas na prática jurídica portuguesa, embora tenham merecido ainda pouca atenção por parte da doutrina 2 e da jurisprudência nacional.

A introdução de cláusulas de declarações e garantias em contratos (em particular, nos contratos e compra e venda de participações sociais como veículo de transmissão de uma empresa, que será o foco do presente artigo) insere-se num movimento maior: o da influência anglo-saxónica na prática contratual portuguesa, em que cada vez mais os contratos procuram conter um sistema regulatório próprio e auto-suficiente, com uma descrição bastante detalhada e complexa da relação contratual. A opção por este modelo contratual é seguida não só quando existe algum elemento de conexão internacional (numa tentativa de apresentar aos contraentes um modelo com o qual estejam mais familiarizados) mas também já nos contratos puramente "domésticos".

O objetivo das cláusulas de declarações e garantias nestes contratos de compra e venda é o de alocar risco resultante do contrato, garantindo a existência de determinadas características ou qualidades do objeto do negócio ao comprador solucionando a falta de visibilidade que este terá relativamente a esse objeto - o vendedor assegura um determinado "estado de coisas" à data da aquisição, responsabi-lizando-se pela sua não verificação.

Para a larga difusão deste instrumento de repartição de risco contratual nos contratos de compra e venda de participações sociais na prática jurídica portuguesa contribuiu (para além da mencionada influência anglo-saxónica) o facto de não ser claro que o regime da compra e venda de bens onerados ou o regime da compra e venda de coisas defeituosas previstos no Código Civil português ofereçam proteção ao comprador que adquire uma empresa através da aquisição de participações sociais. Isto porque, desde logo, numa compra e venda de ações ou quotas o objeto do negócio são as participações sociais pelo que, numa interpretação literal, apenas haveria que atender aos vícios, ónus ou limitações das frações do capital social.

Hoje em dia, porém, parece largamente maioritária a posição que admite a equiparação entre a venda de participações sociais e a venda de empresa, nos casos em que se concluir, por interpretação do contrato, que se está perante uma verdadeira compra e venda do estabelecimento 3. Ainda assim, não só permanecem algumas dúvidas quanto à possibilidade de aplicação sem adaptações daqueles regimes legais, como se entende que, em muitos pontos, os mesmos podem não ser adequados para dar resposta às preocupações do comprador de uma empresa.

Neste contexto, as declarações e garantias, ao aparecerem como um sistema maleável pelos contraentes, e que oferece um regime "garantístico automático", tornou-se mecanismo indispensável e, a par das cláusulas que determinam as consequências para a sua "violação", das cláusulas mais discutidas deste tipo de contratos durante a sua negociação.

A relevância prática das declarações e garantias, associada à sua fraca construção doutrinal e jurisprudencial, e ainda ao desconhecimento do regime a que a cláusula está sujeita nas suas origens, parecem-nos razões mais do que suficientes para, na esteira deste recente e importante acórdão, refletirmos sobre as conclusões aí extraídas e utilizá-las como mote para analisar (e questionar) algumas vertentes práticas emergentes da utilização de cláu-

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sulas de declarações e garantias, e outras que lhes estão associadas, na contratação comercial sujeita a lei portuguesa.

Começaremos, por isso, por analisar o mencionado acórdão do STJ e as posições assumidas pelos juízes do tribunal superior, para depois investigarmos as origens desta figura e finalmente determo-nos nal-gumas questões que se colocam (e permanecem por esclarecer) na sua utilização e conjugação com o ordenamento jurídico português.

2 · O acórdão do supremo tribunal de justiça
2. 1 · Breve resumo dos factos e do Direito

A situação de facto que está na base do referido acórdão de 1 de março de 2016 do STJ é, de forma sucinta e tendo em conta o que aí se descreve, a seguinte: em dois contratos de compra e venda de ações representativas de duas sociedades portuguesas foram prestadas, pelas vendedoras, várias declarações e garantias relativas não só às participações sociais (nomeadamente, quanto à sua titularidade e (in)existência de ónus e encargos) mas também relativas às "sociedades-alvo" (entre outras, livros e documentos de prestação de contas, impostos e contribuições para a segurança social).

As vendedoras declaravam ainda nos respetivos contratos que toda a informação prestada e documentação entregue à autora (compradora) era verdadeira, completa e exata, não omitindo qualquer facto, circunstância ou omissão que pudesse alterar o respetivo conteúdo ou que a pudesse tornar inve-rídica ou enganosa. Num dos contratos, há também referência ao facto de as vendedoras terem conhecimento e aceitarem que as compradoras adquiriam as ações tendo em conta as declarações e garantias prestadas no contrato, garantindo, de forma irrevogável, incondicional e sem reservas, a veracidade e a exatidão dessas declarações e garantias 4.

Nos termos das cláusulas de indemnização dos referidos contratos, as vendedoras obrigavam-se a indemnizar as compradoras "por todos os prejuízos, lucros cessantes, dívidas, diminuições patrimoniais, perdas, custos (abarcando, sem limitação, custas judiciais, honorários razoáveis de advogados, solicitadores e outros consultores) e danos ("Prejuízos"), decorrentes direta ou indiretamente: a) Da inexatidão ou imperfeição das declarações e garantias efetuadas pelos vendedores no presente contrato e, em particular, as constantes da Cláusula 5ª ("Declarações e Garantias dos Vendedores") referentes a jactos, omissões ou obrigações anteriores à data do contrato, que não tenham sido divulgados à Autora, não constem do presente contrato e /ou das Contas Anuais; (...)".

Ora, no contexto de auditorias financeiras, fiscais e legais realizadas, após a aquisição, às sociedades-alvo e subsidiárias, verifica-se a existência de determinados factos que põem em causa a veracidade das declarações e garantias prestadas (entre outros, e meramente a título de exemplo, falta de provisão suficiente para alguns saldos devedores de clientes, não contabilização de determinadas quantias, não reconhecimento nas demonstrações financeiras de determinadas responsabilidades com trabalhadores, falta de provisão para perdas potenciais com os encargos acrescidos de determinadas obras a cargo de uma das sociedades).

Na análise que faz dos pedidos feitos pelas recorrentes (condenação das rés ao pagamento de determinadas quantias em virtude da falta de veracidade de certas declarações e garantias), o STJ esclarece que "as convencionadas cláusulas de garantia não podem deixar de ser consideradas, legalmente, admissíveis, porquanto emanadas da liberdade contratual que dá materialização à autonomia privada das partes, não se sustentando e, muito menos, demonstrando que o respetivo conteúdo exorbite, por qualquer modo, dos limites da lei (art. 405º, nº1, do CC)".

Qualificando as obrigações assumidas pelos emitentes de tais declarações como obrigações de garantia, nas quais "o devedor promete mais do que nas obrigações de resultado, pois assume o risco de não verificação do efeito pretendido" 5, refere que neste tipo de obrigações "o devedor responde "haja o que houver"", "não lhe sendo lícito invocar a causa estranha que tenha tornado a prestação impossível".

Quanto às consequências que derivam de uma violação dessas declarações e garantias, os juízes do

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STJ parecem acolher a perspetiva apresentada pelos recorrentes nas suas conclusões de recurso. Aí, começando por esclarecer que "a cláusula de garantia não se reconduz a qualquer obrigação de comportamento, mas à assunção do risco da desconformidade entre a situação declarada e a real situação das sociedades objecto do negócio", pelo que aqueles que as prestam "respondem assim de forma automática, isto é, independentemente da verificação dos pressupostos da responsabilidade civil - facto ilícito, culpa ou dano -por qualquer divergência entre o declarado contratualmente e a realidade, desde que abrangida pela cláusula de garantia", defendem os recorrentes (compradores) que a violação de declarações e garantias não pode...

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