O aborto no anteprojeto do novo código penal brasileiro: reflexões jurídicas e bioéticas (Português)

AutorCarolina Bruschi Silva - Nilza Maria Diniz - Renato Lovato Neto
CargoAcadêmica do Curso de Ciências Biológicas da Universidade Estadual de Londrina - Doutora em Ciências Biológicas (Genética) pela Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto - Acadêmico do Curso de Direito da Universidade Estadual de Londrina ? UEL, Brasil, e membro associado do CONPEDI
Páginas35-50

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1. Introdução

A temática do aborto constitui matéria polêmica que envolve as mais diversas facetas do homem e resulta em discussões de cunho religioso, moralista, ético, demagógico, político, biológico, médico, jurídico, econômico e qualquer outro ponto da natureza humana. Do mesmo modo, estes embates, por envolverem princípios e direitos fundamentais e humanos, muitas vezes empregam direitos de mesma natureza, ora para sustentar argumentos a favor da manutenção da conduta como crime tipificado, ora para defender a descriminalização do aborto.

Com este complexo ambiente e partindo do pressuposto de que ponderações nesta seara podem findar como retóricas de cunho falacioso ou religioso, a pesquisa busca tratar da proposta para autorização da interrupção da gravidez trazida pelo Anteprojeto de Código Penal proposto por Comissão de Juristas no Senado, que dá um enfoque totalmente diverso do atualmente presente na legislação criminal.

O artigo inicia com a análise do tratamento despendido pela proposta e de sua comparação com a tipificação do crime de aborto atual, averiguando as duas novas hipóteses aonde a conduta não é tratada como delito, quais sejam, a do aborto de anencéfalo - tema recentemente abordado na ADPF n.º 54 do STF - e na interrupção da gravidez pela vontade da mulher, quando ela não tem o amparo psicológico em seu âmago para cumprir com a maternidade, passando pela justificativa da escolha da Comissão pelos critérios apontados. Cabe dizer que optamos pelo corte metodológico no sentido de focar a pesquisa na segunda hipótese, inovadora, devido ao acórdão da Corte Superior.

O capítulo seguinte apresenta algumas ponderações sobre fundamentações para a autorização do aborto, quanto ao conflito entre direitos da mulher e do nascituro e regras de solução via princípio da proporcionalidade, encerrando com a abordagem das premissas a serem consideradas para consolidar a interrupção da gestação como um direito fundamental da mulher.

Para tanto, o artigo adota o método científico com pesquisa bibliográfica, recorrendo à doutrina brasileira e estrangeira, bem com a legislação alienígena, com o objetivo de compreender a nova tipificação do aborto no Anteprojeto proposto pelo Senado brasileiro.

2. O aborto no Anteprojeto

O Senado Federal em dez de agosto de 2011 aprovou a criação da Comissão de Juristas para a Elaboração de Anteprojeto de Código Penal, mediante o Requerimento n.º 756 de 2011 combinado com o n.º 1.034/2011.

O texto foi entregue em vinte e sete de junho de 2012, com uma redação que traz diversas inovações na sistemática do Direito Penal, com elementos tanto na Parte Geral como na Parte Especial, aonde foram inclusos temas polêmicos como o do bullying (nomen iuris de intimidação vexatória), stalking (perseguição insidiosa ou obsessiva) e eutanásia, além de alterações em crimes já existentes, tal como o aborto, objeto do presente estudo.

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A necessidade de um novo diploma penal advém do fato de que a legislação remonta ao ano de 1940, quando promulgado o Decreto-lei n.º 2.848/40, contexto totalmente diverso do encontrado nos dias atuais, com diferentes costumes, comportamentos e dilemas morais, sendo a lei baseada em um ambiente social, cultural e ético que não coincide mais com a realidade fática.

Assim sendo, determinados dispositivos deixaram de corresponder aos anseios da sociedade e o Direito, embora seja instrumento de conformação do modo de agir social, não pode estar em sentido contrário às características do mundo ao qual está direcionado, devendo acompanhar a evolução dos paradigmas. Bitencourt (2009, p. 150) coloca que:

Transcorridos mais de sessenta e cinco anos da promulgação do Código Penal brasileiro de 1940, cuja Parte Especial ainda se encontra em vigor, questionam-se muitos dos seus dispositivos, esquecendo-se, geralmente, que a vida é dinâmica, e que não só os usos e costumes evoluem, como também, e principalmente, a ciência e a tecnologia, de tal sorte que aquele texto publicado em 1940 deve ser adaptado à realidade atual mediante os métodos de interpretação, dando-se-lhe vida e atualidade para disciplinar as relações sociais deste início de novo milênio. Com efeito, o Direito Penal não pode ficar alheio ao desenvolvimento tanto da ciência quanto dos usos e costumes, bem como da evolução histórica do pensamento, da cultura e da ética em uma sociedade em constante mutação. O Direito Penal - não se ignora essa realidade - é um fenômeno histórico-cultural que se submete permanentemente a um interminável processo de ajustamento de uma sociedade dinâmica e transformadora por natureza. Vive-se esse turbilhão de mutações que caracteriza a sociedade moderna, e que reclama permanentemente atualização do direito positivo que, via de regra, foi ditado e editado em outros tempos, e somente pela interpretação do cientista ganha vida e atualidade, evoluindo de acordo com as necessidades e aspirações sociais, respondendo às necessidades da civilização humana.

O aborto na década de quarenta tem a sua conotação social diferente da qual recebe por parte da sociedade atualmente, sendo que a sua incriminação rigorosa, nos moldes da lei vigente, ignora a realidade da mulher. O aborto no Código Penal esta previsto como crime nos seguintes termos tipifica como crime a conduta de provocar aborto em si mesma, em outra ou consentir que outrem o provoque, não punindo a ação ou omissão se realizada na inexistência de outro meio de salvar a vida da gestante (aborto necessário) ou se a gravidez resulta de estupro - devendo o aborto ser consentido previamente pela gestante ou pelo representante legal quando ela for incapaz.

Por outro lado, o anteprojeto apresentado ao Senado dispõe que:

Art. 128. Não há crime de aborto:

I - se houver risco à vida ou à saúde da gestante;

II - se a gravidez resulta de violação da dignidade sexual, ou do emprego não consentido de técnica de reprodução assistida;

III - se comprovada a anencefalia ou quando o feto padecer de graves e incuráveis anomalias que inviabilizem a vida extra-uterina, em ambos os casos atestado por dois médicos; ou

IV - se por vontade da gestante, até a décima segunda semana da gestação, quando o médico ou psicólogo constatar que a mulher não apresenta condições psicológicas de arcar com a maternidade.

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Parágrafo único. Nos casos dos incisos II e III e da segunda parte do inciso I deste artigo, o aborto deve ser precedido de consentimento da gestante, ou, quando menor, incapaz ou impossibilitada de consentir, de seu representante legal, do cônjuge ou de seu companheiro.

Cabem breves considerações acerca da inovadora normativa, pois diminuem a quantum da pena para o aborto atualmente já incriminado no Brasil, porém trazem novas excludentes de ilicitude da conduta, além dos chamados aborto terapêutico (para salvar a vida da gestante) e do sentimental (quando a gravidez resulta de estupro ou atentado violento ao pudor).

A redação do art. 128 do anteprojeto aperfeiçoa uma má escolha do legislador na grafia do art. 128 do Código Penal atual, que altera a determinação de que "não se pune o aborto" para "não há crime de aborto", retirando a indagação de que o aborto, nos casos destes dispositivos, a conduta ainda seria crime, mas que não haveria imputação da pena, quando, na realidade, não há configuração do delito. Todavia, este problema de aplicação da teoria do crime merece considerações de Nucci (2003, p. 426):

(...) há duas posições a respeito: a) trata-se de um equívoco do legislador, pois fica parecendo ser uma escusa absolutória. Melhor teria sido dizer "não há crime"; b) é correta a expressão, pois está a lei dizendo que não se pune o aborto, o que significa que o fato típico deixa de ser punível, equivalendo a dizer que não há crime. Preferimos esta última posição. Em qualquer caso, no entanto, trata-se de excludente de ilicitude. (grifo do autor)

Destarte, as hipóteses em que o aborto deixa de ser crime foram expandidas, com o fim de acompanhar os anseios da sociedade e permitir situações em que ora não há bem jurídico a ser tutelado, ora a punição concretizará um mal maior do que o dano causado pela conduta.

O art. 128, inciso III do anteprojeto prevê que a conduta não será crime quando o feto é anencéfalo ou portador de grave doença que torna a sua vida fora do útero totalmente inviável, sem arrolar estas moléstias, deixando a norma penal em branco para que seja preenchida de acordo com os avanços da ciência para determinar quais estas doenças que são, no momento da ação ou omissão, incuráveis.

O aborto anencefálico já era tratada pelos criminalistas como excludente da ilicitude da conduta, pois não haveria bem jurídico a ser tutelado, na medida em que a criminalização do aborto visa a supressão de condutas que violem o direito fundamental à vida, enquanto esta não estaria presente em caso de anencefalia (Bitencourt, 2009, p. 153).

Não obstante, a discussão se encontra superada com o julgamento pelo Supremo Tribunal Federal (STF) na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) n.º 54, quando foi declarada inconstitucional a interpretação de que o aborto de feto anencéfalo constitui crime, pois o produto da gravidez não teria potencial de vida, não existindo bem jurídico a ser tutelado pela tipificação.

Desta forma, o anteprojeto normatiza a decisão do STF, no sentido de dispor...

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